Cronologia solar.































A cronologia de Lagos é-me fácil e difícil. Sinto as duas coisas em simultâneo, quando me sento para a escrever. Fácil porque me ocorre sempre aquela formulação-água de a felicidade não ter história. Mas desconstruindo um bocadinho a tal formulação certeira, atira-se à tal água uma outra, que é poema, a de que quando conseguirmos dizer um grande amor, deixa o nosso grande amor de ser grande. E eu não quero isso. Não isso. E por isso é que é difícil. É que o meu amor por Lagos é um mar que não morre em praia nenhuma. Ao contrário, o meu amor renova-se todos os anos, em cada um dos dias de sol no meu sul, na cidade branca que ama o mar. Sempre naquele namoro, os dois. Interceptam-se, confundem-se, respiram o mesmo oxigénio, contemplam-se demorada e eternamente, como se encontrassem a todo o momento razões renovadas para se amarem ainda mais.
Em Lagos, os dias começam ainda mais cedo do que os outros, com aquela melodia que o mar sempre canta. A mesma melodia que me embala. A mesma melodia que me desperta. O pequeno-almoço frugal de sempre, esteja onde estiver. Se houver pão e café e manteiga a sério, está tudo bem. A seguir, é passar primeiro pelo ocre e pela inscrição modesta que abre o caminho que desce até ao mar. Depois, a enumeração floral daquele caminho até à praia do Porto de Mós. Penso todos os anos que devo fazer registo das flores, que quero muito que as flores do meu caminho até ao mar aqui fiquem. Este ano, sim. As flores. Quando chego, ainda ninguém abriu a praia. É sempre tão cedo e aquele silêncio com o rumorejar de fundo do mar. E mais nada. O mundo a começar de novo. As pedras pequenas que me parecem sempre mais bonitas do que as do dia anterior. Vou juntando todos os dias. Chego a casa e coloco-as na mesa. Depois de estarem perto do mar, tinha de as trazer para aquele que é um dos lugares mais maravilhosos: a mesa. E um banho rápido e roupa sem estar a pensar nem a escolher e a minha alcofa e uns minutos depois, a cidade que namora com o mar. A igreja perto da Travessa do Mar e o silêncio que é a minha oração de todos os dias. O caminho até ao mercado é solene como o caminho que desço até ao mar. Eu sei que há pessoas à minha volta, eu sei que um mundo inteiro está a acontecer enquanto faço aquele caminho, mas eu só vejo as pedras brancas que me levam até lá. E nunca consigo passar indiferente pelo texto da mulher que amou Lagos como nenhuma outra pessoa. Sei-o de coração, já. Mas leio-o sempre. Ficam-me as formulações soltas, a acompanhar o descer das escadas. Aquelas palavras dizem o sul, tal como eu o entendo. É uma instrução. Ela dá todas as coordenadas necessárias para se amar Lagos e aquele mercado. E o filho dela também, neste fragmento sobre a beleza etérea e eterna do mês de Agosto a sul. 
A minha comida foi como é todos os anos. Simples, fresca, honesta, a cheirar a coentros e a hortelã e a mar. Fui registando, mas a história toda não está porque aconteceu assim e porque eu deixei acontecer. A minha mousse de chocolate com figos e com amêndoas. Os cubos altos de atum vermelho-vivo que o meu filho adora e que pede todos os dias em Lagos. Os peixes inteiros e às postas. As massinhas caldosas e aromáticas. O azeite num prato com orégãos. Seja o que for, sempre a sensação de quase bastar aquele prelúdio lindo. Qualquer coisa maravilhosa acontece num prato com tomate coração-de-boi, salpicado com orégãos e com flor de sal e com um fio de azeite. Qualquer coisa maravilhosa acontece quando se abre um pão denso do sul. Qualquer coisa maravilhosa nas azeitonas irregulares e que não cumprem os requisitos e as normas de gente cinzenta que tenta calibrar o mundo com decretos. Qualquer coisa maravilhosa nas minhas mãos. Quando rasgo folhas de hortelã, moo erva-doce, corto figos ora maduros ora secos e pico amêndoas torradas e abro nectarinas e ameixas ao meio e esmago alhos com a casca. Tudo pelo meu amor indizível. Por Lagos. Pela comida. Pela minha vida. Assim tal como ela é. Cada dia de sol. Cada dia de chuva. Todos foram/são/serão necessários. Venham esses dias, então. Com um detalhe: aquilo que eu já vivi está cá. Pertence-me por inteiro e faz com que me sinta (cada vez) mais inventora do que está por viver, por acontecer. 
Os dias em que não faço comida são os dias em que vou ao Vila Lisa. Depois de ir caminhar junto ao mar, o regresso a casa é a pensar na minha alegria a meia luz, mal me sento a uma daquelas mesas corridas. Aquela comida, aqueles temperos, aquele vinho de jarra que me sabe sempre a um néctar raro. Sei que o meu filho desenhará ou que escreverá coisas nas toalhas de papel, tal como faz desde muito pequeno. Sei que estarei serena e feliz e grata. E não é preciso mais nada. Mas a vida surpreende-nos a cada momento, mesmo que pensemos que ela está quieta. Este ano, um abraço muito bonito do Vila. E palavras desenhadas no livro que insistiu em oferecer-me. Por este texto que escrevi o ano passado. Não adiantou dizer que tinha o livro, que o traria no próximo jantar, que não era preciso ir buscar outro. Não adiantou nada disso. Fez questão que assim fosse. Não me despeço dele, tal como nunca me despeço de Lagos. Nunca direi adeus a Lagos. 

