Casa da Ínsua _ Penalva do Castelo.


























Normalmente, pensamos em sítios longínquos, quando queremos parar um bocadinho e ir. São planos que carecem quase sempre de lastros de tempo, de alguma antecipação, de remeter para um depois que, por definição, é sempre incerto. Esse processo faz parte do processo de ir e não é mau nem redutor. É o que é, faz parte. Mas do que eu gosto daquela coisa boa de decidir fazer um saco de viagem depois de um almoço e ir. Um ir sem adversativas. Imediato, simples, sem olhar para trás.
Para essas decisões boas e imediatas, nada como pensar em sítios perto de nós. Sítios que conhecemos vagamente ou que não conhecemos de todo. No caso do sítio que hoje deixo aqui, havia um património anterior. Memórias de infância, depois uma espécie de hiato, depois um regresso, depois mais uns anos de intervalo e depois isto. Uma vontade imprevista e imediata de ir à Casa da Ínsua.
São poucos os sítios onde o silêncio tem este carácter etéreo. O que quero dizer com etéreo é que não é um silêncio pesado, forçado, cerimonioso. É natural e livre. Não estamos preocupados em pensá-lo, porque estamos demasiado concentrados em vivê-lo. Tem que ver com jardins labirínticos onde apetece deambular como nas histórias de criança. Ou com a graciosidade imponente dos cisnes a cortar a água. Ou com as árvores antiquíssimas e as veredas do jardim inglês. Ou com as camélias e com as magnólias. Há caminhos com nomes das mulheres que ali viveram e uma rua que se chama Rua da Tristeza, por terminar no cemitério dos animais domésticos da casa. Há um jardim com as castas da Casa da Ínsua. E muita terra cultivada. Oliveiras para o azeite. Cardos e ovelhas para fazer um Queijo Serra da Estrela maravilhoso, não fosse a Casa da Ínsua o lugar onde todos os anos acontece este evento especial. É um lugar muito romântico, que cruza momentos históricos muito diferentes. Estas casas são assim. Têm camadas e camadas de tempo. Já viram muita coisa. Já sobreviveram a invasões e a privações. A incêndios e a abandonos. A Casa da Ínsua tem essas marcas inscritas e é impossível não querermos adivinhar as narrativas ou não sentirmos que o lugar fala connosco.
Acontece-me sempre ficar muito concentrada nos jardins dos sítios. Mal chego, pouso as coisas e quero é ir lá para fora. Dei-me conta mais uma vez que acabei por tirar imensas fotografias às flores e à água e às árvores e ao céu, com o acrescento de ter tirado umas quinze fotografias aos cisnes:) Eles gostam de pessoas e dá para fazer carinhos e tudo, que não fazem mal. Seja como for, o interior deste palácio que tem a palavra casa no nome é muito lindo e cheio de detalhes que eu não guardei e que lamento não ficarem neste post. Guardei o que me encantou mais, a começar pelas cozinhas. Uma muito beirã, muito granítica. Com panelas robustas de ferro e de cobre, a fazerem pensar em cozinheiras fortes, com temperos que são uma espécie de identidade. E uma outra que se chama cozinha branca, com aquele quadriculado branco e preto a que se dá o nome de piso maçónico e que significa muitas coisas misteriosas. As coisas nunca são coisas. 
Bem perto das cozinhas, o restaurante. Muito boa, a comida. Uma cozinha honesta, assente em bons ingredientes. Bem tratados e bem temperados, esses ingredientes. Um jantar ainda mais prolongado do que o costume. É uma benção, quando podemos fazer o pleno e dormir num sítio lindo, tranquilo e onde se come bem. Depois do tal jantar longo, abdicar do elevador e subir aquelas escadas antigas que levam ao piso dos quartos e que têm, de certeza, tantas histórias silenciosas. A seguir, pela noite dentro, o livro que comecei a ler ali. Andei anos até chegar a estas páginas. Confesso que as evitei, tal como evitei tantos outros textos ditos canónicos. Creio que tinha de chegar ao ponto em que não tinha ninguém a dizer-me que tinha de o ler, mesmo que não fizesse parte dos livros curriculares. Tantas as vezes em que o meu professor de Literatura Norte-Americana me dizia: read it. Lembrei-me dele e de como eu era ainda mais perdulária por essa altura. E é um pensamento que tem tanto de envolvente e de lúcido, como de desconcertante. Discute-se com este livro, não sei dizer bem. No fundo, a sensação que conservo é a de que acompanho até um certo ponto e depois começo a fazer perguntas interiores e a pensar que não é bem aquilo. Mas não deixa de ser um livro perigoso, para quem o entender à letra. Universal, intemporal, manual de iniciação para movimentos mais ou menos radicais, mas tão tónico, que dá pena que seja/tenha sido interpretado literalmente. Em todo o caso, o meu professor punk de literatura tinha razão: era mesmo de/para ler. E gostei muito de ter iniciado este livro num sítio tão especial, tão fora do tempo cronológico. Aconteceu assim. Tive a sensação de ter estado ali durante muito tempo e foi só uma noite, depois de uma decisão sem ponderação. O lugar e estas páginas lembraram-me uma coisa muito importante e que é constantemente levada pelas águas vorazes e frenéticas que são os nossos dias contemporâneos: temos sempre a hipótese de parar e de preservar uma distância necessária. Pode ser num sítio perto ou longe. E sim, também num livro pousado na cabeceira do nosso leito de todos os dias. Deixo aqui as coordenadas deste lugar-intervalo onde gostei muito de existir e onde regressarei. Com alguma sorte, será também assim de repente. Assim sem olhar para trás. 

A música é cheia daquela alma rough de que gosto tanto. Alabama Shakes, nesta rádio especial. 


2 comentários:

  1. Querida Mar,

    Ontem ao fim do dia, entre uma coisa e outra, dediquei tempo a olhar para o calendário e a pesquisar uma estadia na Casa da Ínsua. A acontecer será lá para Outubro. Uma coisa premeditada, sem o encantamento do ir assim sem mais. Mas creio que será lindo de viver na mesma. O livro despertou a minha atenção. Ando arredada dos livros, a ser consumida por outras coisas com menos encanto :)

    Beijos

    Íris

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    1. Que coincidência boa, querida Íris. Este sítio é tão pacificador. Seja qual for o registo. E a premeditação também tem muito encantamento. A vida é tão diversa e tão cheia de temperos. Bom que assim seja. Vai gostar muito da Casa da Ínsua, estou certa.
      Este livro também faz pensar no que (nos) consome. Fica como um dos meus livros fundadores. Adiei-o tanto, mas ainda fui a tempo:)

      Um beijinho*

      Mar

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