Comida que espera pelo melhor.
















Quando as pessoas ficam doentes ou quando as pessoas morrem, nunca sei o que dizer. Gosto/preciso tanto de dizer coisas, de escrever coisas, mas nessas alturas, as palavras falham-me sempre. Ficam dentro. Imprecisas, turvas, insuficientes. Como não sei nem consigo dizer coisas, só dá para fazer coisas mais ou menos silenciosas. Tento salvar o que posso das rotinas estilhaçadas. Tento lembrar-me do meu amor-devoção pela vida de todos os dias. De todas as coisas pequeninas e (quase) invisíveis que fazem com que cada dia normal seja um dia extraordinário. E interiormente, os meus mantras a fazer caminho. A normalidade é preciosa. A normalidade é o melhor de tudo. A normalidade somos nós a respirar cada agora. E não, não precisava que a vida me lembrasse disso de uma maneira tão extrema. Mas tudo bem. Aceito e reitero o amor que se renova a cada manhã. E, claro, fazer comida. Não deixar cair isso. Não entregar a outras mãos. Orientar-me e não perder o meu centro, que é um amor inesgotável pelo mundo que acontece. Até por aquilo que no mundo magoa e quebra.
Se digo e penso tantas vezes que as coisas podem sempre ser melhores, isto de fazer comida é o território onde isso é mais verdade. Não uma verdade que se atira à cara. Nada disso. É uma verdade sinfónica, como se fosse uma melodia que primeiro até é improvisada, mas que depois se declina como se fosse música numa pauta. E então, se os médicos dizem que, durante um tempo indeterminado, não vai dar para uma série de coisas, a minha comida adapta-se. Vive com isso. E viver com isso pode significar que um caldo não precisa de ser insípido. Pode haver uma magia qualquer e esse caldo insípido transformar-se num líquido-benção. Magia sem nada de sobrenatural ou de transcendente. É a magia mais bonita de todas. Porque não é de contos de fadas. É real e passa por enumerações próximas. Enumerações assim como esta: gengibre + funcho + aipo. Uma água boa, que faz com que as pessoas que não estão doentes queiram a comida das pessoas que estão doentes.
Este meu sítio tem dentro vida que respira. A começar pela minha. E a vida é como é. Uma formulação inapelável, esta. Mas, se pensarmos a sério, o estranho é que, a maior parte das vezes, isto tudo até vai funcionando. Os nossos corpos. Os corpos dos que amamos. Os corpos todos. E cada um dos mecanismos imperceptíveis do mundo. As coisas até que vão funcionando. Como todos os mecanismos, também os corpos são falíveis. Máquinas irredutíveis à condição inalienável de serem sangue e artérias e veias e carne. Aquilo que há em nós de invencível não tem nome e exame médico nenhum consegue localizar. Aquilo que há em nós de invencível e de realmente imortal é aquilo que em nós ama, aquilo que em nós (se) dá. O sublime da condição humana escreve-se assim e aquilo que sobreviverá aos nossos corpos-máquina será o quanto e o como fomos capazes de amar, de dar. 
A receita que fica hoje é o meu amor todo numa taça de ramen. Por estes dias, a minha comida tem sido dedicada a tratar, a cuidar. Caldos límpidos e aromáticos. Com a inspiração em tudo o que tenho aprendido silenciosamente sobre o mundo maravilhoso da comida japonesa. Eu sabia que uma taça mágica de ramen iria fazer toda a diferença. A minha intuição dizia isso. Dizia para ir buscar bençãos aos caldos simples e humildes que podem ser aquilo que nós quisermos. A minha intuição estava certa. 
E, à medida que cada um destes dias vai passando, aquela ideia boa da renovação, de nos projectarmos para lá destes intervalos que a vida conspira. Que havemos de ir assistir a esta conferência, na universidade do meu homem. Que havemos de ir à ARCO, para vermos a arte toda que nos apaixona e que nos move por geografias imprevistas e imprevisíveis. Que havemos de voltar a Lagos, ao nosso sul. Havemos de. Havemos de. Tudo aquilo que quisermos e que a vida quiser. Enquanto isso tudo, a Primavera e a vida continuam a acontecer lá fora. Os lírios e as outras flores, as árvores, as pessoas a ser felizes, as pessoas a ser infelizes. Tudo aquilo que acontece, alheio ao que nos acontece. E isso é bom. Que os dias aconteçam, indiferentes a cada uma das nossas tragédias individuais. No final do dia, ler pela noite dentro. Sempre. Muito. Como se isto tudo fosse acabar amanhã. A espuma dos dias nas crónicas dos jornais. E a ficção dos livros, que nos salva de todas as perplexidades que a realidade engendra. Nunca me passou pela cabeça ler um western. Nunca pensei ficar completamente presa a um imaginário destes, mas quando se escreve bem, quando se escreve a sério, as narrativas fluem-nos nas artérias. Este escritor passou (quase) despercebido enquanto foi vivo. Acontece. Mas que lastro. Que lastro. Quem escreve assim não morre. Fica (mais) um livro daqueles. Este
Pelo meio deste intervalo, comida que cuida, que toma conta e que espera pelo melhor. No fundo, é como se fosse esperança de beber e de comer. Ou comida que dá de beber e de comer à esperança. Não sei bem. Mas sei bem a receita deste ramen que espera pelo melhor. Fica aqui, a abrir um separador novo no blog: comida para quando as pessoas estão doentes. A vida é como é. Lá fora. E aqui. 