Polvo com batatas como no Algarve
NB: O polvo é traiçoeiro, por algum motivo é visado no Sermão de Santo António aos Peixes, do Padre António Vieira:) Há duas coisas a fazer, quanto ao polvo traiçoeiro: nunca adicionar sal na cozedura e congelá-lo, mesmo que se compre fresco. Se tiver mesmo de ser cozinhado ainda fresco, faz-se como o Vila diz e escalda-se três vezes em água a ferver, para antecipar a cozedura. No caso de se congelar, deixa-se descongelar tendo o cuidado de não o descongelar completamente, para que seja mais fácil partir em pedaços. A seguir, vai ao lume numa panela, só com um fio de azeite e uns alhos esmagados. Para um polvo com cerca de dois quilos, o tempo de cozedura é de cerca de vinte minutos, mas nada como ir usando um garfo, para ver se está no ponto. Quando estiver pronto, retira-se da água que a cozedura foi gerando, passa-se por água fria e reserva-se as duas coisas: o polvo e a água onde foi cozido. 

1 polvo + 1 cebola + 1 pimento verde + 1 tomate coração-de-boi + 3 dentes de alho + 1 colher (de sopa) de pimentão doce + 6 batatas (médias e vermelhas) + sal, azeite, vinagre e coentros q.b. 

Antes de tudo, corta-se as batatas em cubos e leva-se a cozer em água e sal. Enquanto isso, corta-se a cebola às rodelas, pica-se os alhos, corta-se o pimento em tiras finas e o tomate em pedaços, depois de descascado. Leva-se ao lume a cebola, os alhos e o pimento, com um fio de azeite, numa sertã larga. A seguir, acrescenta-se o tomate, um pouco de sal e deixa-se estar durante uns minutos. Junta-se depois os pedaços de polvo, a colher de pimentão doce, um pouco da água da cozedura e deixa-se cozinhar durante uns 10 minutos. Junta-se depois as batatas cozidas e um pouco da água que serviu para cozer as batatas. Esta água servirá para engrossar naturalmente o molho delicioso que nos vai saber pela vida daí a nada. Junta-se coentros, um fio de azeite, um pouco de vinagre e prova-se. Se estiver tudo bem com o tempero, serve-se de imediato. 

Lulinhas salteadas

15 lulas (médias, a tender para o pequeno) + 6 dentes de alho + sumo de meio limão + 1 colher (de sopa) de pimentão doce + sal, azeite e coentros q.b. 

Corta-se as lulas em rodelas, tempera-se com o sumo de limão e um pouco de sal e reserva-se durante pelo menos meia hora, para tomar o gosto. Numa sertã, um fio de azeite e dois dentes de alho picados. Junta-se as lulas, tendo o cuidado de deixar de fora a marinada. A seguir, as lulas libertarão muita água. É deixar que isto aconteça e ir mexendo, até que se evapore. Mal comecem a ficar sem líquido, junta-se um pouco de água, mexe-se e deixa-se estar. Repete-se esta operação três vezes, que será o suficiente para que fiquem tenras. Assim que isto acontecer, retira-se as lulas com uma escumadeira para um prato largo e, na sertã onde estiveram a ser cozinhadas, coloca-se quatro dentes de alho (esmagados e com um pouco da casca) e um fio bem generoso de azeite. Mal os alhos comecem a estalar, junta-se as lulas e a colher de pimentão doce. Envolve-se bem e deixa-se saltear durante uns três minutos. Acrescenta-se depois a marinada que estava reservada, mais azeite e os coentros picados. Serve-se ainda a fazer aquele som delicioso das coisas salteadas, com fatias generosas do pão denso que quisermos. 

A música é esta. Salty eyes. First breath after coma. 


12 comentários:

  1. Lindos, estes teus textos sobre Lagos. É assim todos os anos. Sente-se a tua alegria e o bem que estes dias te fazem.
    O polvo é traiçoeiro, sim. Vou confessar uma coisa: nunca tive coragem de o cozinhar. Quem o faz muito bem é a minha mãe. Mas tenho de ultrapassar esta minha dificuldade. Já é hora.

    Continuação de boas férias.

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Olá minha querida,

      Levou tempo até acertar com a cozedura do polvo. A minha mãe também o faz bem, só que usa a panela de pressão e eu não quis ter nada disso, que tenho medo. Uma vez vi uma dessas panelas a explodir e bastou para perceber que nunca iria ter um objecto daqueles. Tenta, sim. É bom irmos ultrapassando essas questões. Eu tenho imensas, também.
      Lagos é-me tanto, faz-me tão bem. Este ano, muito especialmente.

