Quando vou ao supermercado ao final do dia, vejo-a sempre. Por volta das sete da tarde. A hora é mais ou menos essa. Uma rapariga bonita, com ar frágil e tranquilo. Vem sozinha pelo passeio empedrado e irregular. Muito devagar. Numa cadeira de rodas que controla com uns botões. Move-se assim. E a solidão dela é tão bonita quanto inesperada. Estamos habituados a uma série de construções, a uma imagética onde a realidade parece ter de caber. Deve ser por isso que aquela solidão tem qualquer coisa de desconcertante. Mas faz as compras todas sozinha. Nunca a vi com ninguém, em nenhum destes dias. Não há ajudas nem protecções. Orienta-se sozinha e, pelo ar pouco deambulatório com que faz as compras, quando chega a casa, quem faz o jantar, é ela. A rapariga do Lidl. A rapariga que vejo quase todos os dias. Isto não é voyeurismo, nem poesia a partir do inesperado, nem benevolência caridosa, nem aquele registo piedoso e eufemístico que retira dignidade. Olhá-la inspira um respeito enorme. E outras coisas do domínio da grandeza. Admiro-a em silêncio. Sempre que a vejo. Sempre que me lembro dela.
Andar. Caminhar. Sentar e levantar. Parece tão simples. Tão adquirido. Não se pensa nisso. Nenhum desses movimentos é pensado. E claro que não tem de ser assim. Não temos de dar densidade contínua ao facto de caminharmos ou de respirarmos ou de mexermos bem os dedos. Mas, de vez em quando, esse exercício interior coloca-nos e às nossas angústias intermináveis no lugar devido. A ver se consigo dizer bem o meu ponto: é não ter o direito de. É isso. Eu olho para esta rapariga bonita que anda sozinha numa cadeira de rodas a fazer as coisas "normais" e penso que não tenho o direito de entregar os pontos e de ficar muito triste com não sei o quê que não correu bem no meu dia. Sempre fui muito desse género. Nunca fiquei muito tempo a ter pena de mim, face às inevitáveis tragédias pessoais que fizeram/fazem parte do caminho. Mas esse traço tem uma densidade cada vez maior, muito possivelmente por ser tão posto à prova. Uma e outra vez, a ideia que acaba por (me) resgatar é esse não ter o direito de que repito tantas vezes, a propósito de tantas coisas. Se estou muito cansada porque às vezes as coisas parecem tantas e tão urgentes, que penso que não dá. Uns segundos depois, o meu pensamento vai directo para as mulheres que têm de estar numa fábrica às cinco ou às seis da manhã e que orientam a vida delas e da família como podem/conseguem. E a seguir a essa imagem, a formulação não tenho o direito de. Implacável, a afastar a auto-comiseração. Se estamos vivos. Se o nosso corpo nos permite andar, é mesmo andar em frente e fazer por merecer a vida que há em nós. E claro que sim. Chorar também faz parte do processo. Sentir as mágoas e as perdas e as ausências. Sentir que somos insuficientes ou até mesmo insignificantes. Pedir perdão quando é para isso e sem grandes demoras. Perdoar, se nos for dada essa hipótese. E almas e corações limpos. O mundo precisa tanto disso.
E de luz. A luz é muito necessária. Mal chego a casa, acendo uma vela perto do fogão. Fica ali no cantinho, a iluminar os mármores e a comida a ser feita. Não é um detalhe místico nem nada que se pareça. É uma daquelas coisas pequenas dos dias. Isso e fazer entradas rápidas, para ir partilhando antes do jantar. Esta é uma daquelas no espírito da comida de que gosto tanto e que faz mesmo sentido partilhar: sem ingredientes estranhos e/ou exóticos, acessível, rápida de fazer e que sabe mesmo bem. Só esta semana, tive de fazer disto duas vezes. Há pedidos que não podem deixar de ser atendidos:) Pode ser feita para entrada de refeições com muita gente à mesa. Ou para os dias normais. Dias como os destas imagens. O Outono aqui. Tenho guardado aqui todas as estações do ano no meu jardim. Desta vez, o Outono ali fora. O Outono que deixa adivinhar os limões que estarão prontos nos meses de Inverno. As marcas das estações todas de muitos anos na terracotta dos vasos grandes. As folhas no chão, as árvores a ganhar as cores fogo desta altura. E a minha gata tranquila, que anda sempre por aqui. É isto. Comida dos dias normais. Os tais dias em que vejo a rapariga do Lidl. A fazer a vida normal. Contra todas as hipóteses de normalidade. Às vezes, é assim. As hipóteses todas que estão contra não valem nada. As pessoas fazem a diferença, nesses processos que parecem perdidos à partida.
Chouriça com cebola vermelha em (muito) vinho tinto
NB: Esta receita ficará arruinada se não se usar chouriças de qualidade. Os talhos que merecem a nossa confiança têm (quase) sempre produção própria. Escusado será dizer que todas as chouriças que forem laranja terão como única consequência disseminar esse laranja desinteressante no molho e transformar isto numa lástima.
1 chouriça + 1 cebola vermelha + meio litro de vinho tinto + 1 colher (de sopa) de açúcar amarelo + azeite, coentros q.b.
