Dª Alzira.


















De uma maneira ou de outra, creio que todos temos pessoas assim nas nossas vidas. Pelo menos, eu gosto de acreditar que sim. Que as existências todas terão esta dimensão. Podem ser a nossa mãe. A nossa avó. Uma tia. A mãe de uma amiga. A cozinheira de um restaurante quase secreto onde as pessoas vão, na esperança de aceder a comida feita com almas destas. Todas as Donas Alziras das nossas vidas. Que são uma casa. Uma família. Nunca são só a família de sangue. Mulheres destas significam aquela formulação reconfortante e franca: há sempre lugar para mais alguém. E é mesmo assim, quando há a dádiva de mulheres destas. A palavra é mesmo dádiva, sem filtro de nenhuma espécie. Para estas mulheres, a felicidade é um ofício diário e passa por ter a mesa cheia. Por reunir os filhos, os netos, os sobrinhos, os filhos do coração. Nelas, a alegria é franca e imediata, não conta histórias nem está à espera de recompensa. Por isso é que são uma dádiva. E o coração delas é assim como a mesa das suas casas: há sempre lugar para mais alguém.
A comida, quando feita por mãos destas, é uma espécie de abraço. Não há cerimónias nem cerimoniais. Vamos buscar um prato, ocupamos o nosso lugar à mesa e sim, há sempre qualquer coisa para comer. E quando não há, faz-se num instante e nunca dá trabalho, mesmo que até saibamos que sim, que fazer coisas até dá trabalho. E como eu respeito cada declinação desse trabalho. As cozinheiras. As senhoras que fazem comida de acordo com aquilo que aprenderam com mulheres anteriores a elas, de acordo com aquilo que foram aprendendo por si. Comida intuitiva, feita de coração. As receitas delas têm essa cadência. Quando perguntamos quanto é que é para pôr de açúcar ou de vinho do Porto, a resposta é quase sempre assim: a olho. O sal é um punhado e a medida certa que dá para tudo é invariavelmente uma chávena almoçadeira que está invariavelmente marcada pelo uso quotidiano. Estas receitas entendem-se se as observarmos. Foi assim que eu fiz. Queria ver como é que a Dª Alzira fazia as rabanadas que tive o privilégio de comer há uns dias, quando estive lá a almoçar. Não sei se se consegue dizer a alegria deliciosa de comer rabanadas no epicentro de um Verão quente e talvez seja melhor assim: não tentar dizer. Mas sei que me ficou a ideia de a ver fazer as tais rabanadas. Aceitou isso com a mesma alegria com que me tinha recebido antes à mesa dela para um almoço que não estava previsto.
No dia marcado, recebeu-me. Fui guardando imagens dos objectos dela. Dos detalhes daquela cozinha. As coisas marcadas pelo tempo e pelo uso. Do fogo onde a comida é feita. Da mesa. Das flores que lhe merecem todos os cuidados e que são um dos seus orgulhos. Nesse dia, o meu filho foi comigo. À mesa daquele final de tarde, havia uma travessa de sardinhas de escabeche. Não passou muito tempo até que se sentasse com um prato à frente. A Dª Alzira estava ocupada a fazer as rabanadas, mas estava sempre atenta. Ia dando instruções, a ver se o menino queria mais, a dizer que era preciso fritar batatas para o menino e que ele ainda ia ter fome, se não comesse o prato de carne assada que ela tinha preparado. O menino fartou-se de comer:) Tanto que, nesse dia, perguntou se não havia problema por não jantar. Claro que não. Estava bem alimentado e muito feliz.
A Dª Alzira é mãe de uma das minhas melhores amigas. Como se não bastasse ter uma amiga como a Maria, ainda tenho a sorte de ter o carinho e a estima da mãe dela. E esse dado é muitas coisas boas na minha vida. O dia destas imagens é uma dessas muitas coisas boas e eu guardei-o. Em mim. E agora aqui. A homenagem possível. À Dª Alzira. A todas as Donas Alziras dos nossos mundos. Agora, a receita. Com a benção dela.  

Rabanadas da Dª Alzira
NB: O pão não tem necessariamente de ser cacete. O açúcar deve ser amarelo areado e as rabanadas devem ser feitas numa fritadeira e não numa frigideira. 

Pão (de véspera) + 6 ovos inteiros + chá preto + vinho do Porto + 1 pau de canela + canela em pó + açúcar amarelo areado + leite + óleo para fritar.

