Arroz doce, flores e Virginia Woolf.














Fazer arroz doce implica paciência, cuidado, carinho. Tem que ver com tomar conta, estar por perto, não deixar para lá. Muitas e muitas coisas no universo disto de fazer comida (me) lembram isso. Mas no território maravilhoso do arroz doce, essa ideia tem uma densidade mais especial. Em primeiro lugar, porque é o tipo de coisa de que se gosta (mesmo) muito, quando se gosta. Não é de ficar pela metade, não é de se gostar mais ou menos ou assim assim. A partir desse ponto, avançamos para o horizonte das expectativas. E isso pode correr bem. Ou muito mal. Eu fiz tudo para que corresse bem. Perto de mim, arroz doce é uma daquelas coisas especiais. E das coisas especiais espera-se sempre mais, muito, tanto. É preciso (ainda) mais cuidado, para não resvalar para a desilusão. E correu bem. Corre sempre tão bem, que achei que era o momento de deixar aqui a minha maneira de fazer o arroz doce que é tão amado pelas minhas pessoas.
A receita diz que é com laranja, mas com limão a delícia é a mesma, só que com um tom cítrico diferente. E sim, temos mesmo de tirar uns minutos, temos mesmo de nos dedicar a cada um dos momentos da sequência linda que resulta em grãos doces e perfumados. Não dá para atalhos nem para omissões. Mas no final, quando se serve aquela frescura aveludada, quando se ouve só silêncio, pensamos que alguma coisa andamos a fazer bem. Cuidar, tomar conta, acarinhar, ser paciente. Tudo isso está certo. Este arroz doce é também sobre isso.
E as flores sempre por perto. E gostar tanto de as pousar na bancada de mármore, perceber como são lindas e vulneráveis. Encher jarras e copos. Cortar os caules. Vê-las juntas a fazer um sentido transitório, que as vidas delas serão muito breves.  E ainda assim, são tão bonitas. 
As flores da abertura inesquecível e aparentemente ligeira de um dos livros da Virginia Wolf. Mrs Dalloway said she would buy the flowers herself. Lembro-me sempre dessa passagem, quando trago flores para casa. Digo-a dentro, para mim. Por estes dias, mais um livro da mulher que não lidava bem com a realidade das mulheres do tempo dela. Não sabia escolher flores nem orientar a casa nem uma série de coisas que sempre se espera das mulheres, seja lá qual for o tempo. Só sabia escrever e fumar e viver à margem dos códigos das mulheres que sabiam sempre o que fazer, o que dizer, o que vestir, o que dissimular. Ela escrevia e fumava. Não deixa de ser curioso que as narrativas dela fossem quase sempre sobre mulheres que eram tudo aquilo que ela não era, que não queria ser. Ou não. Faz sentido. 
Este livro, guardado com o momento último de cada um dos meus dias. Aqueles três gestos, no silêncio da noite: pousar o livro, passar creme nas mãos, desligar a luz. A partir daí, sono e (às vezes) sonhos. No dia seguinte, haverá mais. Mais flores, mais comida, mais música, mais páginas. Bom assim. O eterno retorno que dura a eternidade transitória que somos.


Arroz doce com laranja

250ml de água + 1 pitada de sal + 100g de arroz carolino + 500ml de leite + 200g de açúcar + 5 gemas de ovo + 1 colher (de sopa) de manteiga + 1 colher e meia (de sopa) de amido de milho + raspa de uma laranja (média) 

Leva-se ao lume a água com o arroz, uma pitada de sal e a raspa de laranja. Deixa-se estar até a água evaporar, mexendo regularmente. A seguir, acrescenta-se o leite e o açúcar, deixando ferver até que o arroz esteja bem cozido (cerca de 15 minutos). Esta parte implica a tal paciência e carinho, porque se deve mexer quase continuamente em lume brando. Mas vale bem a pena:) Depois de nos certificarmos que o arroz está no ponto, a manteiga e o amido de milho. Mexe-se mais um pouco, retira-se do lume e acrescenta-se as gemas (previamente mexidas com um garfo), mexendo sem parar. Leva-se ao lume novamente, conta-se até 30 e retira-se de imediato para uma taça ou para um prato largo. Salpica-se com canela e, no momento de servir, mais umas raspas ligeiras de laranja. Fica perfeito se ficar umas horas no frio. 

A música é de uma banda nova que ando a ouvir e de que ando a gostar muito:) 

14 comentários:

  1. Adorei as tuas fotografias, estão tão bonitas. Todos os detalhes, as velas, as flores lindas, transmitem uma envolvência muito especial, muito tua.

