Este fim-de-semana muda a hora. E, com isso, a nossa noção de luz e de tempo. Temos a ideia de que estamos a acordar mais tarde e que ganhámos uma hora de sono. Mas não é assim. Eu não gosto dessa mudança de hora que parece contrariar os nossos ritmos naturais. O relógio diz-nos uma coisa que parece mentira. Algures às seis da tarde, estará o céu escuro como se fosse mesmo de noite e estivesse na altura de ir dormir. E não. Parece que o dia queima etapas e que é assim como quando os pais estão cansados e querem que os filhos se cansem rápido para ir para a cama antes da hora. É assim que eu penso. Que o dia quer é ver toda a gente a dormir:)
As coisas de final de tarde gostam da luz declinada do Outono. O caminho de carro até chegar a casa. E, havendo luz e tempo, o meu caminho de caminhar e todas as coisas que fazem com que o olhar as registe como sendo irrepetíveis. Mesmo que estejam lá todos os dias. A água do rio. A densidade do bosque de nogueiras. Os terrenos com as nabiças e com as couves muito verdes. O mundo próximo a preparar-se para o Inverno. Sussurros imperceptíveis que parecem dizer-nos para aproveitarmos muito toda a luz que pudermos. E é o que eu tenho feito, nestes dias que antecedem a mudança da hora. Depois dessa data, já não vai dar para ir caminhar junto ao rio ao final da tarde. Mas vai dar para outras coisas. A nossa natureza tem inscrita a palavra adaptação. Aos elementos. Aos calendários. Às geografias. E às estações. As do ano. E as outras.
Seja como for, há dados que fazem parte. A hora pode mudar à vontade, que a comida será feita todos os dias com um amor que é assim como o amor: não parece ter fim. A mesa será posta na mesma. Haverá vinho e todas as coisas que antecedem a hora de sentar. E páginas de livros como este que deixo. Tenho uma dificuldade enorme em falar do que leio. Gosto é de ler. E, quando nos acontece um livro assim, queremos é isso mesmo: ler. E falar ou dizer o menos possível. Há escritores que nos emudecem. O Philip Roth é um desses escritores. E este livro não podia ter sido lido em melhor estação.
Mal começa o Outono, as pessoas que me querem bem em todas as estações, transformam coisas intangíveis em coisas tangíveis. Os presentes que me encantam como se fossem jóias. Nesta página, boletos e cantarelos silvestres. Colhidos por mãos serenas e conhecedoras e amigas. Muito amigas, as mãos que me entregam tantas coisas preciosas. Transformo tudo em comida que é Outono de comer. O aroma a terra e a árvores que vive nos cogumelos é qualquer coisa que vale a pena ser vivida. Um perfume inebriante, enquanto se faz a comida. Hoje, um salteado de boletos. Sirvo como entrada e também com este risotto de vinho tinto. Que é para fazer com que um risotto seja ainda mais especial. Em vez de integrar os boletos a meio do processo, guardo-os, para não estragar aquela consistência deliciosa. E então, quando o risotto estiver num prato fundo, basta deixar cair umas colheres deste salteado, mais parmesão ralado e pimenta preta. O resto da alegria acontece por si. A hora que mude à vontade:)
Salteado de boletos com orégãos e com coentros
NB: Tenho a noção de que não é fácil arranjar boletos silvestres e não gosto de deixar receitas com coisas difíceis/inacessíveis. Mas este salteado também fica delicioso com cogumelos de supermercado. Eu sei que sim, porque já fiz muitas vezes e nunca ninguém se queixou:)
6 boletos (laminados, mas não muito finos) + 4 dentes de alho (picados e com um pouco da casca) + 1 folha de louro (sem a nervura do meio) + azeite, sal, orégãos e coentros q.b.
Pica-se os alhos directamente para uma sertã larga, para não se perder nada do aroma e do sabor. Junta-se a folha de louro e um fio generoso de azeite. Leva-se ao lume e deixa-se estalar um bocadinho (nesta parte, não pode haver distracções, para não queimar os alhos). Junta-se logo os boletos, um pouco de sal, os orégãos e mais azeite. Envolve-se tudo, com a ajuda de duas colheres de pau e deixa-se saltear durante uns 5 minutos, tendo o cuidado de ir mexendo. No final, um pouco de coentros, rasgados por cima do salteado e mais azeite. Serve-se ou reserva-se, se for para juntar depois ao risotto.
