Centésima página.























Os sítios são feitos de sítios. Por isso, uma cidade pode bem ser uma espécie de enumeração interior e isso determinar ligações mais ou menos inexplicáveis. Não é o caso do lugar das imagens. Explica-se bem, até. A começar por ser, para mim, o lugar mais importante e mais bonito de uma cidade inteira. A Centésima Página, na cidade inteira que é Braga. O caminho parece que se faz sozinho até aos frescos meio decadentes daquele edifício cheio de narrativas anteriores. E a seguir, é descobrir o lugar. Avançar pelo miolo, não ficar à superfície, deixar que nos fique na pele. E a Centésima Página é uma livraria a sério. Os livros não estão para ali. Ao contrário. São mexidos. Folheados. Levados dali para fora, para habitarem outros lugares e outras pessoas. E são muitos. Mesmo muitos, os livros. Tantos, que as paredes começam e terminam assim: com livros. Tantos, que temos de usar escadas para alcançar os mais inacessíveis. Assegurado este detalhe dos livros, até que as coisas poderiam ficar por isso mesmo. Mas não. Não ficam. Há mais. Há um espaço de refeições, onde descansa a secção de livros de comida. Perto das mesas breves, mais estantes de livros. Ali bem disponíveis. No sítio certo, os livros de comida. Ao lado, numa sala a dar para o jardim, os livros de criança. O espaço dos livros infantis é tão bonito e tão luminoso. Claramente a pensar nelas, nas crianças. E os livros são muitos na mesma. Não são só os grandes que têm direito a uma livraria a sério. As pessoas pequeninas também:) A respirar perto dos livros, arte e mobília nórdica bem recuperada. No final de todas as salas e de todos os recantos, o jardim. Não é muito grande, nem precisa de o ser. É um bocadinho de verde, com cadeiras e com mesas de madeira. Num cantinho escondido, à espera das brincadeiras de criança quando há muito sol, bolas de futebol. Creio que o espírito desta livraria estará em detalhes deste género. E creio que esse espírito é fácil de entender. A ideia é a de se estar. De nos deixarmos estar. Ir para a Centésima Página. E não ir à Centésima Página. A sintaxe ajuda a distinguir as coisas. Estando lá e olhando para as pessoas, nota-se que o espírito é mesmo esse. E deixam-se estar muitas e muitas vezes, as pessoas que gostam (muito) desta livraria
Sempre tive as livrarias como lugares seguros. A começar por poderem ser os epicentros de todas as subversões, de todas as insubordinações, de todas as insubmissões. Soube desde muito cedo que seria sempre uma pessoa livre. Que a falta de liberdade me seria sempre insuportável. Que a minha vontade de liberdade seria inabalável. E isso veio/vem dos livros. Os que li, os que ando a ler, os que li e os que não chegarei a ler. Num paralelismo íntimo, sinto numa livraria o mesmo silêncio e a mesma noção de limbo de uma igreja vazia. São raros os lugares em que sentimos que podemos suspender o mundo. A mim, as livrarias e as igrejas vazias dão-me essa sensação. Como se fechasse uma janela com vidros duplos, quando entro numa livraria ou numa igreja sem gente. Digo ao mundo até já, gosto muito de ti e isso tudo, mas agora vou estar aqui um bocadinho sem dizer coisas. E logo a seguir, o tal som interior de uma janela com vidros duplos. O som parece fugir e tudo. Fica lá fora. Nas igrejas, sento-me e fico ali quieta, a ver se consigo ouvir-me bem. Nas livrarias, o mesmo silêncio. Mas é um silêncio que se move. Se ando à procura de um livro qualquer. Se estou à espera que um livro qualquer me encontre. Mas em silêncio. Por isso é que é bom haver livrarias assim. Com muitos livros e onde cada um dos nossos silêncios possa mover-se em liberdade. A Centésima Página é um edifício cheio dessa liberdade interior. E eu gosto mesmo de pensar que esta livraria há-de existir sempre. Que não há-de soçobrar, que não vai precisar de ir para centro comercial nenhum e de passar a ser uma livraria como as outras. Não faz mal a chuva nem o vento nem o sol nem nada. As pessoas que gostam da Centésima Página não se importam com nada disso e entrarão uma e outra vez naquele edifício. As pessoas assim como eu. E que assim seja. Por muitos e muitos anos. 

