Tanto que acontece, sob o manto frio de cada Inverno. É assim com aquilo que no mundo se pode ver, tocar, sentir. É assim connosco, por vezes. Em tudo o que não se consegue perceber, olhando por fora. Só por dentro. As coisas acontecem silenciosamente. Mais ainda no Inverno. Mais ainda no tempo que nos lembra que, às vezes, aquilo de que mais precisamos é mesmo de tempo. E que o tempo sempre traz consigo o silêncio necessário para ouvir muito. A luz necessária para ver como nunca. Com o tempo e com a luz, a verdade. Sempre. Ninguém é imune nem fica impune à luz certa e à água corrente que é o tempo. Eis algo que se aprende, na contemplação serena e silenciosa do mundo. Mesmo que isso implique ver descer sobre as coisas (e sobre as pessoas) não a luz quente que procuramos, mas uma luz química, de mesa de cirurgia. Aquela luz que nos faz desviar o olhar, aquela luz que esventra a realidade. É um processo difícil, mas necessário. E, muito importante: do qual se regressa sempre mais, sempre melhor. Por mais que a tal luz fria e cirúrgica faça doer os olhos. E o tempo nunca parece ter a nossa medida, ser à nossa medida. Mas viver com tudo é mesmo o melhor de tudo, com todos os danos colaterais. Com todos os ângulos cegos. Sentir o que houver, sentir o que for. Fazer bem cada uma dessas viagens. E regressar. As vezes que forem necessárias.
Quando as coisas começam, nunca sabemos o quanto significarão. Podemos partir com tudo ou com (quase) nada. Mas não sabemos. Antes de este Inverno começar, não tinha ideia de como seria fundador. Não sabia que tanto encontraria o seu lugar. De todas as estações frias, esta. Despedir-me de coisas que foram e que deixaram de ser. E isso ser pacífico, por ser o que tem de ser e por ter deixado de estar nas minhas mãos. Ver o início de outras. Com todo o medo e respirar fundo que isso sempre implica. Mas mais importante do que terminar e do que começar ou recomeçar, a ideia (linda) de continuar. Creio que nos centramos sempre nos dois opostos. Queremos ou não queremos chegar ao fim de coisas. Queremos ou não queremos começar coisas. Esquecemos muito o que continua. O que segue caminho em nós e no mundo. O que persevera. O que espera pelo melhor. O que resiste. Mesmo que, por vezes, pareçamos uma árvore sozinha e exposta ao rumor dos ventos. Tal e qual a árvore que guardei, pelo meio do silêncio todo de um dos grandes espaços que escutou e que acolheu o meu silêncio. Parecia gente, a árvore. Guardei essa e outras metamorfoses. E agora aqui, feita a cronologia interior de um Inverno que está a ser como nenhum outro. Com tudo aquilo que continua. Muito feito daquilo que continua.
A comida. Sempre e muito e sem que isso precise de declarações ou de narrativas. As mesas cada vez mais simples, a seguirem o curso das estações. As luzes de Natal que deixei estar nos sítios todos da casa. Por gostar. Por querer. Porque a luz não obedece à lógica dos calendários. As laranjas muito frescas e com aquela acidez dos meses do Inverno aqui. O verde exuberante das couves que depois transformo lentamente numa das minhas panelas de ferro fundido. O vermelho vivo das malaguetas. Por ser lindo. Por ser vermelho.
Os livros. Muitos. No meu registo sempre errático e sôfrego. De ler como se o dia seguinte fosse uma abstracção. E até que é. Pensando bem a sério, até que é. Este, que comecei a ler entre o final do ano passado e o início deste. Duas noites para ler um livro que foi proibido. Pensei que estas coisas já não se usavam. Mas sim, pelos vistos. Mais esta escritora argentina que nunca tinha lido e que gostei (muito) de ter descoberto, numa espécie de antecipação boa do que está escrito que vai acontecer lá mais para a frente. Mesmo que o livro seja enigmático e meio cerrado. Como se tomássemos parte num sonho-pesadelo. Mas também foi lido num fôlego, algures em dezembro. E a Ana Teresa Pereira. A escritora que faz com que as mulheres estejam sempre entre o real e o irreal. A verdade e a mentira. A realidade e a ficção. Um céu ou um inferno. Chega-se ao fim de cada um dos livros dela com a sensação de a mulher ser sempre uma. Mas muito diversa, ao mesmo tempo. E é por isso (e por muitas outras coisas) que as mulheres interessantes são e serão sempre interessantes.