    Eu adoro arroz doce! Daquele bem cremoso e amarelinho como o teu! ;) Com laranja, nunca experimentei, mas vou experimentar em breve :)

    Fazer comida assim, com todo este cuidado e atenção, é amor. Sempre achei isso. É acarinhar quem mais gostamos, é pôr amor, até nas mais simples coisas.

    E as flores, tão simples e tão bonitas. E com uma vida tão fugaz... a Primavera, as flores, são assim. É quase como se fosse, uma forma de a vida nos alertar, que é maravilhosa (apesar dos apesares), mas que é breve, muito breve.

    Isso, o que sempre se espera das mulheres, é uma coisa que me irrita imenso. E no século em que estamos, já não deveria ser assim. De um homem, não há isso, o esperar que seja de determinada forma. De uma mulher, ainda se espera, é quase, como se tivesse que vir formatada para isso, para ser uma excelente dona de casa. Ainda há muito machismo enraizado, mas quero acreditar, que as mentalidades devagar vão-se alterando. Até porque isto, anula, de como deve realmente ser. Não uma obrigação, mas sim, fazer porque queremos e com o nosso amor. Independentemente, se for feito por um homem ou por uma mulher.

    Gostei da música ;)

    Um bom fim de semana, querida Mar :) Cheia de momentos bons, e de amor. Que é o que dá sentido à vida.


    Beijinhos ♡

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    1. Obrigada por gostares, querida Cláudia. Fico mesmo feliz. Uma alegria floral, leve.

      Eu não gostava assim muito de arroz doce. Mas o meu marido e o meu filho adoram. Por isso, persisti até chegar ao ponto doce e cremoso do arroz. Aconteceu assim com a aletria, também. Faço as duas coisas imensas vezes. E sempre aquela alegria boa:)

      Em relação a isso das mulheres, há coisas que são mais antigas do que o mundo. Os critérios e as formatações e as expectativas têm dentro questões de género. Os discursos feministas enfatizam muito a questão da igualdade. Eu creio que se trata mais de diferença, em matérias pouco ou nada concretas e que fazem com que as mulheres sejam maravilhosas. A questão da igualdade devia estar reservada para as matérias concretas, nomeadamente no que diz respeito ao trabalho. Nisso da casa e tudo o mais, o meu ponto é muito simples e não tem que ver com os outros, com o olhar dos outros e é este: autonomia. Conheço muitas "feministas" que dependem das mães ou das sogras para tratarem das casas e dos filhos. Eu prefiro a liberdade da autonomia. De pensar pela minha cabeça, sem que me inventem ou imponham espartilhos. E não tenho de me justificar a ninguém por gostar muito de fazer comida, cuidar da minha casa e das minhas pessoas. Isso não me diminui, nem me retira densidade. Seja como for, é tal como disseste: fazermos porque queremos e com amor. Não podia estar mais de acordo:)

      Foi um bom fim-de-semana, sim. Espero que o teu também tenha sido. E boa semana:)

      Um beijo.

      Mar

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    2. Não quis passar a ideia de um discurso feminista. Até porque eu também sou assim. Gosto de ser autónoma e faço com gosto, com amor e carinho. E adoro ver os meus felizes, com algo que eu fiz ou preparei. Mas infelizmente já ouvi alguns comentários (e nem sempre foi de um homem), de que é a obrigação da mulher isto ou aquilo... e é com isto é que eu não concordo. Quando faço, faço porque quero, e não porque é a minha obrigação. Acabam por ser discursos redutores. Concordo contigo, sem nos imporem espartilhos, fazer porque queremos e claro que não nos diminui e nem nos retira densidade e termos autonomia sempre, sem estarmos dependentes de ninguém. E é bem verdade, a questão da diferença entre os géneros.


      Vou fazer o teu arroz doce, esta semana. Depois digo como correu. :)


      Foi bom o meu fim de semana, mas não há maneira de parar de chover por aqui... Parece que a Primavera ainda nem chegou. Mas estar em casa e a chover lá fora, também tem o seu encanto.


      Uma boa semana, também para ti :)


      Beijinhos.


