As coisas do vento, do mar e da terra.




















Para entender Lagos, é preciso entender o vento. Os dias podem ser quietos e só com sol. Mas a partir do final da tarde, aquele vento de Lagos. Parece vir da água e toma conta da cidade e das coisas sem aviso prévio. Eu gosto que assim seja. É libertador. Como se o calor acumulado fosse dissipado. Lagos não é uma cidade-cápsula. É uma cidade que tem qualquer coisa de indomável. E é bem resolvida, a minha cidade. O vento dura quase toda a noite, como se andasse a tratar de assuntos inadiáveis:) A partir de uma determinada hora, cessa. Depois, é só o som do mar e das gaivotas. E é mais ou menos por aí que o dia começa a ser sol. 
Neste post, as coisas feitas com coisas do mar e da terra. A comida de Lagos também tem esse traço. A história não é só feita de peixes. E seria tanta, se assim fosse. Os peixes das águas frias, vindos de Sagres. A comida de Lagos tem os cheiros e os sabores da serra. E carne. Também a carne. Creio que será a primeira vez que aqui deixo uma receita de um prato de carne feito a sul. E tão especial, esta comida. Coelho com funcho e ameixas secas. Os três ingredientes vindos através da Dª Deolinda, do Mercado de Lagos. Eu perguntei se ela conseguia arranjar coelho. E ela disse logo que sim. Depois de tantos anos, este dado implícito: o da confiança. Fez um telefonema, encomendou outro coelho para ela e uma galinha com o sangue, para outra pessoa assim como eu, disse ela:) No dia seguinte, lá estava o meu pedido, vindo da serra. Ficou a repousar no tempero o dia todo. E à noite aconteceu. Enquanto o vento também acontecia lá fora. 
Na mesma página, a minha maneira de fazer arroz de lingueirão. Numa concha deste arroz caldoso, o mar e as ervas da terra. Tão aromático, tão cheio de densidades alquímicas. Ficam estas duas receitas. E o único vinho de que consegui guardar imagem, por me distrair com a comida e com o mar:) Fica o registo de um branco de que gostei muito e da aguardente de medronho muito fresca dos finais de refeição, para acompanhar as coisas doces. 
E o mar. E um livro. E as cores. Das roupas fáceis de Verão. Das ervas. Dos peixes. Das minhas especiarias guardadas em cápsulas. E dos desenhos nas pedras. O sol e a lua, assim juntos numa pedra. E um mergulho do meu marido. Só ele, para entrar no mar antes das nove da manhã:) E o mar. Já disse, eu sei. Mas o mar. Sempre ali, o mar. E aqui, de cada vez que deixo as coisas de Lagos. 
Com mais esta comida de Lagos, a minha gratidão às pessoas de Lagos. À Dª Deolinda e ao Sr. Jorge, da banca dos frutos e dos legumes. A primeira que se vê, mal se sobe as escadas. Ao Sr. Zé das especiarias. A minha comida não seria a mesma, sem aqueles pós que só consigo ali e que depois me acompanham o ano todo. Ao senhor da banca dos Mariscos Campôa. Ao Miguel da Sommelier, pela simpatia. À loja de utilidades mais completa de Lagos, a Casa Trindade. À vida. Uma gratidão muito cheia de sol à vida. 

Coelho em vinho tinto com funcho e com ameixas secas

1 coelho + 6 rodelas (finas) de funcho e rama (para salpicar no final) + 4 dentes de alho (esmagados e com um pouco da casca) + 1 folha de louro (sem a nervura do meio) + sumo de meia laranja + meio litro de vinho tinto + Maizena Express, sal, azeite e ameixas secas q.b. 