Os filmes. Meses frios com muito cinema. Lá fora. Este. E este. E este. E este. Em casa, naquele registo quente e confortável de sofá e de sessões contínuas de cinema. Tardes e noites de chuva e de frio. Só assim. E isso ser o tudo e o tanto.
Para atravessar este e todos os Invernos a haver, chocolate quente. Todo um ritual, o de fazer este chocolate. Não é coisa que se faça à pressa. Exactamente porque é o género de coisa que se faz quando se tem a maravilhosa sensação de se ter todo o tempo do mundo. Denso, mas sem ser creme. Com três chocolates diferentes. E canela e cardamomo e um toque escocês de whisky. E aquilo que se sente, enquanto se tem nas mãos uma chávena deste chocolate quente, é que está tudo certo. Quando é assim, há-de estar sempre tudo certo. Mesmo que ler a entrevista de um dos (meus) escritores seja uma nostalgia só. Saber que não vou ler mais nenhum livro novo do Philip Roth é assim. Mas saber também que me sinto muito grata por ter lido todos os livros dele. Duas vezes, alguns. Aquela coisa boa de ler em português primeiro e em inglês depois, para (tentar) sentir as palavras tal qual nasceram, resolvida antes a parte da narrativa. Ainda assim, a falta irreparável de não haver possibilidade de mais livros do Philip Roth. Fica esta entrevista recente. A par do meu chocolate quente denso.
Chocolate quente
(quantidades para duas pessoas)
250 ml de leite + 2 colheres (de sopa) deste chocolate + 2 colheres (de sopa) deste chocolate + 2 colheres (de sopa) deste chocolate + 2 colheres (de chá) de canela e de cardamomo + 2 gemas de ovo + 2 colheres (de sobremesa) de whisky (omite-se este último ingrediente, para fazer para as crianças)
Leva-se o leite a aquecer. Entretanto, mistura-se os chocolates, a canela, o cardamomo, o açúcar, as gemas e o whisky. Junta-se um pouco de leite e mistura-se bem, até que a mistura fique cremosa. Quando o leite estiver quente, transfere-se para a taça da mistura, integra-se bem e volta-se a levar ao lume durante cerca de 25 segundos, mexendo sempre e até ficar ligeiramente denso. Se quisermos que fique daquela maneira mesmo cremosa, acrescenta-se uma colher de amido de milho à mistura. Transfere-se para chávenas ou taças e bebe-se sem esperar por não sei o quê:) É assim que vai saber mesmo bem.
A música é esta. Uma daquelas músicas de que hei-de gostar sempre. Da rainha do país de gelo, que vou gostar muito de ver e de ouvir aqui.
A comida. Sempre e muito e sem que isso precise de declarações ou de narrativas. As mesas cada vez mais simples, a seguirem o curso das estações. As luzes de Natal que deixei estar nos sítios todos da casa. Por gostar. Por querer. Porque a luz não obedece à lógica dos calendários. As laranjas muito frescas e com aquela acidez dos meses do Inverno aqui. O verde exuberante das couves que depois transformo lentamente numa das minhas panelas de ferro fundido. O vermelho vivo das malaguetas. Por ser lindo. Por ser vermelho.
