Diz a lenda que, quando os soldados romanos se depararam com o Rio Lima, terão pensado que estavam perante um dos cinco rios do Hades, o rio Lethes. Segundo a mitologia, este seria o rio do esquecimento. O rio por onde todos teriam de passar após a morte, para se libertarem de todas as memórias das suas vidas anteriores e voltarem renovados a uma vida nova. Assim, o rio tranquilo que é o Rio Lima fez com que os soldados se assustassem e se recusassem a atravessá-lo, com medo de perderem todas as suas memórias. Foi Brutus quem atravessou para a outra margem e que chamou os seus soldados pelos nomes, um a um, para que assim soubessem que nada havia acontecido às suas memórias. É esta a lenda que, como todas as lendas, terá um quê de verdade, de real. Seja como for, creio que nunca vou a este sítio que deixo hoje, sem a evocar. E, mesmo que até quisesse, não o conseguiria, porque numa das salas deste lugar há uma enorme tapeçaria de Almada Negreiros que evoca esta narrativa que faz parte do património imaterial de Viana.
Todos os lugares que aqui ficam são sempre especiais. E, por isso mesmo, ficam aqui pelas razões que, para mim, são as certas. E são muito simples, essas razões. São sempre lugares onde se está bem e pronto. E de acordo com esta vontade reiterada de deixar aqui lugares que estejam à distância de uma viagem de carro. Lugares relativamente próximos. Lugares nossos. Lugares que nos lembrem as vezes que forem precisas que o nosso país é afinal um mundo. Um mundo particularmente diverso, particularmente lindo.
Este é um lugar a que regresso. Mais ainda: este é um lugar a que regressarei sempre. E isso diz muito. Tem que ver, em primeiro lugar, com aquele horizonte. Aquele cruzar sereno de águas. A água doce a ir ao encontro da água salgada e atlântica. Aquele céu. Cada um dos momentos fugazes em que aquela beleza é tão envolvente que nos silencia. Só pede contemplação. E silêncio. Porque a verdade é que é mesmo do género de se ficar sem palavras. Sei que, mal chego, quero é ir olhar aquele horizonte. Faço sempre o check in num registo entre o impaciente e o ansioso:) Alguma coisa estaria profundamente errada, se perdesse esse e outros traços meio infantis. Aquilo de me deixar encantar facilmente, de ficar feliz com um vento qualquer, de me deslumbrar com céus e com nuvens e com o que for que pertence à ordem do imponderável e da dádiva pura. E ali, tudo isso é amplificado. Tão bom, chegar ao quarto, pousar o saco e abrir a janela. Ser esse o primeiro gesto. Ser essa a primeira vontade: abrir uma janela. E isso ser de uma beleza que cala tudo o que não esteve ou que não está bem. Como se não houvesse um antes. Como se não importasse assim muito o depois. Ouve-se a cidade lá em baixo. Mas é um rumor, só. O dominante é mesmo a água. O olhar segue o curso do rio a chegar ao mar e esquece o resto. A acrescentar, aquela aparição que é o Templo de Santa Luzia. Imponente, mas ao mesmo tempo guardião. Do Monte de Santa Luzia. Da água. Da cidade. Depois desse olhar prolongado, aquele aconchego especial deste lugar para onde me apetece ir no tempo frio. E a vontade de fazer uma massagem no spa, por ali esse ritual fazer ainda mais sentido, dada aquela água serena. E, claro, ler. Sempre e muito. Com a sensação de se ter todo o tempo, que é uma das sensações mais imediatas a propósito deste sítio. Da última vez que estive, o livro que seguiu viagem comigo, foi um daqueles que andava para começar há algum tempo e que estava à espera, a aguardar. Antes de ir, peguei nele sem mais e, também sem mais, as primeiras 120 páginas foram lidas no alto de Viana, num tempo de Inverno declarado. Sem filtros. Frio. Chuva. Névoa. A contrastar com memórias mais luminosas daquele lugar e que também aqui ficam. E que bom que é assim. Conservar memórias. Ter um passado. Os romanos até que tinham razão em não querer atravessar o rio Lima, com medo de terem de abdicar do antes. O passado é (mesmo) muito importante. Não é a abstracção que se pensa. Ao contrário. Mesmo ao contrário.
NB: Adoro a pousada, mas o restaurante não é nada de especial e não justifica de todo. Sei do que falo, porque dei hipótese e tinha de o dizer neste texto, porque não conto histórias. Comida sem alma. Carta de vinhos extremamente limitada. É uma pena, porque seria óptimo ter tudo ali, que é o tipo de lugar onde apetece estar sem interrupções. Mas não dá, a não ser que se peça uma salada ou uma sopa. E nunca na vida que eu perderia a comida deliciosa deste Norte:) Assim, quando estou ali, as refeições são na Casa de Pasto Maria de Perre. Um daqueles endereços certos. E, nos intervalos disso tudo e antes de deixar a cidade, ir ao Manuel Natário. Muito importante: Manuel Natário. Na Avenida, há outro Natário, mas quem sabe e entende estas coisas, sabe que é preciso procurar aquela viela deliciosa. O outro endereço é só um outro endereço. E claro que sim, as bolas de Berlim que justificam as peregrinações e os escritos. E os salgadinhos e tudo o mais que se faz ali, porque é honesto.
