Cada dia (im)perfeito.


















Na cultura japonesa há um preceito ou princípio filosófico segundo o qual se procura ver/perceber a beleza no transitório, no imperfeito, no incompleto. Esse princípio tem a designação de wabi sabi e tem várias declinações. Todas elas muito belas. Todas elas muito densas. Uma das minhas declinações eleitas dessa filosofia da aceitação da imperfeição é o kintsugi, uma técnica que consiste em reparar objectos quebrados com uma mistura de ouro e de laca. Creio que terá que ver com o facto de haver nesse gesto delicado (e dedicado) uma vontade de aceitar a quebra, a imperfeição, a falha como dados inelutáveis da vida. Mas não de uma maneira inerte ou desalentada. Ao contrário: é um gesto que cobre com matéria preciosa o erro, o acidente ou tão-só o passar do tempo. E isso é de uma beleza enorme. E isso é só uma das hipóteses que temos, nas nossas vidas. Cobrir de ouro metafórico os nossos erros, as nossas imperfeições. Não para disfarçar ou maquilhar. Não é isso. Antes para contemplar melhor as nossas cicatrizes, as nossas quedas biográficas. Para não nos esquecermos delas. Para não nos esquecermos que pode até dar-se o paradoxo de serem lindas. A beleza pode habitar os lugares mais improváveis ou mais inesperados. E essa noção não tem que ver só com a estética. Seria muito, se assim fosse. Mas não é só isso. Os japoneses têm razão: isto da beleza é toda uma filosofia. Um pensamento-bonsai. Ramificado indefinidamente. Cuidado. Apurado delicadamente. A respirar bem o oxigénio de cada estação. Mais: o oxigénio cadenciado de cada dia imperfeito. 
Mas no imediato, naquele momento inesperado em que o nosso olhar se demora num detalhe qualquer que nos faz parar, não pensamos. Não há filosofia, não há livros, não há preceitos nem conceitos. Só esse detalhe que, num momento qualquer, nos fez parar. Pode ser a maneira como a luz de uma manhã de Maio se deixa cair num sofá branco. Pode ser essa mesma luz num ramo de lavanda e o Verão passado, guardado nesse aroma que persiste. Ou as flores frescas do dia dessa luz inqualificável, mais o cheiro das flores de laranjeira, que é o aroma de Maio e é coisa que não dá para guardar noutro lugar que não na nossa memória. Um objecto poético e etéreo que filtra sonhos ou que afasta pesadelos, consoante a interpretação que preferirmos. Mas lindo como só as coisas imperfeitas podem ser. Uma taça irregular e maculada pela vida, mas que consegue ainda assim, ser gostada. Não obstante as marcas ou as cicatrizes, é um objecto amado e preservado. A cada lasca na cerâmica, penso que é daquela vez que vai fragmentar-se mesmo. E não. Falhas e quebras pequeninas que vão contando a história desta taça na minha vida e uma persistência do domínio da graça. Ou o barro igualmente irregular, meio tosco, a ser uma espécie de jardim condensado. Tantas, as coisas que podem ser inesperadamente belas. Como um presente especial embrulhado numa página quotidiana. Ou pedras com sóis desenhados, oferecidas num momento de dizer adeus. E que nesses momentos, o nosso lastro seja de sol. 
E, claro, a comida. Sempre. Para todo o (meu) sempre. Por ser tão poesia e tão bonita, à medida que vai acontecendo com a música que for a do momento. Aqui, o verde da rúcula selvagem colhida num sábado de manhã pelo senhor José do mercado de agricultores em São Pedro do Sul. Umas horas depois desse gesto, nozes picadas, um vinagrete de mel e um prato a ser servido como se fosse uma arte qualquer. Éter, tudo. Tudo começa e tudo termina nessa substância misteriosa que alimenta narrativas e que, no fundo, é a memória. Como os livros e o que deles fica em nós. Estes das imagens. A cruzar coisas ocidentais e orientais. As declinações e as ramificações do pensamento e da estética muito essenciais. E delicioso, o subtítulo do primeiro. The beauty of accident, age and patina. Há palavras que nos escolhem. Estas, por exemplo.
Nesta página, a receita de uma tarte que é uma daquelas coisas que desconcerta, de simples e de deliciosa. Tarte de cebolas vermelhas, beterraba e feta. Será uma das coisas que farei com muito carinho para o brunch da minha querida Sofia, no workshop que ela vai fazer no dia 13 de Maio, em Viseu. Será uma manhã de sol, que eu sei. Num loft cheio de luz, neste sítio tão especial, bem no centro da cidade. Na véspera, mais uma apresentação do livro dela, desta vez na Fnac de Viseu. Às nove da noite de sábado. Bem de acordo com o espírito às nove no meu blog, formulação que (me) é tanto. 

Tarte de cebolas vermelhas, beterraba e queijo feta

1 embalagem de massa folhada + 5 cebolas vermelhas + 1 beterraba (pequena) + tomate-cereja em rama, sal, azeite, pimenta preta, vinagre de arroz e queijo feta q.b. 

Retira-se a massa folhada do frio e deixa-se estar durante uns minutos, antes de colocar na forma. Entretanto, corta-se as cebolas em rodelas finas (o ideal é usar a mandolina). Leva-se ao lume, num pouco de azeite e uns salpicos de sal e de pimenta preta, numa sertã. Deixa-se estar um bocadinho, até que as cebolas comecem a estalar. Vai-se mexendo, acrescenta-se tomate-cereja em rama e junta-se o vinagre de arroz. Deixa-se estar durante uns três minutos, mexendo sempre, com a ajuda de duas colheres de pau. Retira-se do lume e reserva-se. Entretanto, estende-se a massa folhada numa forma redonda, deixando o papel vegetal, para não ser preciso untar. Pica-se com um garfo e coloca-se as cebolas salteadas e o tomate. Vai ao forno durante cerca de 25 minutos ou quando a massa estiver dourada. Cinco minutos antes de retirar do forno, acrescenta-se a beterraba ralada, espalhando-a por cima. Pouco antes de servir, bocados de feta, partidos com as mãos. Serve-se. 

A música é dos Massive Attack. Uma das músicas que está sempre comigo. Onde quer que esteja. Por onde quer que ande. Angel. E aquilo das mulheres que estão sempre algures entre a luz e a sombra. 


2 comentários:

  1. Tão bonito. Desconhecia essa técnica japonesa de reparar objectos danificados.
    Obrigada
    E tu como estás?
    Beijinhos

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    Respostas
    1. É uma técnica cheia de poesia e de sentido. É bom pensar que dá para transformar os nossos erros em caminhos sinuosos de ouro.
      Estou bem. A seguir. A continuar.

      Um beijinho grande*

      Mar

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