Ramen que espera pelo melhor

2 peitos de frango do campo + 1 talo de aipo + metade de um bolbo de funcho (pequeno) + metade de um alho francês (a parte mais verde, que fica melhor) + 1 cenoura + 10 fios de massa Udon (uso sempre desta marca e encontro aqui) + 1 gema de ovo + gengibre (como se fosse metade de uma noz) + sal, azeite, água, umas hastes de bróculos e hortelã q.b.

Antes de tudo o mais, colocar os peitos de frango a cozer num litro de água, com um pouco de sal, um fio de azeite, um talo de aipo cortado ao meio, a metade do funcho e a noz de gengibre (cortada em rodelas ou lascas). Mal começa a ferver, reduz-se o lume e deixa-se estar durante uns quinze minutos. Quando o frango estiver bem cozido e o caldo apurado, desfia-se a carne e filtra-se o caldo para uma taça larga, usando um coador. A seguir, devolve-se o caldo à caçarola onde foi feito e leva-se ao lume mais uma vez. Acrescenta-se a cenoura em rodelas (costumo usar a mandolina, para ficar mais delicada), as hastes de bróculos (cortadas como se fossem árvores pequeninas), os fios de massa e deixa-se cozer durante cinco minutos. Decorrido este tempo, junta-se o frango desfiado, o alho francês cortado finamente e umas folhas de hortelã. Prova-se e, se necessário, acrescenta-se sal, azeite e gengibre ralado.  
Quando se transferir para uma taça funda, coloca-se uma gema de ovo e deixa-se estar durante dois minutos. A seguir, é só desfazer a gema, mexendo com cuidado, para que se integre bem no caldo. Uma folha de hortelã e o resto da magia acontece por si. 

PS: Os últimos dias não têm sido nada fáceis e tenho uma série de coisas pendentes, entre elas, o email do blog. Mas responderei a tudo, como é meu hábito. 

E Underworld. I exhale. 


13 comentários:

  1. Mar,
    Este texto apertou-me o coração. Toca nos meus dois maiores medo Não o consigo verbalizar de forma nenhuma, aliás quase que não conseguia ler o texto até ao fim. Gostava de estar minimamente resolvida com estas inevitabilidades, indiferenças, com os corpos falíveis de quem amamos. Mas não estou.
    Que o melhor chegue, Mar. Que o melhor chegue a ti e às pessoas que amas.

    Beijinho beijinho.

