Domingo no mundo.




Quando chega o sol, a música espalha-se. Surge-nos em lugares inesperados. Em estações do metro, nas ruas, em corredores que vão dar a estacionamentos e em ruas estreitas que a acolhem. Gratuita, inesperada, descontextualizada. Aconteceu hoje de manhã. Num café da baixa do Porto. Um lugar onde não entrava há anos. Um lugar que não me via há anos. O Café Guarany.
Hoje foi para música. Com esse propósito definido. Com hora marcada. Para Bach e Lopes-Graça. Pelas mãos da Raquel Reis. A convite de uma irmã fervorosa admiradora do virtuosismo da irmã. Por uma manifestação de carinho em cadeia, então. Foi assim que voltei a entrar num lugar lá de trás. Num domingo. Um dia que é de casa. Que gosto que seja de casa. Mas era tão de viver, esta possibilidade. E irrecusável por isso. Por ser mais uma possibilidade de vida. Com música.
Nunca consigo dizer muito a música. Ou melhor, os efeitos da música. Nem tão pouco consigo pormenores mais ou menos técnicos. Acontece e pronto. Gosto e pronto. Sem que seja realmente preciso perceber os mecanismos que levam a que seja assim. E então, aconteceu tomar café a ouvir a suite nº 4 em Mi bemol maior de Bach (acho que consegui dizer tudo e bem:). Uma das minhas peças preferidas. Uma das minhas músicas da manhã. Nos minutos de carro. Antes do resto do dia. Significa todas as vezes em que pedi interiormente que o resto do dia me soubesse como aquele pedaço de encantamento. E hoje, a sensação muito nítida de nunca ter sido tão bela, aquela peça. De nunca me ter chegado tão livre, tão imediata. Pelas mãos da Raquel. Nas mãos da Raquel, a minha música de início de dia. Também pelas mãos virtuosas que foram dádiva num domingo de manhã, a primeira vez em que uma peça de Lopes-Graça me foi inteligível. As pausas quase imperceptíveis. A exaltação de cada movimento mais violento. E os silêncios. O princípio e o fim da música. A ser feito de silêncio.
Tudo a acontecer com vida a decorrer. Com vidas paralelas a existir. No café de espelhos altos e paredes de mármore. O ruído do mundo. Paralelo à música que estava a acontecer. Uma mulher de costas direitas e mãos de onde saía música. Pedidos de café quase silenciosos. Para não dessacralizar o que estava a acontecer. Música descontextualizada, então. Fora dos santuários onde costuma acontecer. Uma das mulheres da Orquestra Gulbenkian, a Raquel. Que escolheu dedicar-se à música. Ser mais um bocadinho de música no mundo. Obrigada por isso. Pela imagem irrepetível da fragilidade feita força. E pela música que acrescentou vida às vidas que ali estavam.

8 comentários:

  1. Sem dúvida um domingo diferente, com uma banda sonora diferente e apelativa.

    Eu já não entro no Guarani faz mesmo imensos anos, e não estou errada se o disser que a ultima vez que o fiz foi numa noite especial, com amigos especiais, e curiosamente também ouvi musica ao vivo. No entanto foi num género bastante diferente do seu. A minha banda sonora foi música latina, e não consegui ficar apenas a contemplar a musica, tive que a viver (neste caso sinónimo de dançar ao som da mesma).

    Quanto a este seu artigo, antes de "beber" as palavras, "saboreei" as imagens, e foi um pormenor que me chamou atenção: uma chávena de café com a inscrição "Guarani" e sobre o pires um pacotinho de açúcar com a inscrição "Magestic Porto", como se a uma mesma mesa se unissem dois cafés históricos do Porto.

    Beijinho e óptima semana.