Corta-se o pão em fatias (mais ou menos com um dedo de espessura) e reserva-se. Faz-se o chá (deve ser preto), deixa-se arrefecer e acrescenta-se vinho do Porto (um copo generoso), leite q.b. e um pouco de açúcar (também deve ser do amarelo). Bate-se os ovos e reserva-se.  
Numa fritadeira, coloca-se uma quantidade generosa de óleo e deixa-se aquecer (faz-se o teste, colocando um pedaço de pão). Vai-se fritando as rabanadas, depois de passadas pela mistura do chá e dos ovos. Retira-se do óleo, passa-se para um prato com papel absorvente e depois pela mistura de açúcar e de canela. As rabanadas devem ser colocadas numa travessa previamente polvilhada com a mesma mistura de açúcar e de canela. Isto vai fazer com que se forme uma calda deliciosa e com que, umas horas depois/no dia seguinte, as rabanadas saibam (ainda) melhor. 

O vídeo de hoje é para a minha amiga Maria. Uma coreografia linda. Assim como as que ela concebe e que fazem com que o mundo pareça sempre um lugar melhor. Obrigada também a ti, Mary:) 


11 comentários:

  1. Lindo. Uma homenagem em forma de receita com aquele brilho nas palavras que só tu sabes dar. Ainda bem que existem Donas Alziras. Mulheres com letra grande. É como dizes, todos temos uma nas nossa vidas! Mas melhor, ainda bem que existe alguém com tanta sensibilidade como tu para escrever sobre essas Mulheres.
    Um beijo.

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    1. Olá Verinha,

      Ainda bem que sim, que existem. As nossas vidas seriam amputadas de uma dimensão tão bonita. Persistem, elas. Nos que amam. Nos que as amam. São sempre fortes, estas mulheres. Enchem as casas e os corações. Fiquei comovida com o teu comentário, querida Vera. Obrigada.

      Um beijo grande para ti.

      Mar

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  2. Adoro rabanadas, mas realmente só como no Natal. Tolice. É uma forma deliciosa de não desperdiçar pão.
    Vou guardar a receita da Dona Alzira (tem uns pratos bem fofos) que me aqueceu a alma logo pela manhã.
    Quer dizer, vir aqui aquece-me sempre a alma. :)

    Boa semana ♡♡

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    1. É tão bom comer rabanadas no Verão:) E sim. Transformas pão que já parecia ter dado o pleno numa coisa sublime. Guarda sim. São deliciosas. E as que resistem de um dia para o outro ainda são melhores.
      Obrigada por isso da alma. Boa semana com corações:)

      Mar

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  3. Que bonito o teu post homenagem à D. Alzira, às suas rabanadas e à amizade!
    É tão bom assim, tudo simples tudo do coração, vindo de um rosto iluminado pelos anos, de umas mãos de trabalho, de umas mãos sempre abertas.

    Um beijio grande, desta amiga que anda cansada, mas que tem juntado coisas bonitas dentro do caderno verde. Para vermos juntas,

    da Pipinha

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    1. Olá minha linda,

      Obrigada. Ela merece muito mais. Consegui isto. E fazer um bolo para lhe oferecer. E petúnias.
      Adoro as mãos dela. São as mãos das mulheres de quem se gosta logo. E sim, rostos destes são iluminados pelo tempo a passar. Nunca perdem o brilho.

      Duas amigas cansadas, a suspirar pelos dias de mar. Estão quase. Temos de combinar, por causa do nosso caderno verde:)

      Um beijo grande!

      Isa

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  4. Olá Mar,

    Venho sempre espreitar para ver se há novidades e vinha também para deixar a minha opinião acerca do livro do último post.

    E deparo-me com este post!

    Acerca do livro, tenho a dizer que só a Mar para me chamar a atenção para ele. Acho que resume a sua filosofia de vida: se não dermos importância ás coisas pequeninas e formos felizes com elas, escusamos de procurar e esperar por acontecimentos de grande relevância.

    Adorei o livro, claro!

    E este seu post, que me parece vir na sequência. A Mar, tal como eu, não teve o privilégio de ter uma avó que lhe transmitisse aqueles ensinamentos que só as avós sabem. Mas, deu bem a volta a isso.

    Basta estar atento e aberto para encontrar pessoas (muito) especiais. Como a Dª Alzira, a quem fez

    esta homenagem tão bonita e tão carinhosa.

