Paris.
















Da última vez que estive em Paris, aconteceu-me uma coisa extraordinária. Uma folha de um plátano que caiu aos meus pés, no jardim interior do sítio onde fiquei. Se fosse Outono, não teria sido tão extraordinário. Mas era Janeiro em Paris e no mundo. E as árvores já não tinham folhas. Guardei-a como sinal de que algo de extraordinário me tinha acontecido. E, quase dois anos depois, essa folha frágil ainda aqui está, no lugar mais especial da minha casa de todos os dias.
Para mim, Paris é uma cidade extraordinária por si. Haja o que houver. Há coisas que não caem ao ritmo de rajadas de metralhadoras e essa é a lição suprema da vida sobre a morte. Por mais que os termos da equação até pareçam ser mais ao contrário, porque a morte é que aparentemente prevalece. Inapelável, certeira. Tudo uma questão de o alvo ser bloqueado ou não. Mas o ponto é que é mesmo a vida que ganha. Porque a cada tragédia sucede sempre mais um nascer do sol. E mais outro. E outro. Enquanto o mundo for mundo, será sempre assim.
E Paris é assim como o mundo inteiro. Resiste. Com uma ou outra chaga. Mas resiste. E volta-se sempre a Paris. De todas as vezes em que estive lá, foi assim que senti. Que voltaria ali. Uma e outra vez. Desde a minha primeira viagem à cidade da alegria. De mochila, no Verão quente dos meus vinte anos. A flutuar, apaixonada e aleatoriamente por cada avenida. Por cada encruzilhada. A respirar aquela alegria muito parisiense. Em Paris, gosta-se de viver. Muito. Os que a habitam, aplicam-se (in)disciplinadamente a gostar muito de viver e isso é contagiante. Nos detalhes mais ínfimos. E começa tudo na comida. Na maneira como a vivem. Um tempero não é só um tempero. Um pão não é só um pão. Um bolo está para lá do açúcar e da náusea da culpa toda que não sentem nem querem sentir. É isso. Gostar de viver sem culpas. Uma cultura do prazer. Sem complexos nem matrizes que procuram a auto-flagelação. As esplanadas, os cafés amplos, os teatros, a música, a pintura no meio da rua, os livros ao longo do Sena, aquele gosto muito francês pela discussão e por todos os seus contraditórios e pela especulação filosófica. E a cultura da mesa. Muito, a cultura da mesa. E que faz com que cada mesa seja um território mais sagrado do que a basílica mais esmagadora. É uma espécie de amor que não pede desculpas por existir. Um amor solar pela vida. 
Aqueles que na sexta-feira abriram fogo aleatório sobre Paris odeiam a vida de morte. Podemos dar ao terrorismo as roupagens ideogicas/religiosas/políticas que entendermos. Mas o sentido que todas as narrativas do terror dão a estas existências é esse ódio. Um pretexto ou um escape para vidas marcadas por ódios mais ou menos conscientes e que se transformam em ódios imperdoáveis, mal se desencadeia um mecanismo explosivo. São imperdoáveis, não obstante os céus todos com virgens à discrição que lhes terão sido prometidos. 
A comida que fica hoje foi feita ainda mais silenciosamente do que todas as minhas outras comidas. E cada passo da sequência é uma manifestação imperceptível da vida enquanto celebração, que é essa a memória mais flagrante que guardo de Paris. Partilho do culto. E hei-de voltar a Paris. Com o medo que todos os parisienses sentirão, não obstante a afirmação irredutível de vida que cada dia pressupõe. Mas hei-de voltar lá as vezes todas que a minha vida me permitir. 
Deixo hoje a minha interpretação do "coq au vin" que os franceses tanto amam e que o meu filho venera com aquela alegria que só as crianças. O meu filho. A primeira viagem dele foi a Paris. Mal caminhava. Uns anos mais tarde, pediu muito para voltar lá. Não quis a fantasia dos parques de diversões nos arredores da cidade. Queria era ver a cidade do Ratatouille. As ruas. Os restaurantes. Perceber ao certo a magia do som da crosta de uma baguette quente. queria Paris, ele. E adora o molho denso e escuro do meu "coq au vin". Como se fosse uma viagem breve à cidade a que voltaremos sempre.