A música é esta. Dos Linda Martini que adoro e que oiço sem me cansar. Também a música deles é um lugar a que regresso sempre.
Este é um lugar a que regresso. Mais ainda: este é um lugar a que regressarei sempre. E isso diz muito. Tem que ver, em primeiro lugar, com aquele horizonte. Aquele cruzar sereno de águas. A água doce a ir ao encontro da água salgada e atlântica. Aquele céu. Cada um dos momentos fugazes em que aquela beleza é tão envolvente que nos silencia. Só pede contemplação. E silêncio. Porque a verdade é que é mesmo do género de se ficar sem palavras. Sei que, mal chego, quero é ir olhar aquele horizonte. Faço sempre o check in num registo entre o impaciente e o ansioso:) Alguma coisa estaria profundamente errada, se perdesse esse e outros traços meio infantis. Aquilo de me deixar encantar facilmente, de ficar feliz com um vento qualquer, de me deslumbrar com céus e com nuvens e com o que for que pertence à ordem do imponderável e da dádiva pura. E ali, tudo isso é amplificado. Tão bom, chegar ao quarto, pousar o saco e abrir a janela. Ser esse o primeiro gesto. Ser essa a primeira vontade: abrir uma janela. E isso ser de uma beleza que cala tudo o que não esteve ou que não está bem. Como se não houvesse um antes. Como se não importasse assim muito o depois. Ouve-se a cidade lá em baixo. Mas é um rumor, só. O dominante é mesmo a água. O olhar segue o curso do rio a chegar ao mar e esquece o resto. A acrescentar, aquela aparição que é o Templo de Santa Luzia. Imponente, mas ao mesmo tempo guardião. Do Monte de Santa Luzia. Da água. Da cidade. Depois desse olhar prolongado, aquele aconchego especial deste lugar para onde me apetece ir no tempo frio. E a vontade de fazer uma massagem no spa, por ali esse ritual fazer ainda mais sentido, dada aquela água serena. E, claro, ler. Sempre e muito. Com a sensação de se ter todo o tempo, que é uma das sensações mais imediatas a propósito deste sítio. Da última vez que estive, o livro que seguiu viagem comigo, foi um daqueles que andava para começar há algum tempo e que estava à espera, a aguardar. Antes de ir, peguei nele sem mais e, também sem mais, as primeiras 120 páginas foram lidas no alto de Viana, num tempo de Inverno declarado. Sem filtros. Frio. Chuva. Névoa. A contrastar com memórias mais luminosas daquele lugar e que também aqui ficam. E que bom que é assim. Conservar memórias. Ter um passado. Os romanos até que tinham razão em não querer atravessar o rio Lima, com medo de terem de abdicar do antes. O passado é (mesmo) muito importante. Não é a abstracção que se pensa. Ao contrário. Mesmo ao contrário.
NB: Adoro a pousada, mas o restaurante não é nada de especial e não justifica de todo. Sei do que falo, porque dei hipótese e tinha de o dizer neste texto, porque não conto histórias. Comida sem alma. Carta de vinhos extremamente limitada. É uma pena, porque seria óptimo ter tudo ali, que é o tipo de lugar onde apetece estar sem interrupções. Mas não dá, a não ser que se peça uma salada ou uma sopa. E nunca na vida que eu perderia a comida deliciosa deste Norte:) Assim, quando estou ali, as refeições são na Casa de Pasto Maria de Perre. Um daqueles endereços certos. E, nos intervalos disso tudo e antes de deixar a cidade, ir ao Manuel Natário. Muito importante: Manuel Natário. Na Avenida, há outro Natário, mas quem sabe e entende estas coisas, sabe que é preciso procurar aquela viela deliciosa. O outro endereço é só um outro endereço. E claro que sim, as bolas de Berlim que justificam as peregrinações e os escritos. E os salgadinhos e tudo o mais que se faz ali, porque é honesto.
A música é esta. Dos Linda Martini que adoro e que oiço sem me cansar. Também a música deles é um lugar a que regresso sempre.
Olá Mar:
ResponderEliminarJá há muito que não vou a Viana. Fiquei com vontade, depois de a ler. Para a próxima vez leve consigo A Montanha Mágica, do mesmo autor. Vou revelar-lhe um segredo (que não é segredo, apenas desvendado agora aqui): leio autores alemães no original... Thomas Mann é um dos meus preferidos.
Hei-de voltar a Viana, um dia... ;) E visitar a casa Natário, onde acho que nunca fui.
Um beijinho
Marta
Olá Marta,
EliminarA ver se volta a Viana, então:) Esse é um dos livros que repousa aqui, à espera. Gosto de pensar que o lerei como tenho lido tantos outros livros do género de respirar fundo, antes de iniciar. Talvez seja assim como foi com este: de começar sem estar a pensar muito no assunto. Fiquei logo na narrativa daquela família. Livros destes têm em mim o efeito dos grandes espaços.
Ler um escritor de que se gosta muito no original é um nível diferente, nisto dos livros. Nunca consegui ter vontade de aprender alemão. Sempre senti esse apelo em relação a outros idiomas, mas tenho uma resistência interior ao alemão que não consegui (ainda) ultrapassar. Limitação minha e outras coisas que levariam tempo a explicar.
Um beijinho grande para si* boa semana!
Mar