A música para este post tinha de ser esta. Não só pela música. Mas pelo encanto da história que o vídeo conta e que é do género de deixar um sorriso. Um sorriso e um bocadinho de magia deixam lastros maravilhosos no mundo. Mesmo que a hora mude. Ainda assim:)
Palavras bonitas sobre esta(s) mudanças da hora, do tempo, de ritmos. Também para mim um pouco complicadas (estas para o inverno) mas há que encará-las dessa forma sábia. E a receita, daquelas deliciosas, reconfortantes, perfeitas para esta época do ano :)
ResponderEliminarUm beijinho!*
Ana
Olá Ana do sítio lindo dos "encontradores":)
EliminarO Inverno faz-se difícil, creio. O Verão e a Primavera são fáceis. Os meses frios testam-nos e à nossa capacidade de ver/estar para lá das nuvens cinzentas. É o que eu penso, Inverno após Inverno. E sim, a comida é mesmo no espírito desta altura. Palavras bonitas, as tuas. Obrigada por isso. E pelo teu/vosso lugar.
Um beijo.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarPrecisamente! Adequadíssimas estas palavras.
Pelo menos para mim, que tenho muita dificuldade em suportar o Outono e, principalmente o Inverno.
Eu sou pessoa de luz e calor.
Mas, tenho feito um esforço para descobrir os encantos das estações escuras e molhadas.
Porque, é mesmo como diz: o ciclo das estações faz parte do ciclo da vida. Mau é quando ele é interrompido. E há aspectos que permanecem imutáveis dentro de nós.
O gosto pela cozinha e o bem que isso nos faz. E o bem que fazemos aos outros.
Como me parece que esta receita deve ser fantástica e não devo conseguir encontrar os cogumelos com facilidade, tenho já planeada uma ida ao Apolónia.
São dois prazeres de Outono: esse passeio e esta comida.
Portanto, obrigada. Pela receita e pelas palavras.
Só o que me parece "demais" para mim é o livro. É um bocado à frente para o meu gosto.
Um beijo do Algarve, em véspera de fim - de - semana. Parece que novamente de chuva.
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarSei que sim, que os meses frios lhe são difíceis. Mas, gostando de cozinhar, não há como não amar o Outono:) Os ciclos são cumpridos. O tempo das colheitas. Depois o tempo em que a Natureza parece adormecer. Para a renovação. Tudo ao sabor do tempo.
Nada a agradecer. Se fizer com cogumelos normais, não há problema. Deixei essa nota prévia. Mas se encontrar boletus, tanto melhor.
Não percebi o seu ponto, em relação ao livro. Se puder/quiser, dê mais densidade.
Um bom fim-de-semana para si também. Sim, está de chuva. Por isso é que é ainda melhor estar em casa. Com todas as alegrias próprias desta altura do ano:)
Um beijo.
Mar
Já mudou, a hora! E, por isso, eu já estou a pé, regida ainda pela hora antiga. Também gosto dos dias mais longos, com luz até mais tarde. Não gosto de sair do trabalho com a sensação de que o dia acabou. E com esta nova hora temos de olhar para o relógio para vermos que não é assim.
ResponderEliminarGostei tanto desta tua refeição! Gosto muito de cogumelos. Tenho um caril de cogumelos fotografado, à espera de publicação. Não é de boletos, que esses, por cá, só desidratados, em frasquinhos :)
Estive a ver o vídeo. E estou com o sorriso ;)
Um beijo grande de bom domingo,
Ilídia
PS: Muito especial, Philip Roth. Este verão, li a autobiografia, "Os Factos". Para além desse, li "O Complexo de Portnoy" e pouco mais. Descobri-o tarde. Ainda vou a tempo ;)
Olá Ilídia,
EliminarTambém acordei cedo. Um dado que parece não sofrer alterações:) Esta mudança parece-me artificial, acima de tudo. Não faz sentido. Seja como for, farei as adaptações necessárias para viver bem (também) os dias pequenos. Não dá para ser de outra maneira.
Como eu lamento não conseguir fazer-te chegar boletos destes. Tu sabes, que já falámos nisso. Caril de cogumelos dá curiosidade. Fico à espera:)
O vídeo é luminoso. Esta música chegou-me pelo Rui Estêvão. Ele diz que não a passa muitas vezes, por não querer que se gaste. E eu concordo com ele.