      Obrigada. Boas férias para ti também.

      Um beijo.

      Mar

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  2. Querida Mar - que maravilha, o seu texto sobre Lagos e a comida algarvia, cheia de sol e saberes do Verão! Ilustra tão bem o Algarve e o seu Verão. Que prazer foi lê-lo!
    O seu método de cozer o polvo é o mesmo que o meu (a diferença é que lhe junto uma cebola inteira e salsa, mas vou experimentar azeite e alho). Vou fazer a sua receita de lulas nesta semana. Obrigada. Um beijinho e um grande abraço.

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    1. 'sabores e saberes de Verão', deveria ter escrito.

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    2. Linda Ana, que bom que gostou de ler, que Lagos e a comida e as coisas de Verão são lidas assim. Muito obrigada.
      Fui percebendo (depois de algumas perdas) que esta era a maneira de garantir que o polvo ficava no ponto. Tão triste estragar um ingrediente. Aconteceu-me três vezes, até ter tentado nesta versão de o partir e de levar ao lume sem mergulhar em água. E eu vou tentar essa versão com cebola e salsa:) Obrigada a si. Espero que a receita das lulas corra bem.

      Um beijo para si.

      Mar

      PS: Eu percebi isso dos sabores e saberes de Verão, querida Ana.

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  3. Olá Mar,

    Finalmente tive tempo para ir aqui e deixar-me estar, com calma.

    Este Verão tem sido, para mim, alucinante. Tenho a sensação que no principio de Julho o conta-quilómetros foi adiantado e não tenho conseguido aproveitar o Verão.

    Nem imagina o bem que me fez o seu texto!

    Porque relaxei, porque imaginei as minhas férias que estão a chegar, porque me lembrei de coisas muito boas das férias do ano passado.

    Reconheci logo o ambiente do "Vila Lisa", onde quero voltar. Num registo e data diferentes mas, já liguei a perguntar se é possível.

    A sua descrição dos seus dias no Sul lembraram-me que estou aqui sempre e, se calhar, dou todas essas coisas como garantidas. Não aprecio devidamente.

    Acho que se pudesse trocar o seu texto por uma imagem, seria eu numa praia sem ninguém, a maré vazia como eu tanto gosto e a pensar: "Calma, este tempo vai chegar. O cansaço e o stress vão embora junto com a maré."

    Quanto ás receitas, registei as duas. E o modo de preparação do polvo. Também uso a panela de pressão. Pouco, porque também desconfio do objecto mas, aprendi com a minha mãe.

    Um beijo do Algarve e votos de continuação de boas férias,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      O Algarve é um lugar abençoado. Tal como o tempo de descanso, lugar cronológico para tudo o que nos faz bem. Isso ajuda-nos a colocar as coisas nos sítios devidos e a sabermos onde estamos e onde não queremos estar.

      Umas boas férias para si. Um beijo.

      Mar

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  4. Bom dia, Mar.
    Tão lindas as palavras e as imagens. Tão saborosas as receitas. É delicioso ler o seu amor por Lagos. O seu amor pela vida.
    Esta semana vou experimentar as duas receitas.
    Continuação de boas férias.
    Bjs
    Ana

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    1. Obrigada, Ana. Fico feliz por ter gostado. É mesmo de um amor que se trata. Mesmo assim. Espero que corra tudo bem com as receitas.

      Um beijo.

      Mar

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  5. Maravilhoso! Tudo, o teu texto, as imagens (adoro a primeira, está tão bonita), mas sobretudo o teu amor por Lagos. Que é tão visível, quase palpável. Não conheço bem Lagos, aliás, tenho muito por conhecer a sul. Mas hei-de alterar isso. ;)

    Achei tão giro, o teu filhote escrever e desenhar nas toalhas, desde pequeno. :)

    E também gosto tanto de todos esses temperos e ingredientes, desde miúda. Adoro coentros, hortelã, orégãos. Muito peixe, polvo, pão regado a azeite. Tomate doce... Uma maravilha ;) voltei ao Verão, por momentos. Por momentos esqueci a chuva que cai lá fora. Por momentos o sol voltou a brilhar. E obrigada a ti por isso.

    Beijinhos, doce Mar.

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    1. Lagos é um dos lugares que me é mais. Quando eu deixar de existir, uma parte das minhas cinzas irá para lá, para o meu mar do Porto de Mós.
      E sim, quando puderes, o nosso sul. Aquela alma, aquela luz. Os cheiros e o sabor das coisas todas. Por momentos, o Verão outra vez. Sem nostalgia:) Aproveitar o que está. O que vem por aí. Mantas e chocolate quente e chuva lá fora:)

      Obrigada, Cláudia. Linda, tu.

      Um beijo grande.

      Mar

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    2. Também gosto muito, mantas, um chocolate quente, a chuva a cair lá fora e eu quentinha, a ver um bom filme ou uma boa série ;) são coisas boas dos dias frios de Outono ou de Inverno :)

      Ohhh és um doce.

      Outro beijinho, Mar.

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