      Cláudia

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    3. Mas não passaste nada essa ideia, linda Cláudia. Desculpa se me fiz entender mal. A ver se me digo bem, agora:)
      Em relação a esses discursos, a minha primeira questão tem que ver com o facto de o pensamento único me irritar solenemente. E claro, aquela ideia de se olhar para os homens como inimigos a abater, como se isto fosse guerra. Se nos centramos nessas batalhas, perdemos outras. As importantes, as que deviam ser adquiridos civilizacionais, no meu ponto de vista.
      E sim, espera-se mais das mulheres. Confesso que nunca pensei muito nisso. Casei-me por estar terrivelmente apaixonada e não havia nada a fazer. Fiquei grávida mais cedo do que o habitual porque quis(emos) muito ter um filho. Gosto muito do meu trabalho e faço o melhor que posso e que sei. E adoro fazer comida desde que me entendo como gente. Estou a falar nestas dimensões porque fazem parte do que se espera e por motivarem perspectivas mais ou menos simplistas. Mas há muitas outras dimensões. E vês tanta gente a tomar decisões tão sérias com base no que se espera delas, no que é suposto. Como se tivesses de passar ao próximo nível de um jogo ou assim. Penso para mim, olhando para o meu caminho e para cada uma das minhas escolhas, que foram todas por amar muito. Mesmo quando corre(u) mal, essa serenidade que não me abandona.

      Espero que corra bem, o arroz doce aí longe:)

      Há-de haver sol para ti, minha querida. Há-de haver.

      Uma boa semana. E um beijo grande.

      Mar

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    4. Concordo, querida Mar. O pensamento ou a forma de olhar, como se os homens fossem o inimigo, não faz sentido nenhum. Adorei o ''casei-me por estar terrivelmente apaixonada e não havia nada a fazer'' :) Tão bom, que o teu caminho, a tua vida, decisões, o que fazes, seja movido por amor. É tão isso, para mim, é apenas o que faz sentido.

      Espera-se das mulheres, mas no fundo, também há muito que se espera dos homens. E quanto às batalhas. Há as que são ainda uma luta grande, e realmente, nada têm a ver com questões domésticas ou com pensamentos mais antiquados. Tem a ver com direitos no trabalho, valorização, e coisas muito piores, como em certos países, em que parece que a mulher, nós, não temos qualquer valor. Parece que há coisas que demoram tempo demais a mudar, não é ? Mas é assim. Acho que pareci feminista outra vez ;)

      Espero que sim, faz-me tanta falta o sol.

      Obrigada, e obrigada por seres um doce. Gosto mesmo muito, da pessoa que és e por me fazeres sempre sorrir. :)

      Outro grande para ti.


      Cláudia

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    5. Foi assim que eu disse à minha mãe:) Que não havia nada a fazer. Sem entrar em detalhes, a história não foi simples, nem era suposto. Pelo contrário. E sim, as coisas todas com e por amor. Mesmo as minhas coisas erradas. Tiveram sempre esse dado. Quanto a isso, também não há nada a fazer.

      Somos todos gente. Em algumas coisas, devíamos ser entendidos como iguais. E não é assim. Em algumas geografias, as questões são de direitos. Noutras geografias, é tudo uma questão de vida ou de morte. E sabes, nessas geografias, são muitas vezes as mulheres que contribuem para a manutenção de práticas e de hábitos terríveis. Isto não é matéria simples. Não é um "nós" e um "eles". Não é um "homens" vs "mulheres". Não é por aí.

      Hoje esteve a chover, aqui. Clima meio doido, este:) Mas há sempre uma promessa de sol. Pensa nisso, querida Cláudia.

      Doce és tu. Seja como for, é bem lindo motivar sorrisos e outras coisas doces nas pessoas. Fico feliz. Obrigada, linda Cláudia.

      Um beijo.

      Mar

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    6. Adoro! Não havia nada a fazer ;) Quase como se fosse uma fatalidade, uma fatalidade muito boa :) É raro, a história ser simples, não é ? ;)
      Pois, eu nisso também sou assim. Quando seguimos o nosso coração e agimos sempre por amor, nem sempre corre bem, mas faz parte.

      É verdade, como é possível não é ? Estou-me a lembrar por exemplo, da circuncisão a meninas, feita por mulheres que se apoiam na tradição e em rituais... Há coisas horríveis neste mundo... Há ''tradições'' que já deveriam ter acabado há muito. São problemas em certos pontos, de direitos, como referiste, noutros de vida ou morte, desigualdades, muita falta de humanidade e também muita crueldade. Não é mesmo matéria simples. Mas hoje é um dia feliz e não quero falar mais de coisas más ou que te deixem triste. :)

      Pois, aqui ainda não houve Primavera. É só chuva sem parar há semanas. Sim, há sempre uma promessa de sol ;)


      Ohhh obrigada, mas acredita. Tens muita doçura em ti. E isso é muito bom.

      Outro beijinho, Mar.


      Cláudia

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    7. A crueldade não tem género. Nem muitas outras pré-existências. Basta-se. Isso é terrível. Mas ao mesmo tempo, faz com que se reduza a si própria.