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    1. Nunca estamos resolvidos nem tranquilos quanto a matérias destas, linda Mafalda. Creio que não é possível. E desculpa, que não queria isso de o teu coração ficar assim.
      O melhor chegou. Já tarde, ontem. E não consigo dizer a nossa alegria. Como se a vida e isto tudo que não dominamos desse mais uma hipótese.
      Obrigada por desejares o melhor. Fez/faz toda a diferença.

      Um beijo.

      Mar

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  2. Querida Mar,

    Comecei a ver o post e comecei a sorrir. pelo bilhete amoroso, pelo recorte de texto de Miguel Esteves Cardoso, que eu também adoro, e pelas imagens tão bonitas. Mas à medida que fui lendo, também eu fiquei de coração apertado... transparece nas tuas palavras, a tua preocupação, o teu receio, os teus medos e isso afligiu-me também. Eu também nunca sei que palavras usar, em situações tão duras como referiste. Mas desejo sinceramente que o teu marido fique bem, de coração, que possas/possam, voltar a respirar de alívio, rapidamente. Como a Mafalda disse, que o melhor chegue às vossas vidas.

    Reti do teu texto também, algo que já falei num meu, sobre quando as nossas vidas não estão bem, lá fora o mundo continua, as pessoas continuam a sorrir e isto, quase que parece cruel, por ser tão indiferente a nós e à nossa realidade. Mas como escreveste, ainda bem que assim é, a vida continua, mas mais que isso, talvez seja a vida a dizer-nos para termos esperança, a mostrar-nos o quanto é bonita e o quanto vale a pena. E a dar-nos força e até algum alento, em cada dia de sol bonito, em cada dia de Primavera e de flores que nos apaixonam.

    ''Aquilo que há em nós de invencível e de realmente imortal é aquilo que em nós ama, aquilo que em nós (se) dá. O sublime da condição humana escreve-se assim e aquilo que sobreviverá aos nossos corpos-máquina será o quanto e o como fomos capazes de amar, de dar. '' Este teu excerto, ficou como se tivesse sido gravado em mim. É tão verdade... o que sobreviverá a tudo é mesmo isto... o amor, o quando fomos capazes de amar e de dar... E amor, tu tens imenso, querida Mar. E é esse amor, que mesmo nas rotinas estilhaçadas, é uma força motriz das vossas vidas. Uma força imensa. Como o amor que pôes no que fazes, e na comida, por exemplo. Parece-me muito bem, o novo separador, comida para pessoas doentes. Comida boa e simples, que conforta. É isto que interessa e é essencial, pôr amor no que fazemos, confortar e amar, quem mais amamos.

    Já me alonguei, não é ? :) Um beijinho muito grande para ti, as melhoras dele, se precisares de algo, estou à distância de um email por exemplo. Estou a torcer por ti, por vocês, de coração. ♡

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    1. Os espectros foram afastados, querida Cláudia. E o final do dia de ontem foi indizível. Quando passamos da angústia e do medo para um respirar de alívio, é assim.

      As nossas vidas têm também esta possibilidade. A finitude a pender. A nossa. A dos outros. É o dado mais certo que temos. Face a isso, não dá para fazer outra coisa que não viver. Viver muito. Viver bem. Já sabia, mas estes dias tão difíceis reforçaram essa noção. E claro, o inevitável de atribuir às coisas a importância devida. Como se arrumássemos as coisas em gavetas. Outras angústias, outras perplexidades, outras preocupações. Ficam arrumadas e resolvidas, por serem tão menores.

      Não sei que sentido teve este momento da minha vida. A única coisa que sei, que sinto com uma força enorme é que é para andar para a frente e para continuar viagem. O devir, o agora. Tanto. E o passado quieto, tranquilo e fechado. Bem lá para trás.

      Agradeço, agradecemos muito o teu carinho. Chegou aqui, não obstante a distância e tudo o mais. Chegou (por) bem. As boas energias é que são :)

      Cuida de ti. Um beijo grande.

      Mar

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    2. Oh que bom, Mar:) Fico muito contente, que já possam respirar de alívio. E que continue a ser assim, que fique lá bem longe no passado, como referiste.

