Biblioteca infinita.


















Quando preciso de pensar num lugar qualquer onde, por momentos, tudo esteja no lugar, há sempre livros. No plural. Aquela coisa de escolher um livro e de resolver a questão pelo singular, não dá. É costume pensarmos muito (ou demasiado) no que falta acrescentar às nossas vidas. Mas o exercício ao contrário é tão ou mais importante. Pensar nas coisas de que podemos abdicar e estar bem ainda assim. Ir tirando, deixando ir com a corrente. Perceber a essência que está em nós, o essencial do que precisamos. E, com isso, a matéria real que nos compõe. 
Nesse exercício ao contrário, vou percebendo ao certo quais as coisas que posso entregar e continuar. E quais as coisas que (me) bastam. E assim, isoladas todas as coisas óbvias que não são coisas, a conclusão foi esta. Livros. Música. E aquela minha energia luminosa para fazer comida. Num exercício mais à frente e, se fosse preciso retirar ainda mais alguma coisa, que permanecessem os livros. Mesmo que tivesse de entregar tudo e que mais nada me restasse, o mundo seria, sempre e ainda assim, uma biblioteca infinita. 
De todas as minhas viagens silenciosas, as que faço no lugar a que chamar de casa no momento, ao longo das páginas que estiver a ler no momento. São essas as viagens maiores. Não excluem as outras, as que me fazem adorar estar num sítio em direcção a outro. Ir de um norte para um sul qualquer. De um este para um oeste. Respirar num hemisfério que não o meu. E voltar. Mas, ainda assim, se num raciocínio extremo, me dissessem que a minha cartografia pessoal teria de se limitar a uma única geografia, perguntaria se nessa geografia limitada daria para continuar a ler. Se sim, estaria tudo bem. Se não, arranjaria meio para que sim. A liberdade maior é por aí. Vem dos livros, para mim. E eu aprendi-a demasiado cedo, para me esquecer ou para achar que poderia viver sem ela. 
Há livros que são viagens de longo curso. Livros que são como atravessar um oceano, com aquela sensação que se tem, quando estamos lá em cima, que é a de não pensarmos muito a sério que estamos a atravessar um oceano. As grandes narrativas são um bocadinho isso. E, tantas páginas volvidas, a noção de que é mesmo no espírito de não estar a pensar muito no assunto nem a tomar grandes decisões. Com o Guerra e Paz que adiei indefinidamente, foi assim. Tinha tentado ler a primeira vez quando achava que estavam reunidas as circunstâncias ideais. E não. Uma segunda vez, com mais circunstâncias ideais e não outra vez. Até que chegou um dia em que terminei um livro e olhei para o volume primeiro do Guerra e Paz e pensei que talvez. Sem a componente de resolução das outras duas vezes. Só assim. Por ter terminado um livro e olhar para outro. E nada de circunstâncias ideais. Longe disso, agora que penso a sério. Lá está, aquela inconsciência necessária, quando nos propomos cruzar um oceano. E então, treze anos depois dessa primeira tentativa, lidos os quatro volumes e meses depois da última página do Guerra e Paz, a conclusão a que cheguei é que, na minha vida, houve um antes e um depois. E tanto tempo, até chegar a essa conclusão. Tantos anos, até avançar nas páginas sem estar sempre a olhar para trás, a tentar guardar os nomes das personagens e a tentar entrar na lógica da guerra. Costumava dizer sempre, naquela minha maneira ligeira de dizer as coisas que me negam, que a parte da paz era na boa, mas que a parte da guerra me desorientava e me fazia perder o fio. Mas é preciso não pensar no destino, na última página. Estarmos concentrados na viagem, no caminho. É (sempre) esse o sentido maior de tudo, creio. 
Que viagem. Escrita maior, a de Tolstói. Sem que seja só uma questão de sítios, de cenários, de contextos. Não tem que ver com isso. Tem que ver com o conhecimento interior da nossa condição. Como se tivesse vivido várias vidas e tivesse regressado para as dizer no Guerra e Paz. A perspectiva do privilegiado e a do muito pobre. A visão de quem teve tudo e perdeu tudo. De quem não tem nada e quer tudo. O olhar do sonhador. E o do cínico que não acredita em nada nem em ninguém.  E mais uma coisa: um ponto de vista impiedoso e esclarecido, relativamente à História, aos historiadores, às muitas verdades possíveis, face a um acontecimento, a um homem. Particularmente sem misericórdia, no que diz respeito à invencibilidade mítica de Napoleão. Do que eu gosto mais nas narrativas de Tolstói, é que o centro nunca é a personagem de abertura, digamos assim. O centro acaba por ser sempre uma das personagens aparentemente transversais, secundárias. Mas, a partir de um momento qualquer, percebemos que vamos acompanhar a crisálida. Que algo de muito especial vai acontecer. Seja como for, o lastro com que se fica, depois de um portento destes, não é bem do género de estar a inventariar ou a categorizar. Faltava este voo de longo curso à minha vida. E tão bom que o tenha feito. Depois, a maior questão é mesmo a das saudades. Durante umas boas semanas, senti saudades das personagens, dos lugares, do léxico, do imaginário russo. Depois passou, mas senti saudades das personagens como se fossem gente. 
Este capítulo da minha vida merecia comida portentosa. Por isso, a tempo da Páscoa, a minha versão de borrego assado. Com laranja e com alecrim. Mais do que tudo, este tempo é um tempo de alecrim. A receita, então. 