Os livros. Muitos. No meu registo sempre errático e sôfrego. De ler como se o dia seguinte fosse uma abstracção. E até que é. Pensando bem a sério, até que é. Este, que comecei a ler entre o final do ano passado e o início deste. Duas noites para ler um livro que foi proibido. Pensei que estas coisas já não se usavam. Mas sim, pelos vistos. Mais esta escritora argentina que nunca tinha lido e que gostei (muito) de ter descoberto, numa espécie de antecipação boa do que está escrito que vai acontecer lá mais para a frente. Mesmo que o livro seja enigmático e meio cerrado. Como se tomássemos parte num sonho-pesadelo. Mas também foi lido num fôlego, algures em dezembro. E a Ana Teresa Pereira. A escritora que faz com que as mulheres estejam sempre entre o real e o irreal. A verdade e a mentira. A realidade e a ficção. Um céu ou um inferno. Chega-se ao fim de cada um dos livros dela com a sensação de a mulher ser sempre uma. Mas muito diversa, ao mesmo tempo. E é por isso (e por muitas outras coisas) que as mulheres interessantes são e serão sempre interessantes.
Os filmes. Meses frios com muito cinema. Lá fora. Este. E este. E este. E este. Em casa, naquele registo quente e confortável de sofá e de sessões contínuas de cinema. Tardes e noites de chuva e de frio. Só assim. E isso ser o tudo e o tanto.
Para atravessar este e todos os Invernos a haver, chocolate quente. Todo um ritual, o de fazer este chocolate. Não é coisa que se faça à pressa. Exactamente porque é o género de coisa que se faz quando se tem a maravilhosa sensação de se ter todo o tempo do mundo. Denso, mas sem ser creme. Com três chocolates diferentes. E canela e cardamomo e um toque escocês de whisky. E aquilo que se sente, enquanto se tem nas mãos uma chávena deste chocolate quente, é que está tudo certo. Quando é assim, há-de estar sempre tudo certo. Mesmo que ler a entrevista de um dos (meus) escritores seja uma nostalgia só. Saber que não vou ler mais nenhum livro novo do Philip Roth é assim. Mas saber também que me sinto muito grata por ter lido todos os livros dele. Duas vezes, alguns. Aquela coisa boa de ler em português primeiro e em inglês depois, para (tentar) sentir as palavras tal qual nasceram, resolvida antes a parte da narrativa. Ainda assim, a falta irreparável de não haver possibilidade de mais livros do Philip Roth. Fica esta entrevista recente. A par do meu chocolate quente denso.
Chocolate quente
(quantidades para duas pessoas)
250 ml de leite + 2 colheres (de sopa) deste chocolate + 2 colheres (de sopa) deste chocolate + 2 colheres (de sopa) deste chocolate + 2 colheres (de chá) de canela e de cardamomo + 2 gemas de ovo + 2 colheres (de sobremesa) de whisky (omite-se este último ingrediente, para fazer para as crianças)
Leva-se o leite a aquecer. Entretanto, mistura-se os chocolates, a canela, o cardamomo, o açúcar, as gemas e o whisky. Junta-se um pouco de leite e mistura-se bem, até que a mistura fique cremosa. Quando o leite estiver quente, transfere-se para a taça da mistura, integra-se bem e volta-se a levar ao lume durante cerca de 25 segundos, mexendo sempre e até ficar ligeiramente denso. Se quisermos que fique daquela maneira mesmo cremosa, acrescenta-se uma colher de amido de milho à mistura. Transfere-se para chávenas ou taças e bebe-se sem esperar por não sei o quê:) É assim que vai saber mesmo bem.
A música é esta. Uma daquelas músicas de que hei-de gostar sempre. Da rainha do país de gelo, que vou gostar muito de ver e de ouvir aqui.
Bom dia e Bom Ano, Mar.
ResponderEliminarO Inverno remete-nos para o interior das casas, das coisas e de nós. Gostei desta viagem. Bem haja pela partilha.
A receita já está anotada.
Um abraço.
Ana
Olá, Ana.
EliminarSim. É bom assim. Tempo de interior. Depois, começa a Primavera e a vida será lá fora. Longe.
Muito obrigada por ter gostado da viagem. Que corra bem, a receita do chocolate quente dos dias frios.
Um bom ano para si. Um abraço.
Mar