Coq au vin 
NB1: Esta é uma interpretação freestyle da receita francesa, adaptada à realidade quotidiana. Por isso, o usual é fazer isto com frango do campo. Uso só as coxas e os peitos e o resto reservo para canja. Omito a manteiga da receita original, não por questões de dietas nem nada do género. É porque me parece que o azeite, por si só, cumpre maravilhosamente o propósito. 
NB 2: Em relação ao vinho a usar numa receita deste género, o meu princípio é simples: se não for bom para beber, não é bom para temperar. 

As coxas e os peitos de um frango do campo + 1 litro de vinho tinto + 4 dentes de alho (picados) + 2 folhas de louro (divididas e sem a nervura do meio) + 2 cebolas vermelhas + 2 talos de aipo + 2 cenouras + 20 batatas pequenas (uso Primor e mantenho a casca) +  amido de milho, azeite, sal e pimenta preta q.b. 

Primeiro, o tempero. Idealmente, de um dia para o outro. Se não for possível, com antecedência mínima de quatro horas. Lava-se bem cada pedaço de carne, tendo o cuidado de manter a pele. Coloca-se numa panela e tempera-se de sal. A seguir, as folhas de louro, os dentes de alho picados, as cebolas, as cenouras e o aipo, cortados em pedaços grosseiros. No fim, o vinho tinto e a pimenta preta. Reserva-se. 
Quando chegar a altura de cozinhar, retira-se as peças da marinada para um prato. Leva-se ao lume uma sertã, com um fio generoso de azeite. Mal esteja quente, coloca-se as peças com delicadeza, de maneira a que a pele fique dourada. Vira-se uma única vez, contando um minuto para cada lado das peças de carne. Cobre-se com um pouco da marinada que terá ficado no prato para onde foram transferidos os pedaços de carne, retira-se do lume e reserva-se. 
Entretanto, leva-se ao forno as batatas e os outros legumes, na marinada onde esteve a carne. Cerca de meia hora, a 200ºC. Decorrido este tempo, retira-se os legumes para uma taça e reserva-se. A seguir, vai a carne ao forno, tendo o cuidado de preservar os sucos gerados na sertã onde estiveram. O tempo depende do tamanho das peças de frango. Mas cerca de uma hora e meia, a 180ºC será o suficiente. As versões de quatro horas da receita original são pensadas para carne de galo, não de frango. Daí a necessidade de adaptação. 
Quando a carne estiver pronta, acrescenta-se o amido de milho, até que o molho fique com o veludo que nós quisermos e rectifica-se os temperos, se necessário. Pouco antes de servir, leva-se ao lume a sertã onde foram salteados os pedaços de carne e transfere-se para lá todos os legumes, para que fiquem dourados naquela gordura preciosa. Se necessário, mais um fio de azeite. Uns dois ou três minutos serão suficientes. Serve-se quente, com uma baguette morna por perto e com um vinho tinto que nos seja inesquecível. A seguir, é a narrativa que nos fizer bem.     

A música é dos Deftones. O som dos Deftones que andava a ouvir, na altura da minha primeira viagem a Paris. Os Deftones que iriam subir àquele palco no dia a seguir àquela noite.    

8 comentários:

  1. Mar,

    Fiquei à espera do seu texto acerca de Paris. Foi daquelas certezas que sem ser certeza nenhuma, é. Sabia que as palavras mais bonitas, poéticas, escritas como uma pianista tira acordes das mãos, viriam de si.
    E era preciso. Fazia falta, neste caso muito particularmente, essa sua forma de pôr todas as emoções numa palavra de cada vez. Se eu escrever sobre o que aconteceu, aparece a raiva, fica explícito, não consigo dar a volta a isso. A Mar sim. A raiva está no texto, encontra-se perfeitamente, mas numa escala de tal forma contida que ainda grita muito mais. Uma perfeição.
    Não leve a mal, sei que o que estou a dizer é um bocado intenso, porque o adjectivo 'perfeito' pode assustar também. Não. Entenda-o como um elogio concreto, racional. Simples.
    Escrever na perfeição é uma coisa muito bonita e boa. O Saramago dizia que há uma pessoa dentro dos livros. Pois é isso. Encontra-se a pessoa nos seus textos. Muito amigável e calorosa. Viva.
    Tudo o que simboliza o oposto do terror daquela noite em Paris.

