Frio e gengibre.















Gengibre é palavra de dia frio. Aquece, só de dizer. E é uma daquelas palavras lindas. As sílabas caem sem esforço, como as folhas das árvores no Outono. É tudo uma questão de encontrarmos a medida pessoal de gengibre. O efeito gengibre, como gosto de dizer. Sente-se qualquer coisa de especial. Um lastro. Assim como um perfume inesquecível. 
Começando os dias frios, a sopa mais frequente é esta que fica hoje. Creme de cenoura e de abóbora com gengibre. Muito aveludado, servido quente, a libertar o tal aroma inesquecível. Creio que nunca me apeteceu este creme nas outras alturas do ano. É agora. Porque é agora que apetece. Que sabe mesmo bem. Como se a intuição natural do corpo pedisse a protecção boa do gengibre, associada ao laranja das cenouras e das abóboras. 
Porque será preciso atravessar o Inverno. Terá de chover tudo o que houver para chover. Terá de haver o frio todo que nos está reservado. E o vento. E as nuvens. E, claro, a outra parte (linda e quente) da história das estações frias. O lume aceso. As camisas de flanela de andar em casa. Poltronas e sofás. Mantas e cobertores. Castanhas no forno com umas pedras de sal. E romãs. Abertas no momento e consumidas assim sem mais. Sem transformações nem processos, que neste vermelho-rubi não se deve mexer muito, para não estragar. 
Tudo tem um tempo. E cada tempo é necessário. Creio que, entre muitas outras coisas, essa é uma das verdades que cada dia frio e chuvoso nos recorda. A partir daí, é fazermos a nossa parte e não passarmos o tempo a suspirar por outro tempo que não aquele que estamos a viver. O que passou. O que há-de vir. E todas as conversas de encher tempo, a propósito do tempo. 
No final de um dia frio, uma sopa. O ritual silencioso de cortar legumes. Do azeite novo, a temperar. A água quente. Pedaços de gengibre bem medidos. E tempo. Uma sopa só precisa de tempo. Esta versão pede canecas em vez de pratos. Porque sabe melhor no registo de beber serenamente. E pão. E azeite. E dias frios. E mais um livro. Este deixa lastro, tal como o gengibre. E era incompreensível que ainda não tivesse lido A Educação Sentimental de Flaubert. Ter como texto interiormente fundador a Educação Sentimental de Bernardo Soares, saber dizer fragmentos de memória só pelo prazer de os dizer e não ter lido a outra educação sentimental era complicado. Nada como tratar do assunto:) Adiar um livro é adiar deliberadamente a vida. 
O caminho e os ingredientes e os tempos para este creme, então. Simples, todos eles. 

Creme de cenoura e de abóbora com gengibre

6 cenouras + 2 batatas (médias) + 1 courgette (sem a casca) + 2 fatias de abóbora-manteiga + 1 cebola + 1 colher (de sopa) mal cheia de gengibre fresco + sal, água e azeite q.b. 

Pica-se a cebola e vai ao lume com um fio de azeite, durante uns segundos. Acrescenta-se todos os outros ingredientes, um fio de azeite e dá-se uma volta com uma colher de pau. A seguir, a água (até cobrir os legumes) e um pouco de sal. Deixa-se cozer durante meia hora. Passa-se com a varinha mágica até ser creme. E creme é mesmo creme. Nada de grumos nem de factores de perturbação. Se necessário, acrescenta-se mais água. E sal e um fio de azeite. Serve-se quente, para fazer (e saber) mesmo bem:) 

E este som de todas as estações. 


6 comentários:

  1. Olá Mar como sempre é um prazer passar por aqui, seja no verão ou no Outono, a Mar é sempre uma inspiração, aprender a gostar do tempo, o tempo presente com frio mas com uma sopa quente, um livro, uma manta e uma lareira, se não haver lareira há o calor do nosso lar e a nossa vontade de fazer os dias bonitos para nós e para a nossa família. Temos esse poder, é só querer. Bom fim de semana. Um abraço.

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    1. Bom dia, Aliete

      Obrigada por gostar de passar por aqui, seja qual for a estação. E sim, temos esse poder que decorre da nossa vontade. E gosto da vida e de cada um dos seus contrastes. Porque cada um desses contrastes faz com que a ame ainda mais.
      Este é um tempo maravilhoso. Hoje mesmo, por exemplo. O Samhain dos Celtas. O dia que marca um final, uma transição. E, claro, o início de mais vida.

      Um bom fim-de-semana para si. Um abraço grande.

      Mar

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  2. Ao ler o teu texto, dei por mim a dizer baixinho GEN-GI-BRE e a pensar na imagem que apresentas :) Tão bonito :) Gosto tanto destas noites frias, de livros, lareira e comidas reconfortantes. As especiarias têm o condão de confortar. Li A Educação Sentimental nas aulas de Literatura Francesa, há muitos anos. Na altura, não me marcou especialmente. Tenho de lhe dar nova oportunidade, sem uma professora detestável a atrapalhar. Hoje, foi dia de comprar livros, na feira do "Outono Vivo". Gosto tanto do nome deste festival :)

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. É que é uma palavra tão bonita:) E parece que fica bem em/com tudo, o gengibre que é lindo de dizer. Aqui está a chover imenso, depois de um fim-de-semana dourado como só no Outono. Sabe ainda melhor chegar a casa, tomar o segundo banho do dia e fazer comida que é assim como as especiarias que nos confortam.
      Uma lástima, quando um professor estraga um livro. Uma lástima. Lamento que tenha sido assim. E sim, esse festival tem um bom nome:)

      Um beijo. Boa semana!

      Mar

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  3. Maravilhoso... tudo... tenho tantas saudades de castanhas, aqui na Suíça são tão caras, mas um dia destes vêm no cesto das compras do supermercado, precisamente para um assar lento, no forno, tão bom! ;)

    Essa sopa... tenho que experimentar !

    Beijinho

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    1. É um tempo maravilhoso, este. Dá vontade de viver e viver e viver:) Pena, isso de as castanhas serem tão inacessíveis, aí longe. Mas tens outras coisas lindas que nós aqui não conseguimos facilmente.

      O creme é assim como este tempo: maravilhoso, de aconchegante. Se sim, que gostes muito e que te faça bem.

      Um beijo.

      Mar

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