Corta-se a cebola em rodelas finas (costumo usar a mandolina, que fica melhor) e a chouriça em rodelas em viés, para cozinharem melhor e para ficarem mais bonitas:) A seguir, leva-se ao lume uma sertã (larga) com a cebola, num fio de azeite generoso. Deixa-se estar uns segundos, até sentirmos a cebola a "estalar". Nesse momento, acrescenta-se as rodelas de chouriça, dá-se uma volta breve com uma colher de pau e acrescenta-se a primeira dose de vinho, até cobrir a chouriça e a cebola. Deixa-se evaporar e acrescenta-se vinho outra vez. Volta a evaporar e, a seguir, mais um pouco de vinho. Da última vez que se acrescenta o vinho, junta-se a colher de açúcar amarelo. Mexe-se e é esperar até que o vinho evapore um pouco, mas não totalmente. Pode juntar-se mais um fio de azeite, no final e coentros, se assim se quiser. Serve-se e é só esperar pela alegria, mal isso aconteça:)
Antes de fechar esta página, queria deixar a minha gratidão à Sofia. Por isto que ela fez. Que foi tão bonito quanto inesperado. Não estou habituada a ser citada. Conheço outras dimensões, nisto das palavras. Não muito boas, infelizmente. Foi bom conhecer esta, para variar um bocadinho. E num sítio solar como o Às nove no meu blog, que procura deixar coisas boas todos os dias. Não consegui agradecer de outra forma, fica aqui. Tenho muitos defeitos, mas não o da ingratidão.
A música é esta porque me tem acontecido todos os dias desta semana, enquanto conduzo. Branko. Let me go.
Chouriça com cebola vermelha em (muito) vinho tinto
NB: Esta receita ficará arruinada se não se usar chouriças de qualidade. Os talhos que merecem a nossa confiança têm (quase) sempre produção própria. Escusado será dizer que todas as chouriças que forem laranja terão como única consequência disseminar esse laranja desinteressante no molho e transformar isto numa lástima.
1 chouriça + 1 cebola vermelha + meio litro de vinho tinto + 1 colher (de sopa) de açúcar amarelo + azeite, coentros q.b.
Corta-se a cebola em rodelas finas (costumo usar a mandolina, que fica melhor) e a chouriça em rodelas em viés, para cozinharem melhor e para ficarem mais bonitas:) A seguir, leva-se ao lume uma sertã (larga) com a cebola, num fio de azeite generoso. Deixa-se estar uns segundos, até sentirmos a cebola a "estalar". Nesse momento, acrescenta-se as rodelas de chouriça, dá-se uma volta breve com uma colher de pau e acrescenta-se a primeira dose de vinho, até cobrir a chouriça e a cebola. Deixa-se evaporar e acrescenta-se vinho outra vez. Volta a evaporar e, a seguir, mais um pouco de vinho. Da última vez que se acrescenta o vinho, junta-se a colher de açúcar amarelo. Mexe-se e é esperar até que o vinho evapore um pouco, mas não totalmente. Pode juntar-se mais um fio de azeite, no final e coentros, se assim se quiser. Serve-se e é só esperar pela alegria, mal isso aconteça:)
Antes de fechar esta página, queria deixar a minha gratidão à Sofia. Por isto que ela fez. Que foi tão bonito quanto inesperado. Não estou habituada a ser citada. Conheço outras dimensões, nisto das palavras. Não muito boas, infelizmente. Foi bom conhecer esta, para variar um bocadinho. E num sítio solar como o Às nove no meu blog, que procura deixar coisas boas todos os dias. Não consegui agradecer de outra forma, fica aqui. Tenho muitos defeitos, mas não o da ingratidão.
A música é esta porque me tem acontecido todos os dias desta semana, enquanto conduzo. Branko. Let me go.
Como te compreendo... conseguiste transmitir tudo sem "benevolência caridosa, nem aquele registo piedoso e eufemístico que retira dignidade".
ResponderEliminarum beijinho, doce Mar.
Ainda bem que sim. As palavras podem ter tantos equívocos dentro, por vezes.
Eliminar"Doce Mar" é uma formulação tão bonita. Como um cobertor num dia frio. Obrigada por isso.
Um beijo para ti.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarJá esperava por esta receita há muito tempo. As primeiras fotografias apareceram num post relacionado também com algo muito lindo e valioso: a celebração de uma amizade. Mais importante por de virtual ter passado a real.
E cá está a receita. Inserida num post que não podia ter sido melhor escolhido. As palavras são como as cebolas: primeiro fazem chorar e depois são doces.
As lágrimas não são de tristeza ou de auto-comiseração, advém sim da constatação da realidade esquecida com muita(tanta!) facilidade: não darmos nada mas, mesmo nada como garantido.
E perante as adversidades, lutar. Sempre, com unhas e dentes.
Sim, também é assim que penso. O que ás vezes não penso é que não tenho o direito de me queixar, face ao que tenho.
E a Mar, com a sua escrita poética e acutilante, (re)lembrou-me disso, que é tão necessário! Bem como a luz, sim. Senão exterior, pelo menos interior.