A música é dos Queens of the Stone Age. Rock do deserto da Califórnia, a fazer com que a minha memória regresse a um concerto de que gostei (mesmo) muito. E a ideia de que um concerto também pode ser assim como uma igreja vazia ou como uma livraria. O mundo também fica em suspenso. Acontece-me sempre assim. E quanto mais pesado é o som, maior é o silêncio dentro. 


9 comentários:

  1. Há tanto tempo que não vou a Braga (aos cinquenta por cento da minha genética) que me esqueci dessa admiração que também sinto pela atmosfera da Centésima Página. Saudades, fui o que senti ao ler as suas palavras. Vaguear por entre as folhas. Senti-lhe o cheiro e a claridade vinda do jardim. Sabemos que as livrarias vivem da afluencia dos leitores mas sabe tão bem andar e ficar num recanto da segunda sala sozinha a apreciar o espaço enquanto nos deixamos encantar pelo parágrafo de um livro.
    Obrigada por esta viagem nas minhas memorias...

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  2. Há tanto tempo que não vou a Braga (aos cinquenta por cento da minha genética) que me esqueci dessa admiração que também sinto pela atmosfera da Centésima Página. Saudades, fui o que senti ao ler as suas palavras. Vaguear por entre as folhas. Senti-lhe o cheiro e a claridade vinda do jardim. Sabemos que as livrarias vivem da afluencia dos leitores mas sabe tão bem andar e ficar num recanto da segunda sala sozinha a apreciar o espaço enquanto nos deixamos encantar pelo parágrafo de um livro.
    Obrigada por esta viagem nas minhas memorias...

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    1. Olá Ana,

      A Centésima Página é, seguramente, uma das melhores livrarias que conheço. Permite essa deambulação e esse ficar a sós de que fala e de que tem saudades. E é tão bonita. Tão tranquila. Como se houvesse um intervalo entre o "lá fora" e o "cá dentro". Especialmente o tempo passado no jardim, a folhear os livros que vão connosco, a adivinhar-lhes as narrativas. Desta vez foi também assim.
      A ver se volta a Braga e à Centésima Página. Estão à sua espera. As memórias anteriores e as que estão para/por acontecer.
      Obrigada a si.

      Mar

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  3. Parece ser tão bonita, a Centésima Página! Também gosto de me perder numa livraria, adoro o silêncio, aquele bocadinho só nosso... Tão bom!

    Beijinho grande e um Bom fim de semana para ti, Mar ♥

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    1. Olá Cláudia,

      Muito bonita, sim. As imagens não conseguem dizê-la. E as palavras também não. Muito desse tempo e desse silêncio de livraria. Um tempo e um silêncio que não consegues em nenhum outro sítio que não numa livraria assim como esta.

      Um beijo. Dias lindos para ti!

      Mar

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  4. Que belo espaço! Gosto muita da sua maneira de ver detalhes cheios de significado. Um abraço amigo.

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    1. Muito especial, esta livraria. E obrigada, Ana. Gosto de detalhes. Significam sempre muito.

      Um abraço grande para si.

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  5. Há anos que não vou a Braga. E não me lembro de me ter cruzado com essa livraria. Bem especial, a julgar pelas tuas palavras e pelas fotografias que nos mostras. Hei de me lembrar deste teu post da próxima vez que visitar esta cidade. E hei de ir à Centésima Página. Bom ver que há lugares como este que resistem.
    Espero que a semana de regresso às aulas tenha corrido bem.

    Um beijo grande,

    Ilídia

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    1. A ver se procuras a Centésima Página, então. Gostamos tanto deste sítio, que somos capazes de ir a Braga só por causa da nossa livraria especial. Foi o Vasco que me ensinou este caminho. E ainda bem que assim foi.
      É uma livraria cheia de vida. Não é um daqueles lugares a definhar, com pena de si próprio. Nada disso. Reinventa-se, adapta-se e tem sempre gente devota, que presta culto a uma religião que admite todas as religiões: a dos livros.


      Foi uma boa semana. Mais dias. Que venham mais dias de vida.

      Um beijo para ti.

      Mar

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