    Demonstrando mais uma vez que não é preciso muito para sermos felizes. Bastam umas rabanadas,

    feitas por quem tem o coração nas mãos.

    Estou particularmente cansada por causa do calor, do trabalho e tudo o mais mas, de alma e coração

    iluminados por causa deste post. Obrigada por isso.

    Um beijo de um Algarve tórrido e que faz ansiar pelos dias de descanso,

    Sandra Martins

    PS - Obrigada pela receita também. O meu marido adora rabanadas, embora lhes chame fatias douradas.

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    1. Olá Sandra,

      Que bom, isso do livro. Fico feliz. É um daqueles textos intemporais, esse. Lê-se num fôlego. E sim, a minha vida declina-se dessa maneira. É aqui, a nossa vida. Agora.

      Não, não tive avós como a Dª Alzira. Muito longe disso. Mas tenho a minha mãe. E, contra todas as expectativas e coordenadas biográficas, acabei por adorar fazer comida.

      Esta senhora é de uma doçura enorme. Incansável, cheia de uma alma com uma luz irrepetível. Há pessoas assim. Gosto que ela e que essa luz sejam uma destas páginas.

      A felicidade é uma matéria mais simples do que pensamos. Respira em coisas destas. No dia das fotografias, estava cansada e um bocadinho triste. Ela e a minha amiga apagaram isso tudo. E as rabanadas também deram uma ajuda:)

      Que bom, que este post fez isso. Mesmo bom. A ver se faz as rabanadas da Dª Alzira para o seu marido. Pode chamar-lhes fatias douradas na mesma:)

      Um beijo.

      Mar

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  5. Boa tarde, Mar.
    Hoje, para mim, é um dia de avivar, ainda mais, as saudades. Durante anos, neste dia, preparei com muito carinho alguma coisa especial para os meus pais, pois faziam anos de casados. Há ausências que doem e muito. Ao ler as suas palavras e a homenagem que faz às D. Alziras das nossas vidas, senti-me reconfortada. A Mar descreveu, como só a sensibilidade da Mar sabe fazer, o imenso amor que algumas mulheres colocam nos gestos que fazem. Preparam comida que sacia a fome e alimenta a alma. Com pouca coisa, um punhado disto, uma pitada daquilo... sem se preocuparem muito com a exatidão das medidas. O amor e a boa vontade é que são imensos. Obrigada, por partilhar a receita da D. Alzira. Obrigada por homenagear a D. Alzira e por eu poder pensar que estas palavras poderiam ter sido escritas para a minha mãe.
    Continuação de uma boa semana.
    Bjs para a Mar e para a D. Alzira.
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Essa coincidência. Lamento muito. As palavras são sempre poucas, quando é assim. O amor é tão feito dos gestos de mulheres como a Dª Alzira. Como a sua mãe. De fazerem as coisas sem cálculos. Melhor, com os cálculos que interessam, que estas mulheres estão habituadas a transformar o que é pouco em muito.
      Sim, poderiam ter sido para a sua mãe, estas palavras. O seu lastro faz adivinhar uma mulher assim como a Dª Alzira. Estas mães deixam tanto. Os objectos delas. Os gestos. Os cheiros das coisas. As estações do ano e cada um dos seus rituais. Essas memórias são diamantes dentro de nós. Definem-nos e andam sempre connosco. Onde quer que estejamos. Onde quer que elas estejam.

      Uma boa semana para si também, querida Ana. Hei-de levar a sua lembrança à Dª Alzira. E obrigada a si.

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  6. Boa tarde, Mar.
    Hoje, para mim, é um dia de avivar, ainda mais, as saudades. Durante anos, neste dia, preparei com muito carinho alguma coisa especial para os meus pais, pois faziam anos de casados. Há ausências que doem e muito. Ao ler as suas palavras e a homenagem que faz às D. Alziras das nossas vidas, senti-me reconfortada. A Mar descreveu, como só a sensibilidade da Mar sabe fazer, o imenso amor que algumas mulheres colocam nos gestos que fazem. Preparam comida que sacia a fome e alimenta a alma. Com pouca coisa, um punhado disto, uma pitada daquilo... sem se preocuparem muito com a exatidão das medidas. O amor e a boa vontade é que são imensos. Obrigada, por partilhar a receita da D. Alzira. Obrigada por homenagear a D. Alzira e por eu poder pensar que estas palavras poderiam ter sido escritas para a minha mãe.
    Continuação de uma boa semana.
    Bjs para a Mar e para a D. Alzira.
    Ana

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