Adorei as fotografias, principalmente a da árvore e da Salomé! Já não a via por aqui há algum tempo.
Quanto a esta receita, acho que vou experimentar já neste fim - de - semana. E de certeza que me vou lembrar da Mar e da "rapariga do Lidl". Que mesmo sem a conhecer, através de si e da sua escrita, já me deu uma (grande) lição!
Um beijo do Algarve, em véspera de fim - de -semana de chuva (segundo as previsões),
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarJá devia ter deixado aqui esta receita. Essa referência foi já há tanto tempo. Do último almoço com a Babette. Os dias transformam-se em meses. E os meses em anos. Uma das constatações que o passar do tempo permite.
É uma realidade difícil, a desta rapariga. Cheia de obstáculos. O caminho que ela faz todos os dias é uma metáfora disso mesmo. Ainda ontem me lembrei disso, ao atravessar a estrada que ela atravessa para chegar ao supermercado. Acredite que é preciso uma coragem notável, dada a configuração e o tráfego daquele ponto específico.
Obrigada por ter gostado. E sim, há algum tempo que a Salomé não aparecia numa das páginas. Faço tantos registos dela, enquanto ando ali fora no jardim. Uma presença serena e sábia, a dos gatos. Um amigo disse-me que estão associados a boas energias. Que, de alguma forma, recolhem para si as coisas más. Por isso é que, quando estamos mais em baixo, não nos largam. Ele é um bocadinho místico, mas eu achei que isto era lindo:)
A ver se corre bem, se experimentar. O meu dia de ontem começou com uma colega de trabalho a dizer que tinha feito e que tinham adorado. Foi uma boa maneira de começar o dia, essa. Muito real e muito próxima.
A chuva de fim-de-semana dá vontade de aconchego. E isso é bom. Um beijo.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarComo prometido, cá estou eu a dar conta do resultado desta entrada. No domingo, foi um inicio de refeição extremamente agradável! Não sei se a chouriça que utilizei foi a mais apropriada, foi o melhor que encontrei.
O meu marido adorou. Sobrou um bocadinho de molho, que vou usar hoje para fazer um arroz para acompanhar o jantar.
Eu também gosto muito de gatos. Aliás, gosto muito de animais. Temos um cão, o Simba.
Concordo plenamente com a opinião do seu amigo. Não sei se conseguem recolher as coisas más mas, pressentem quando estamos menos bem. Sei, por experiência.
Tudo o que nos transmitem é tão bonito não é? E sem exigir nada em troca.
Um beijo do Algarve, com o Outono plenamente instalado. Faz parte.
Sandra Martins
Boa noite, Sandra
EliminarObrigada por isso. E fico sempre feliz. Creio que sabe. Seja como for, não faz mal nenhum repetir. O agradecimento e essa alegria. Bom que as receitas sejam vividas. Especialmente quando são assim tão simples como esta entrada. Aqui, o molho nunca sobra:) Irresistível, com pão.
E sim, os animais (pres)sentem-nos. Parece que estão a pedir mimos ou atenção e é o contrário.
É Outono outra vez. E é tão bonito.
Um beijo grande para si. Dias bons de Outono!
Mar
Sempre o bom gosto. A delicadeza. O olhar atento. O sabor e o saber, unidos na escrita. Parabéns num beijo
ResponderEliminarSempre a tua amizade. Com o Vasco, primeiro. Comigo, depois. Que eu possa merecer sempre essas tuas palavras. Obrigada, num abraço muito nosso. Meu e do Vasco.
EliminarUm beijo.
Mar
As suas fotos e as suas palavras sâo uma verdadeira inspiraçâo.
ResponderEliminarParabéns e bem haja Mar.
Tão bonito e tão grato, ser lida assim. Muito obrigada. Fico bem feliz. Que possa ser sempre assim.
EliminarUm bom fim-de-semana!
Mar
Gostei tanto de ler este texto... a rapariga do Lidl, ensina-nos o quanto devemos ser gratos e dar valor às nossas capacidades, às pequenas coisas, pequenos momentos do nosso dia-á-dia e que na realidade são tão importantes... Obrigada Mar, por me fazeres reflectir e dar valor à vida.
ResponderEliminarBeijinhos
Olá linda Cláudia,
EliminarEsta rapariga é muito bonita. E tem uma história de vida tão trágica. Soube depois de escrever este texto. Eu não sabia nada dela. Só o que via. Fiquei a admirá-la ainda mais.
Nada a agradecer. E sim. Vidas pensadas. Valorizadas.
Um beijo para ti. Obrigada.
Mar
Olá doce Mar :)
EliminarDá mesmo que pensar, sim... e valorizar sem dúvida.
Outro para ti ;)
É fazermos o caminho contrário, relativamente às nossas perdas e mágoas e limitações. Creio que é por aí.
ResponderEliminarLer este "doce Mar" no final de um dia cansativo fez-me bem. Obrigada por isso, querida Cláudia.
De nada ;)
ResponderEliminarBeijinho grande e um obrigada também, por toda a doçura e sentimentos bons que este espaço me transmite.