Um dos meus escritores, o Philip Roth. Li quase tudo. E só lamento que não haja mais livros dele. E claro que sim. Vamos sempre a tempo, para os livros. Lê a Mancha Humana. É do género de não conseguirmos largar, esse livro.
Um beijo para ti. Boa semana dos dias mais pequenos:)
Mar
Boa tarde, Mar.
ResponderEliminarTinha tantas saudades de vir até aqui, com calma e silêncio. Isto de viver numa casa com obras no rés-do -chão e a fazer uma ligação interna para o 1º andar, não é fácil, não se consegue ouvir os pensamento, só o martelar e o perfurar. Hoje, finalmente, consegui um pedacinho de tempo e de silêncio, neste dia que é mais curto.
Como gostei das suas palavras, da receita e do vídeo. Eu gosto das cores do Outono, E gosto de cogumelos. Já levei a receita para fazer num destes dias, talvez amenize um pouco estes meus dias "infernais".
Uma boa semana, aproveitando tudo o que tem de bom o Outono.
Bjs
Ana
Boa tarde, Mar.
ResponderEliminarTinha tantas saudades de vir até aqui, com calma e silêncio. Isto de viver numa casa com obras no rés-do -chão e a fazer uma ligação interna para o 1º andar, não é fácil, não se consegue ouvir os pensamento, só o martelar e o perfurar. Hoje, finalmente, consegui um pedacinho de tempo e de silêncio, neste dia que é mais curto.
Como gostei das suas palavras, da receita e do vídeo. Eu gosto das cores do Outono, E gosto de cogumelos. Já levei a receita para fazer num destes dias, talvez amenize um pouco estes meus dias "infernais".
Uma boa semana, aproveitando tudo o que tem de bom o Outono.
Bjs
Ana
Boa noite, Ana
EliminarTambém tinha saudades suas. E, apesar desses ruídos e dessas obras de fundo, fico mais tranquila por saber que está bem. Estas coisas são assim mesmo: acabamos por criar uns laços invisíveis.
E compreendo. Obras em casa é dose. Este ano fizemos um intervalo, nessa matéria. Mas já sei que para o ano vai haver mais. Mas é bom, que é sinal de renovação:) E isso vai passar e vai ficar feliz por ver o resultado dessas obras todas. Pense nisso:)
Obrigada por ter gostado. E que corra bem, a receita que sabe muito a Outono e a aconchego. Boa semana para si também. E paciência:)
Um beijo.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarTal como tinha dito, fiz esta entrada ontem. Não encontrei boletos no Apolónia mas, trouxe marron e shitake.
Absolutamente divinal! O meu marido, á primeira garfada, disse logo que "tenho que fazer mais vezes".
Como eu gosto de experiências e acho que é fundamental "do pouco, fazer muito", aproveitei os pezinhos dos marron para juntar a um arroz e não os usei todos para o salteado. Guardei alguns para sopa.
Ainda a propósito do seu post, não senti diferença nenhuma por causa da mudança da hora.
Tanto no sábado como no domingo, levantei-me á mesma hora dos dias da semana. Porque quis.
Por norma, gosto de me levantar cedo. Nesta altura do ano, é, no meu entender, uma maneira de contrariar a sensação de que os dias são muito curtos. Se não dá á tarde, estica-se a manhã.
Sim, foi um fim - de - semana preenchido.
O que quis dizer acerca do livro é que me parece ser uma leitura "pesada". Não é para todos os gostos. Isto pelo que pesquisei acerca do autor. Na verdade, ainda não experimentei ler nada dele.
É dar a oportunidade e logo se vê.
Um beijo do Algarve, com um tempo que não se decide: nem sol nem chuva.
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarFico bem feliz por ter(em) gostado:) E essa mistura de cogumelos que trouxe do Apolónia fica muito bem. Esta receita admite muitas variações e adaptações. Gosto assim. E agradeço essa sua referência. É bom saber como correm as coisas.