      É bem verdade, quando passamos por momentos duros e difíceis, é quando nos damos conta que há coisas tão pequenas e que muitas vezes lhes damos uma importância que não têm.

      Que bom ;) Essa força ;) Fico muito feliz que assim seja, que continues/continuem assim. O caminho é mesmo para a frente, com fé, nas coisas boas e sempre a acreditar, que há muito de bom por viver e por chegar.

      De nada, Mar. É de coração:)

      Temos mesmo que nos cuidar. Outro grande para ti.

      Cláudia

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    3. Respira-se de uma maneira diferente, depois de um sufoco prolongado. E mais do que tudo, o medo. O não saber. Por isso, para todos os efeitos, a partir das horas finais de quarta-feira, tenho/temos uma vida nova. É assim que sinto/sentimos.
      E sim, temos (ainda) mais fome de vida. De a celebrarmos ainda mais.

      Um beijo para ti, linda Cláudia. Obrigada pelo teu carinho. Pelo teu cuidado. Por tudo.

      Mar

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    4. De nada, Mar. Outro beijo para ti e um bom domingo, cheio de momentos bons que bem precisam e merecem :)

      Obrigada pelo teu comentário tão querido, lá no meu cantinho. Fiquei muito feliz ;)

      Cláudia

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    5. Ah é verdade, fiz o teu Ramen ;) Que sopa tão boa! Foi muito apreciada cá em casa :)

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    6. Que bom que gostaste/gostaram, querida Cláudia.

      Um beijo de boa semana aí para longe.

      Mar

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  3. Hoje já consigo comentar. Depois de saber que tudo vai ficar bem :) Não tarda nada nada, o teu homem vai poder comer cabrito :) Entretanto, comidas de dieta saborosas, feitas com muito amor.

    Um beijo grande,

    Ilídia

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    1. A seu tempo, vai voltar tudo. Enquanto não, vivemos isto os dois. Daqui a uns dias, estaremos a comer o cabrito assado que lhe tem apetecido muito e abrimos um Vale Dona Maria 2009. Ou o que quisermos:) Tão bom pensar nisso.

      Um beijo. Bom fim-de-semana. Obrigada. Foi bom termos falado ontem.

      Mar

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  4. Passei por aqui à procura de uma partilha nova. Estranhei a ausência. Normalmente faço-o já depois de me deitar. Quando perante uma paz já minha ainda me sabe bem reconfirmá-la nas palavras de alguém. Encontro-a nos seus textos, na reiterada delicadeza e elegância com que nos descreve a vida. A sua e às vezes a “minha”, que não sei expressar-me assim.
    Gosto do sentido que encontro na expressão da sua escrita.
    A fragilidade destes momentos, revela-nos mais sobre nós e sobre os outros, como o amor pode ser maior e mais forte nas novas ligações que nos estimula a desvendar e recriar, quer para quem cuida, quer para quem se deixa cuidar. É uma outra intimidade emocional, feita de outros detalhes para os quais não estamos tão preparados. Num momento difícil parece-me que sabe ser o melhor nesses detalhes envolvendo-os nesse mesmo amor que procura na vida.
    Boa recuperação.
    Beijinho*

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    1. Olá Ana,

      Gratidão e alegria por ser lida assim. Muito das duas coisas. A vida vai sendo escrita a todo o momento. Umas vezes, as palavras conseguem dizê-la, cristalizá-la. Outras vezes, não. E as vidas não são só páginas felizes. De vez em quando, reticências, pontos de exclamação misturados com pontos de interrogação. Toda a pontuação que não gosto assim muito de usar.
      Essa ausência foi inevitável. Não dava para manter o registo habitual e deixar as receitas e as coisas felizes associadas a essas receitas, num contexto tão difícil. Isso seria contar histórias. Não domino essa "técnica". Havia duas hipóteses: a do silêncio prolongado e sem explicação ou a (tentativa) da verbalização de coisas difíceis. Fez mais sentido a segunda hipótese, por ser a verdade da minha circunstância.

      Muito carinho para si. Fez-me um bem enorme. Obrigada outra vez.

      Um beijo.

      Mar

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