Geografia(s).












As nossas referências são sempre muito aleatórias. Muito ao ritmo do que vemos, do que sentimos. Do que vivemos, no fundo. A ideia da receita que fica hoje, aconteceu em mim por causa de um dos meus programas de televisão preferidos. Este. No universo dos programas de comida, mudo rapidamente de canal quando vejo duas realidades antagónicas: pessoas em sofrimento nas corridas de obstáculos que são os reality shows culinários ou pessoas com ar zen, em cenários sempre ideais, sempre perfeitos, em que é sempre tudo muito bom, tudo delicioso, tudo fantástico. No primeiro caso, há sangue (e suor) a mais. No segundo, falta "carne", que aquilo tudo tem fome de realidade. Cada um é como é. E eu creio que é sempre bom sabermos no que é que não nos revemos, do que é que não gostamos. E então, sei que não gosto de ver gente a cozinhar sem alegria, a suar em bica para cima da comida cronometrada que está a fazer. E também sei que não gosto do imaginário exemplar dos programas de comida que parecem estar sempre a dizer-nos que temos a obrigação de estar bem, que temos de controlar as variáveis todas e que não somos nada se não fizermos a nossa própria massa:)
No lado oposto a isto tudo, estão os programas do Anthony Bourdain. O fio condutor é a comida, mas não a comida desfasada dos sítios e das pessoas. Gosto do espírito dele. Do assumir franco das suas quedas biográficas e das suas limitações. Da maneira espontânea como gosta do que está a comer e a beber. Dos f*** awesome que vai dizendo, a propósito das coisas e das pessoas e dos sítios. E nos sítios, fala com pessoas muito diferentes entre si e não necessariamente com chefs. Jornalistas, escritores, artistas plásticos, fotógrafos. Invariavelmente, o que me acontece, é querer ainda mais ir aos sítios onde quero muito ir, querer voltar aos lugares onde estive. Apetece ir. Dos programas todos, há alguns que são mais especiais. Se calhar, por serem sítios onde quero muito ir. Deve ser também por isso. O de Detroit. De Seattle. De Oaxaca. De Lyon. E o de Nova Orleães. Tanto. De todas as cidades americanas na lista, Nova Orleães. Pela comida. Cajun, creole. A herança francesa associada à mística africana e caribenha. O profano e o sagrado. A música e todas as consequências da música. Quando voltar a atravessar o Atlântico, quero que o destino seja a Nova Orleães (com) que sonho tanto. Pelo menos, gosto de pensar nessa possibilidade. E enquanto não, faço comida com inspiração nessas coordenadas geográficas sonhadas. A receita que fica hoje foi feita pela primeira vez depois de ter visto este programa. O tempero foi absolutamente espontâneo e intuitivo, que a ideia destes programas não é deixar receitas. É deixar a ideia. Fica-nos a ideia. E nós transformamo-la na(s) receita(s) que bem entendermos. Fica ao critério. 
Durante meses, este tempero foi um segredo bem guardado. Eu servia a carne naquele molho denso e escuro, ela desaparecia muito rapidamente, as pessoas perguntavam o que tinha e eu dizia que era segredo por enquanto:) E esse por enquanto era só por causa de ter Coca-Cola e pelas reacções de estranheza que esse dado poderia motivar. Se estava a saber tão bem, para que é que eu ia introduzir estranheza no que estava a saber tão bem?:) Com esta comida soul, um vinho branco que tem sido bom de beber/viver. E o livro que está (finalmente) a ser lido. Há livros que vamos adiando. Até que. 
Com tudo, fica a tal receita que era segredo por enquanto. Era. Deixou de ser:)

Pá de porco New Orleans
NB: Faço esta receita numa panela de ferro fundido, mas testei em tabuleiro, antes de publicar isto e fica bem na mesma. Pode usar-se vinho branco ou tinto. Fiz nas duas opções e fica muito bem. Quando quero que o molho fique bem escuro, uso vinho tinto. 

Uma peça da pá (peço sempre com cerca de 1,3 kg, por causa das dimensões da panela de ferro fundido onde é cozinhada e também peço para ser preservada alguma da gordura da peça) + meio litro de vinho (branco ou tinto) + 1 malagueta (vermelha) + 2 colheres (de sopa) de xarope de ácer + 1 laranja + 2 colheres (de sopa) de molho de soja (uso este, por ser mais suave) + 2 colheres (de sopa) de molho inglês + 1 pimento (verde e cortado às rodelas) + 2 latas de Coca-Cola (das pequenas, de 150ml) + Maizena, sal, azeite, Tabasco, coentros, água e pimenta preta q.b. 