Lava-se bem cada pedaço de carne, pelo óbvio e para eliminar a possibilidade de ossos pequeninos. A seguir, coloca-se no tacho onde será cozinhado e tempera-se, usando todos os ingredientes da sequência, excepto as ameixas e a rama de funcho. Envolve-se tudo com as mãos, para integrar bem os sabores e deixa-se tomar o tempero durante (pelo menos) quatro horas. Leva-se ao lume durante 45 minutos: fogo forte nos primeiros 10 e brando nos 35 minutos a seguir. Tapa-se e vai-se mexendo com cuidado, de vez em quando. 
Quando estiver pronto, leva-se ao lume uma sertã larga só com um fio de azeite. Deixa-se aquecer e coloca-se os pedaços de coelho um a um, para que fiquem dourados. Vira-se os pedaços uma única vez e, a seguir, acrescenta-se o molho que ficou no tacho, depois de rectificados os temperos e acrescentada a Maizena. Para que o molho fique ainda melhor e mais bonito, passa-se pelo coador. Pouco antes de servir, as ameixas secas, espalhadas aleatoriamente e a rama de funcho, rasgada com as mãos por cima da carne, para não se perder nada do aroma:) 

Arroz de lingueirão
NB1: A sul, o lingueirão é vendido ainda vivo. Nos outros sítios todos, raramente. Vende-se previamente (e incompreensivelmente) cozido. Se assim for, mais vale não comprar. 
NB2: É imprescindível que o arroz seja carolino. 

1 quilo de lingueirão + 1 cebola (picada) + 2 dentes de alho (picados) + 1 folha de louro (sem a nervura do meio) + 1 tomate coração-de-boi (grande e sem a casca) + metade de 1 pimento verde + 1 colher (de sopa) de pimentão doce + 1 tigela de arroz carolino + sal, azeite e coentros q.b.

O lingueirão deve estar duas horas em água fria, para libertar a areia que houver. Decorrido esse tempo, leva-se a cozer em água a ferver (cerca de 1 litro). Dois minutos de cozedura. Não mais. Retira-se com uma escumadeira, passa-se por água fria e elimina-se as conchas. Corta-se o lingueirão em pedaços (costumo cortar em três partes iguais). A água de cozer o lingueirão deve ser coada e reservada. 
A seguir, leva-se ao lume a cebola, os alhos, o louro e o pimento em tiras, num fio de azeite. Quando a cebola ficar translúcida, acrescenta-se o tomate, partido em pedaços. Um pouco de sal e de coentros e deixa-se apurar durante uns minutos (cerca de 5). Junta-se a seguir os pedaços de lingueirão e envolve-se no refogado. A seguir, a água de cozer, até ser o dobro do volume do lingueirão. Deixa-se ferver, acrescenta-se o arroz, sal e coentros a gosto, a colher de pimentão doce e deixa-se cozer o arroz. Se necessário, acrescenta-se mais água. Rectifica-se de sal e de coentros antes de retirar do lume e serve-se quanto antes, para que não se perca nada daquele caldo que sabe a mar:) 

A música é de uma banda de que ando a gostar (muito). Wild Nothing. 


12 comentários:

  1. Olá Mar,

    Este post é um verdadeiro hino à vida. Caracteriza-se por ser tão bonito nos seus retalhos de momentos. Adorei as cores e a paz que vem do mar e das boas energias. A vida deve ser sempre a tentativa de nos rodearmos de encontros com energias positivas. Tens isso tudo aí em Lagos, desde as pessoas, aos lugares e às comidas.

    Foi muito bom saltar até aí, deixando, por instantes, que o meu mar fosse ao encontro do teu.

    Abraço.

    Patrícia

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    1. Olá Patrícia,

      Obrigada por teres gostado. Das cores, do mar e das boas energias. Muito disso tudo, na vida. Não só na vida que vai de férias e que é azul. Bom que assim seja. E que tentemos sempre. Todos os dias.
      Gosto muito de viver. E sinto uma gratidão enorme "só" por isso. Não consigo dizer melhor.

      Um abraço para ti, aí no teu mar.


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  2. Gosto sempre tanto dos relatos dos teus dias em Lagos :) Nota-se a felicidade despreocupada das férias. Aqueles dias leves e bons que nos enchem a alma e nos preparam para o resto do ano.
    Ontem, consegui umas garoupas acabadas sair do mar, depois de um telefonema ao Paulo, o meu fornecedor de peixe ;) Muito na linha da tua D. Deolinda :) Os dias têm sido bons, por aqui, com família do meu marido de visita à ilha. Apesar de eu trabalhar, ainda há muito dia depois das 17:30 ;) Uma das coisas boas do verão.