    Beijinhos,
    Jo

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    1. Querida Jo,

      Li as suas palavras hoje de manhã, antes de o dia me levar à frente com todas as coisas que os dias têm. Não queria escrever-lhe à pressa, entre uma coisa e outra. Agora sim. Com a calma e com o cuidado que me merece.
      Na verdade, estive em silêncio. Verbalizo muito as coisas, normalmente. Com o meu marido, em especial, não obstante todas as nossas divergências. Mas, face a coisas destas, aquele silêncio que ele conhece e que respeita com a mesma medida de silêncio. E depois, sentei-me e escrevi. Sempre quis/precisei de escrever a vida. É assim. Com uma série de filtros e de tempos. Mas é assim.
      Pelo meio dos meus silêncios, a tal raiva que não arranjei ainda meio de filtrar, por causa de outros terrores em geografias mais distantes. Talvez por ter a ideia de que uma união expressiva, face a cada um desses episódios, poderia evitar a disseminação desta praga odiosa que se serve de ideologias e de religiões para maquilhar uma fraqueza enorme.
      Nunca levaria a mal palavras tão gratas, Jo. Percebo o seu ponto com a minha intuição. Mas fico feliz por ser lida dessa maneira. Sem reservas. Sem medos. E com essa racionalidade simples e concreta de que fala. Sou bem resolvida. Isso impede-me de me deslumbrar, por um lado. Ou de ser insegura e titubeante, por outro.
      E gosto de escrever. Muito. É isso. E de viver. Tanto. A resposta inevitável, face a tudo o que magoa e que dá raiva e medo. Viver muito.

      Obrigada, Jo. Um abraço grande de boa noite.

      Mar


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    2. Não posso deixar de comentar esta frase:
      '' A resposta inevitável, face a tudo o que magoa e que dá raiva e medo. Viver muito. ''
      Está tudo dito... é o melhor e o que devemos fazer e para isso, é preciso coragem!

      Mar, escreve lindamente... e prende-nos a cada palavra, de uma forma boa e que nos conforta e isso chama-se talento!

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    3. Obrigada, Cláudia. Muito. E sim, é preciso coragem para viver. Não é preciso estarmos num cenário de guerra nem nada. Em alguns dias, é preciso trazermos um exército dentro.

      Um beijo.

      Mar

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  2. Partilho o encantamento por Paris. Também recordo os dias que lá passei com muito carinho. E França deu-nos tanto. Receitas deliciosas, como o teu coq au vin, e, acima de tudo, valores segundo os quais regemos as nossas vidas. Custa muito ver esta gente (até me custa chamar-lhes gente) abalar este mundo que, mesmo com muitos defeitos, é o nosso e no qual nos sentíamos livres e em segurança.
    Muito linda a tua homenagem à "cidade da alegria". A Jo tem razão. Palavras escritas "na perfeição". Obrigada.

    Um bom domingo. Que estejas bem. E os teus homens.

    Ilídia

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    1. Paris é assim mesmo: uma cidade encantatória. Estive lá em momentos muito diferentes da minha vida e guardei sempre sentidos inesquecíveis. Esta comida é tanto. E tão deliciosa. Ainda ontem fiz para o jantar. O padrinho do meu filho apareceu de surpresa e gostou tanto, também. Parecia criança como o meu filho, ele.
      E sabes, a questão é que é mesmo de gente que se trata. Pessoas como todas as pessoas. Não há desumanização que salve. Neste e em outros capítulos, a História lembra-nos que a maldade seria impossível sem a colaboração pacífica e/ou activa de tanta gente "normal".

      Que bom que gostaste. Obrigada. Boa semana!

      Mar

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  3. Nunca fui a Paris, mas quero muito conhecer e vivenciar essa cultura bonita, do gostar de viver, com prazer e sem culpas... fazem eles muito bem... O que aconteceu em Paris, não me tirou a vontade de um dia ver a torre Eiffel bem de pertinho ;) Temos e teremos sempre Paris, não é Mar ? :)

    Beijinho

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    1. O mundo inteiro terá sempre Paris. É isso. E que sejas bem feliz, lá. Tão bonita, a cidade das luzes todas que não se extinguem. Persistem, antes. Tal como as pessoas. As que estão lá todos os dias. E as que foram e hão-de ir. Uma e outra vez.

      Um beijo.

      Mar

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