Do luto impossível.

Não concebo dor maior. Desaparecer-nos um filho. Acordarmos todos os dias e sabermos que não está. Que o nosso filho não está. E que não sabemos onde. Nem com quem. Mas que temos de acordar ainda assim. Que temos de fazer as coisas que as pessoas fazem. Todas as coisas que fazem os que podem despedir-se dos filhos à noite e dizer até amanhã. As coisas mais normais de todas. Esmagadoras, na sua normalidade. Acordar. Tomar banho. Comer para não morrer. Todos os dias adiados. Contados até ao mais infinitesimal dos segundos. A tortura do tempo que não traz nada. Mas que pode trazer. Um dia pode ser que sim. A única coisa que adiará a morte será a possibilidade de um dia aparecer. E ter de estar à espera em nome dessa possibilidade ser razão suficiente para continuar. À espera.
As coisas que escrevo têm um rosto. Mesmo que não haja fotografia a ilustrar o texto. Mas o rosto dela é o de todas as mães a quem desapareceu um filho. Mais, o rosto de todas as mães a quem pode desaparecer um filho. Pode acontecer a qualquer momento. O mal vive aí. Bem perto, muitas vezes. A possibilidade do terrível é como todas as possibilidades: pendente sobre as nossas existências. A mãe de um menino que desapareceu no dia 4 de Março de 1998, depois de perguntar se podia ir andar de bicicleta. Depois de ela dizer que sim. Tão simples quanto isto. E depois, a devastação. Depois o não saber. Não saber é infinito. Não cessa, como a morte. A morte é definitiva, inapelável. Faz-se um luto. Chora-se sempre. Mas sabe-se que não há nada a fazer. Que não há por onde procurar. Que alguém esteve mas deixou de estar. Desaparecer não é assim. Desaparecer é ter estado mas não se saber se continua a estar. A impossibilidade do luto. A impossibilidade de deixar de procurar. De insistir. De fazer as mesmas perguntas uma e outra vez. Ir aos mesmos sítios uma e outra vez. Chorar uma e outra vez. Gritar e desesperar. Deixar de comer por não conseguir. Onde, a felicidade? Como, a felicidade? Como é que alguma coisa pode voltar a saber-nos bem, se o nosso filho pode estar não se sabe onde? Se no exacto momento em que se desenha um sorriso ténue no nosso rosto, ele pode estar a ser violentado ou agredido? E se? Todos os dias isso de não saber.

Pensei muito antes de decidir escrever a este propósito. Mas ficou claro que tinha de ser. Por ser em nome de uma causa maior do que eu e os meus estados de alma relativamente à instrumentalização de um espaço deste género. É de um apelo, que se trata. Que passo a explicar. Sou sócia da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas (APCD). Uma ONG fundada pelos pais do Rui Pedro e que se dedica a prestar auxílio a famílias a quem acontece o mal maior. Esse auxílio declina-se de muitas formas.Todas elas muito concretas. Todas elas muito necessárias. Só que o necessário e o concreto precisam de dinheiro. É isso. A APCD precisa de fundos para continuar. Cada uma das pessoas associadas contribui anualmente com 30 euros. E isso, só por si, pode fazer uma diferença enorme. São tempos difíceis, os nossos. Muito. Mas uma das coisas que o difícil traz consigo é sentirmos que a solução passa sempre por estarmos mais juntos. E ajudarmos, se, quando e como pudermos.

Fica o link para o site. As instruções para saber como ajudar estão lá. E todas as informações necessárias para perceber o âmbito da associação e das acções que desenvolve gratuitamente.

http://www.ap-cd.pt/

11 comentários:

  1. Vim aqui ver se já tinhas o texto. Tão bem que disseste tudo. É isso mesmo. Não sei onde uma mãe que não sabe onde está o filho arranja forças para os gestos mais triviais. Não imagino nada pior. Não creio que exista. E a mãe do Rui Pedro é, realmente, a personificação da dor. É impossível olhar para ela sem uma compaixão enorme e sem um medo terrível de nos acontecer o mesmo. Ainda bem que escreveste este texto.
    Um beijo,
    Ilídia

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  2. Tens razão, este texto reflecte "o rosto de todas as mães a quem pode desaparecer um filho". Ninguém está a salvo, ninguém é imune a esta dor, a pior, a que ninguém quer, a inconcebível.
    Não consigo evitar as lágrimas,sempre que vejo esta mãe e também me pergunto como consegue ainda VIVER! A busca por respostas, a esperança da RESPOSTA, quem sabe...
    Lembro-me de a ouvir dizer com grande amargura que o seu pai faleceu, sem saber o que aconteceu ao neto. "Eu não quero isso para mim. Eu tenho de saber o que aconteceu ao meu filho!"
    Oxalá que sim, para o bem ou para o mal. Para que ao menos, embora dilacerada e morta por dentro, possa enfim, DESCANSAR...

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  3. Decidi que sim. Que era para escrever. Que as minhas questões eram menores. Não importavam nada.
    Fica aqui. Pode ser que faça caminho. Pode ser que sim.
    Obrigada a ti. E à outra pessoa que é luz. Disseram-me hoje que vai fazer um bem enorme.

    O meu carinho.

    Mar

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  4. Creio que será a possibilidade de uma resposta. A probabilidade de encontrar o filho mantê-la-á viva. Custa-me falar sobre isso. Consegui escrever. Há muito que hesitava. Mas desta vez consegui.

    Obrigada por acolheres. Por estares.

    Um beijo para ti. E outro para a luz dos teus olhos.

    Mar

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  5. Mar,

    O não saber. É tão esmagador que não há palavras para descrever o sentimento. Passei por isso 2 dias, pelo meu pai, longe, tão longe que ele estava e não poder sequer sair a correr para a rua para procurar por ele,gritar por ele, pela distancia que nos separava. Por um filho não consigo sequer imaginar.
    Não consigo. E não consigo dizer mais. Fica só um nó na garganta e as lagrimas nos olhos por todas essas mães e pais e filhos. Obrigada a si por ser capaz de escrever sobre isto, da maneira que só a Mar consegue. E sim é preciso fazer alguma coisa, mesmo não conseguindo dizer nada.

    Um beijo para si.

    Íris

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  6. A pior das dores, a de perder um flho. Irremediável, portanto.

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  7. Olá Íris:

    Guardo as suas palavras. E fica o meu respeito e o meu carinho. Sim. Mesmo que não se consiga dizer muito, fazer pode mudar muitas coisas. Ou torná-las menos más, que não se consegue mudar o irremediável, de vez em quando.

    Um bom fim-de-semana.

    Mar

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  8. Olá Patrícia:

    A maior das dores, enquanto se sentir como irremediável.

    Um bom fim-de-semana para si.

    Mar

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  9. Já falámos. Nem consigo dizer muito mais. A não ser repetir a angústia e a dor que imagino em cada segundo das vidas que continuaram, ainda que dilaceradas. Incompletas. Interrompidas. Não consigo mais. A não ser dizer que muitos bocadinhos juntos se tornam Grandes. Fortes. Audíveis.
    Um beijo
    Babette

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  10. Digo que sim. Muito. A muitos bocadinhos juntos. Que se tornam fortes e grandes e audíveis. A ver se sim, que o mundo parece precisar.

    Um beijo.

    Mar

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