      E sim. Qualquer coisa de destino:)

      Já pedi imenso sol aí para esses sítios altos onde estás. A ver se os meus deuses das coisas pequenas ouvem:)

      Um beijo grande. Bom fim-de-semana, doce Cláudia.

      Mar

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  2. Mar, obrigada por mais uma receita que só de olhar se via que era boa demais! Como adoro arroz doce e tenho também uma receita ganhadora, experimentei esta (à qual acrescentei umas vagens de cardamomo e tive que me safar com apenas 3 gemas que era o que havia e uns pozinhos de açafrão das Índias). Ficou espectacular!
    Quanto ao resto, concordo com a autonomia, com o fazer sem justificar. É como o adorar estar em casa, a maioria das pessoas prefere sair, eu prefiro viver a minha casa, já que não é só um sítio de dormir para mim :)

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    1. Obrigada, querida Maria. Tardou até ficar aqui, a receita do meu arroz doce. Mas já está. E com esses seus acrescentos, deve ter ficado ainda mais especial. Fico mesmo feliz por saber.
      Também gosto muito do tempo de casa. Do tempo de dormir e do outro, em que estamos bem acordados:) Adoro viajar e adoro pensar em todas as viagens que ainda hei-de fazer. Mas respiro muito e prolongadamente em minha casa. Oxigénio retemperador como em nenhuma outra geografia.

      Uma boa semana.

      Mar

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  3. Querida Mar,
    o teu arroz doce tem sabor a saudade. O teu arroz doce podia ser o da minha avó. Desde que ela nos deixou que não mais voltei a comer arroz doce. nenhum seria como o dela, a saber a leite creme. a minha avó foi a pessoa mais bonita do meu mundo. ela fazia arroz doce como esse teu, tenho a certeza que é igual. é o amor que transforma as coisas. o teu arroz tem tanto amor como tinha o dela e sabe muito, muito a saudades. um abraço apertado perto dos teus cabelos que, desconfio, eu hão-de sempre cheirar a canela.

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    1. Linda Vanessa,

      Entendo o que escreveste com o coração. Talvez tenha demorado tantos anos a deixar aqui a receita por causa de saudades dessas. Arroz doce é coisa de mãe. De avó. E nessas memórias, devemos tocar com cuidado.
      Cada um de nós tem maneiras íntimas de lidar com a ausência. E também nisso, o mesmo cuidado. Eu gosto de rememorar, faz-me bem. De dar uso a objectos das mulheres anteriores a mim. De dar uso ao caderno de receitas velhinho da avó do meu marido. Mas percebo que não se queira, que não se consiga, por se saber antecipadamente que não vai ser o mesmo. Há coisas que não podemos reconstituir.
      Mas essas tuas saudades, esse teu amor de menina pela tua avó, dizem que ela está em ti, contigo. Com ou sem arroz doce. Seja como for, gostava de te oferecer de presente arroz doce que sabe a leite creme.

      Um abraço muito grande, querida Vanessa.

      Mar

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    2. só sei que adoro a tua pessoa, a tua escrita, a tua serenidade e o teu amor pelas coisas que fazes com amor. adoro este coisas d'amar e sinto-lhe cheiros sempre doces, de comida quentinha a fumegar. no D'amar estou muitas vezes perto daquela cozinha da minha avó Helena. Obrigada por isso, querida e linda Mar.

      Obrigada também pela tua dica! já guardei nos favoritos e não, não conheço nenhum daqueles sítios o que é bom porque se abre outro mundo de possibilidades para podermos levar o nosso Peninha cuja ausência tanto se faz notar em fins de semana como este último em que foi impossível levá-lo.
      Obrigada! beijo grande

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    3. Deves ser mesmo especial. Mesmo especial. Apetecia-me dar-te um abraço sem ser por escrito. Obrigada muitas vezes. Guardei no coração, querida Vanessa. É recíproco. E sabes, eu sou assim serena e tranquila e essas coisas todas. Mas também sou muito impulsiva e apaixonada e combativa. Tenho tentado ser menos estas últimas coisas, porque de vez em quando, sou assim como um vento e voa tudo:) Ainda hoje tive de contar até 10 muitas vezes numa reunião. Difícil de explicar. Assim e aqui. Mas tinha de dizer, porque também faz parte. Seria uma espécie de omissão.

      Que bom que a lista que deixei lá no teu sítio pode ser útil. Nunca tinha pensado nisso, até ler as tuas viagens a terem presente essa dimensão. Mas faz sentido haver essa possibilidade e deve ser bem difícil encontrar lugares. Por isso é que mal li, me lembrei de ti/de vocês.

      Comida quentinha a fumegar que te faz sentir perto da cozinha da tua avó Helena é muito lindo. Muito.

      Outro beijo.

      Mar

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