    P.S.: Por aqui hoje o sol parece ter vindo fazer uma visita com maior entusiasmo, trazendo o calor por companhia. Espero que venha para passar uma temporada e que não esteja de fugida

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  2. Não resisto a vir cá na pausa da hora do almoço... Para dizer que apesar do teu aviso, o meu domingo não conseguiu ter música no Café. Porque depois da primeira (e longa) manhã de praia deste ano, os meus rapazes fizeram uma sesta preguiçosa. Por isso ouvi violoncelo. No leitor de CD, pelas mãos de Rostropovich. Bach, também.
    Um beijo de boa semana
    Babette

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  3. Começo pelo fim. Pela parte do sol que parece ter vindo para ficar. Aqui tem sido generoso, de tão quente:)
    Também não percebi o porquê de os pacotinhos de açúcar serem do Majestic. Muito provavelmente, o Guarany será propriedade dos donos do Majestic. Que têm um restaurante aqui em Viseu. De vez em quando, acontecem pacotes de açúcar do Majestic num restaurante em Viseu:)
    Adoro este café. Lindo. Com materiais de coisas que eram feitas para durar. Para serem sólidas. Para não se renovarem com estações ou impulsos. Foi bom voltar lá. Ao lugar onde parava para café e água. Quando andava sempre em trânsito. Por faltar sempre não sei o quê. Coisas lá de trás. A si, evocou música que a fez dançar, este post. Gosto dessa assimetria.

    Um beijo para longe. Para si.

    Mar

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  4. Olá minha amiga doce:

    Teve música na mesma, o teu domingo. Em casa, enquanto os teus meninos gozavam o direito de uma sesta preguiçosa:)
    E já viste? Houve praia e tudo. Eu ando a pensar insistentemente em mar. A Mar a pensar em mar:)Está quase, não é? Uma coisa de ser quase.

    Um beijo de final de dia. Cheio de mesas...de reuniões:)

    Mar

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  5. Um post cheio de música. A começar pelo título, a evocar um cantor/autor que tanto aprecio. E pareceu-me um belíssimo domingo, o seu. Gosto tanto de Bach. Também um dos meus compositores clássicos de eleição. Eu que também não tenho conhecimentos de música. Gosto ou não. Mexe comigo ou não. O meu domingo foi mais parecido com o da Babette. O Manuel aos três anos ainda faz sestas de três horas. Enquanto isso, a mãe começou um livro novo. De valter hugo mãe, o escritor que só escreve com letras pequenas. Um beijo dos Açores, que voltaram a estar nublados.

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  6. Um verdadeiro hino à música repleto de espontaneidade. Fiz formação musical durante vários anos da minha adolescência. Foram dias repletos de música. Esses. De notas, de escalas, de ensaios. Vivi a música de uma forma muito técnica nessa fase. Hoje, não desprezando os conhecimentos que adquiri que me fazem perceber a música, prefiro senti-la, como a Mar faz. Porque ela leva-vos a sair do corpo. Transporta o pensamento para outros lugares.E faz-nos regressar, de repente, com um simples e incontrolável arrepiar de pele.
    Um beijinho com carinho de quem a lê sempre.
    Patrícia

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  7. Sei que sim, que gosta de Sérgio Godinho. Um poeta cantor, que ele é. Foi um domingo lindo. Mesmo que o ar estivesse denso e quente, lá fora. Foi de música. Música que faz bem. Estas coisas são património, sabe? As coisas que vamos vivendo são um património só nosso. Irredutivelmente nosso.
    Saudades de sestas de três horas:) O António tem uma energia inesgotável durante todo o dia. Sempre pronto para mais um bocadinho de tudo. Depois, quase por milagre, adormece. Depois de um banho cheio de mimos que cheiram bem:) Como agora, depois de um dia cheio de vida.

    Um beijo para si. A ir pela água. Até à sua ilha.

    Mar

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  8. Olá Patrícia:

    Acho lindo que se saiba muito sobre música. Que se saiba violino, piano, violoncelo. O que for. Eu fui/sou mais de fazer coisas que dançam com a música:) Se sim, se acontece música no corpo, é para ser celebrada. Porque se vai para longe, como disse. E regressa-se de lugares que não conhecemos. Com a sensação de não sermos os mesmos. Não concebo a minha vida sem música. E sem os efeitos que ela tem. Mesmo que sejam para estar quieta, como neste domingo:)

    Um beijo pleno de música, minha Patrícia. E de gratidão. Pelo carinho com que lê.

    Mar

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