Lava-se bem a peça de carne e tempera-se, com tudo o que está na sequência anterior (excepto uma das latas de Coca-Cola). O ideal é deixar tomar o tempero de um dia para o outro. Se não for possível, umas quatro horas. Decorrido(s) esse(s) tempo(s), leva-se ao forno durante 3 horas. Na primeira meia hora, a peça deve estar "descoberta", com a parte da gordura exposta e o fogo deve estar a 200ºC. Nas duas horas a seguir, hidrata-se a carne com o molho, reduz-se o lume para os 170ºC, cobre-se e deixa-se estar. Na última meia hora, retira-se a peça de carne, parte-se grosseiramente (a ideia não é fatiar direitinha:) e reserva-se. Leva-se o molho ao lume, acrescenta-se um pouco de água (um copo, normalmente), a segunda lata de Coca-Cola, rectifica-se os temperos, junta-se Maizena Express até ficar no ponto de densidade que queremos, junta-se os pedaços de carne, de maneira a que fiquem cobertos pelo molho (como numa das imagens) e deixa-se apurar em lume brando até terminar o tempo necessário. Costumo servir com este meu puré e com milho assado. Quando sobra, as lascas desta carne podem também ser transformadas em sandes que persistem na memória. 

E é mesmo Verão. A nossa pele já dá sinais de que sim. De que é Verão a sério. A música é uma das minhas preferidas dos The Cure. E parece ter o mesmo tom aéreo do Verão. 


4 comentários:

  1. Querida Mar,

    Ontem ao ver um episódio dessa série (em Barcelona) perguntava-me se a Mar já teria jantado no El Buli. Fiquei impressionada com o Chef, pela leveza dele. Que ser maravilhoso.
    Em relação ao livro, também cá anda... á espera de acabar de ser lido já há mais de 1 ano.
    A série, é das que mais me cativa e impressiona. Talvez por ser tão real e de podermos ir aos lugares, se um dia assim tiver de ser. Estou encantada com o Oriente por agora.
    A sua comida é uma bênção. Depois conto como correu esta receita.
    O seu bolo de iogurte, nas mais variadas variações, também fica muito bem com Chá de frutos vermelhos (lá dentro). Não dura 24 horas a desaparecer.

    Bom fim de semana
    :)

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    1. Não, não cheguei a ter essa experiência. Em tempos, fiz uma reserva, para fazer uma surpresa ao meu marido. Seria um ano depois dessa data. Uns dias depois, tirei isso da ideia. Pareceu-me estranho (e errado) esperar um ano por uma refeição e, muito importante: sabia lá se estava viva no dia do tal jantar:)
      Comecei o livro há uns dias. Parece-me que será terminado no meu sul. Um bom lugar para um livro destes chegar à última página.
      E obrigada. É comida simples. Mas feita com muita alegria. Se experimentar fazer, que lhe saiba muito bem. Bolo de iogurte é daquelas coisas. Vou fazer um daqui a nada. Ao pequeno-almoço, tem de haver quadradinhos de bolo de iogurte com cenas:)

      Bom fim-de-semana para si!

      Mar

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  2. Já me tinhas falado desta carne com Coca Cola e de como estavas à espera do momento certo para revelares o segredo :) Muito americana, realmente. Também gosto muito do Anthony Bourdain, por tudo isso de que falas. Quanto aos restantes, concordo. Vejo o Nigel Slater e pouco mais. Abomino Masterchefs e outros do género. Cozinhar é tudo menos isso.

    Um beijo (ainda de Londres),

    Ilídia

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    1. Olá Ilídia que ainda está em Londres:)

      Demorou mais tempo a deixar aqui porque não havia meio de conseguir tirar fotografias. Dá vontade de sentar à mesa e de não pensar em mais nada:)
      Também gosto de ver o Nigel Slater. Tem um registo tranquilo. Os registos frenéticos de competição não me interessam minimamente. Vi uns minutos de dois desses programas e passei à frente, que estava a custar-me assistir a tanto sofrimento. A minha cena é outra:)

      Dias bons para todos! Um beijo.

      Mar

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