Perna de borrego assada com laranja e com alecrim

1 perna de borrego + 1 laranja + meio litro de vinho branco + 6 dentes de alho + 2 hastes de alecrim fresco + sal, azeite e pimentão doce q.b. 

O importante é temperar com tempo. De véspera, idealmente. E faz-se assim: lava-se a carne e coloca-se numa assadeira funda. Depois, o vinho, o sumo de laranja e o sal. Num almofariz, os alhos, o azeite e o pimentão doce. Esmaga-se tudo muito bem e espalha-se por cima da carne. Por último, o alecrim, tendo o cuidado de colocar também as hastes despidas das folhas, que dão ainda mais sabor. Deixa-se estar pelo menos 5 horas. Depois, mais um fio de azeite e é só tempo de forno. Duas horas. Nos primeiros 15 minutos a 180ºC, para ganhar aquele tom irresistível. Depois, reduz-se o fogo para 160ºC, cobre-se com papel de alumínio e deixa-se estar, vendo de vez em quando como estão as coisas e hidratando a carne com o molho delicioso que está a ser feito silenciosamente. Ao mesmo tempo, batatas assadas. Sal, um pouco de água e de vinagre de arroz. Azeite e alecrim. Se quisermos, arroz de açafrão. E sim, esta comida precisa de ser servida com vinho tinto. Deixo este das imagens. Muito bom. 

A música é lá de longe. O tango que aprendi neste festival tão especial. Tão bonita, a insubmissão desta dança. E a Argentina tão perto. 


2 comentários:

  1. A importância dos livros! Também sou uma apaixonada por eles. Partilho inteiramente da sua opinião , poderia ficar sem nada, mas deixassem-me os livros. E que sentido faz a frase do Borges " sinto que o paraíso será uma espécie de biblioteca."!( não sei se a reproduzi fielmente...) . Muitas vezes, sinto a nostalgia de não ter tempo, por falta de anos de vida, para ler tudo o que gostaria. Há que aproveitar o prazer que nos dão. Um beijo.

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    1. Olá Guida,

      Nem de propósito, quando formulei a abertura do post, ocorreu-me logo essa frase:) Parecia paráfrase. E sim, uma espécie de paraíso. Tão bom que a Guida tenha essas palavras guardadas.
      Também sinto essa nostalgia-urgência. No fundo, é tão breve, o nosso tempo aqui. Mas vale bem a pena. Por tudo. E muito, muito, se esse tempo (também) se declinar a ler. A vida é tão mais vasta, assim. Não a concebo de outra forma. E ainda bem.

      Um beijinho grande para si*

      Mar

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