Eu senti muito a diferença, nisso da hora. Hoje, especialmente. Estou "programada" para acordar às seis da manhã. Nem seria preciso despertador. E hoje, acordei às cinco, de acordo com o meu ritmo interior. Nem olhei para as horas nem nada. Desci e vim tomar o pequeno-almoço. Só dei conta quando já estava à mesa:) Mas o dia correu bem e não me faltou nem a energia nem o sorriso do costume:)
Em relação aos livros do Philip Roth, só posso dizer que ficção nenhuma ultrapassa a brutalidade do mundo. E gosto de literatura sem filtros, crua, sem panos quentes. Talvez por isso os meus escritores de eleição sejam os ditos cínicos. Estranhamente tónicos, dir-se-ia. Este livro em particular é uma dissecação fina dos meandros da dor crónica. E outras coisas. Muitas outras coisas. E sabe, em relação aos escritores, não me interessa as biografias. Quantas vezes casaram, quantos filhos, se gostam de gelados ou de chocolate. Creio que é por isso que raramente leio/vejo entrevistas a escritores. Não quero que o que escrevem seja perturbado por dados biográficos.
E ler pressupõe liberdade. Se quiser, leia. Se não quiser, não leia.
Um beijo para si. Boa semana. Com o que for. Mas que (lhe) seja boa.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarsabe que, por muito que me custem os dias mais curtos, gosto desta fase - mais frio, mais chuva, mais dentro de casa e de mim. Porque parece que, à medida que a luz diminui, tenho mais tempo para...ler. Nada como um entardecer de fim-de-semana de Outono/Inverno para ficar enroscada no sofá acompanhada por um bom livro e uns quadradinhos de chocolate... Sou pouco mundana, eu. Ficar em casa, mesmo sozinha, é algo de que necessito absolutamente. Ler, ouvir música, fazer puzzles, colorir, cozinhar ou fazer bolos preenche-me tão mais do que excursões de compras em shoppings em dias de chuva ou conversas 'só porque sim', que não me importo nada de o fazer. Perder-me num livro, mesmo duro como um de P. Roth, é algo de que não me canso nunca...
E sim, há rotinas novas, com os dias curtos. Nunca me afligem ou entristecem. O verão , com o calor em excesso, quando o há, às vezes cansa-me. As cores outonais são as minhas preferidas.
E adoro cogumelos, de todas as variedades e formas! Vou experimentar a receita.
Um abraço de perto de um farol,
Marta
Olá Marta,
EliminarLuz a menos custa sempre. Mas sim, é uma altura tão bonita. É ainda melhor estar em casa. No que isso tem de tempo interior, muito especialmente. Lareira, mantas, sofá e o livro que estiver a apaixonar-nos. Quando é assim, nunca se está só.
O tempo de vida é demasiado limitado para se estar nesse registo de conversa "só porque sim" ou no espírito de "picar o ponto". Isso gasta a paciência. Retira disponibilidade mental. Por isso, se ser pouco mundana é não perder tempo com coisas dessas, estou consigo:) Quanto às compras, sou quase cirúrgica. Não acho a mínima piada ao registo deambulatório nem tenho tempo para tédio(s).
As cores desta altura são uma espécie de milagre a acontecer diariamente sob o nosso olhar. A minha casa está rodeada de árvores e não me canso de registar essas gradações como acontecimentos extraordinários. Enquanto acontecem todas as outras coisas próprias desta altura do ano.
Que corra bem e que lhe faça bem, a receita muito de Outono.
Um abraço grande para si. Obrigada.
Mar
Adoro estes teus fragmentos Mar, estas coisas pequenas que surgem com os teus dias... ;) A descrição do teu blogue é perfeita para o que encontramos aqui, e eu estou tão contente por ter encontrado o teu cantinho.
ResponderEliminarAs imagens inspiram-me a ir para a cozinha... a música e o vídeo são uma lufada de ar fresco e de alegria.
A mudança da hora, também não gosto nada, sinto que nos estão a roubar parte da tarde e de sol... e ainda por cima, numa estação tão bonita.
Beijinho Mar
Lindo e grato, o teu comentário. Obrigada, linda Cláudia. É a vida de todos os dias em fragmentos. Uma espécie de memória fragmentária, creio. Com coisas que me fazem bem, na esperança de que possam fazer bem a outras pessoas.
ResponderEliminarFico feliz e agradeço esse carinho.
Nunca consigo habituar-me realmente a esta mudança. E sim, com essa sensação de que parte da luz nos é roubada.
Um beijo grande para ti! Obrigada outra vez.
Mar