    Continuação de dias felizes para vocês.

    Um beijo grande,

    Ilídia

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    1. Olá Ilídia,

      Os dias de Lagos ficam aqui sempre. Que haja sempre a possibilidade do vento de Lagos. E dos dias em que não há compromissos, nem horas marcadas, nem a sensação de que nos esquecemos sempre de alguma coisa. Por estes dias, o tempo é medido no avançar das páginas dos nossos livros, nas comidas que quero fazer e nos vinhos que bebemos:)
      E sim, há muito dia depois das 17.30. Especialmente no Verão. Fazes muito bem:)

      Dias felizes para vocês também. Muito.

      Um beijo.

      Mar

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  3. Só a Mar para fazer um post com tanta sensibilidade sobre o Algarve, como algarvia agradeço por isso.
    O Algarve é isso tudo, mas é também preciso uma cozinheira de mão cheia para entender os cheiros, os sabores da terra e do mar e os seus pratos são uma prova disso.
    A gastronomia do Algarve sempre andou de mão dada com o mar e a serra. A Mar tem consigo o amor das coisas simples.Contiuação de boas férias. Um abraço.

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    1. Olá Aliete,

      Agradeço eu. Muito. As suas palavras todas. Uma cozinheira de mão cheia que tem consigo o amor pelas coisas simples e que tentou dizer um bocadinho o seu/nosso Algarve. A comida algarvia é uma síntese maravilhosa. O mar e a serra. As coisas do tempo quente e as do tempo frio. O doce e o salgado.
      Não preciso de muito para ser feliz. Que haja comida e fogo para a fazer, costumo pensar. E em Lagos é ainda mais fácil, a alegria pelas tais coisas muito simples. É assim.

      Obrigada outra vez. Um abraço para si.

      Mar

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  4. tudo é lindo...inclusive o texto...amei!

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  5. um elogio ao Verão, como só tu podias fazer.

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    1. Obrigada a ti. O Verão é tão bonito e tão de guardar. Pensando bem, o Outono também. E o Inverno. E a Primavera:)

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  6. Olá Mar,

    Mais dias de Lagos aqui! E como são tão bem descritos.

    Deste lado sente-se o respirar das férias, o haver tempo para tudo.

    Eu que não passo sem o mar mas, moro no interior algarvio não podia concordar mais consigo: a gastronomia algarvia é muita rica e não se faz só de peixe e cataplanas. Muito embora sejam excelentes, claro.

    Para não variar, adorei as suas fotografias e as receitas. Gosto imenso de coelho e de arroz de lingueirão. Este último nunca experimentei fazer em casa.

    E os salmonetes em papelote também!

    Só dispenso é a aguardente. Até tenho caseira, feita por um tio do meu marido mas, não consigo. É como beber álcool puro.

    Um beijo do nosso Algarve, desejosa que cheguem as férias (quem me dera que no fim delas tenha tão boas memórias como estas suas),

    Sandra Martins

    PS - A fartura da fruta de Verão começou agora lá em casa. A "formiguinha" vai começar a trabalhar. Talvez ainda haja troca de frasquinhos.

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    1. Olá Sandra,

      Dias de Lagos, todos os anos. Ficam sempre aqui, as coisas do sul, tal como eu o entendo e vivo. A gastronomia algarvia junta o melhor do mar e da terra. Sínteses maravilhosas. E não, não é só peixe e cataplanas. Curiosamente, aprendi este ano que a cataplana era mais usada para fazer pratos de caça. Fiquei com essa ideia. Hei-de experimentar.
      Obrigada por ter gostado dos registos mais ou menos aleatórios da comida e das coisas. E a ver se faz arroz de lingueirão:)
      Quem bebe a aguardente de medronho é o meu marido. Eu não gosto. Só sinto o queimar, ao provar e passo de boa vontade:)
      Hão-de ser boas memórias, as suas férias. Entretanto, aproveite bem a fartura da fruta de Verão.

      Um beijo.

      Mar

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