Chão.













Assim que começa a haver ervilhas de quebrar, esta é a primeira coisa que me apetece fazer. Comida de quando era pequena. A assinalar a franqueza dos dias mais longos. Lembro-me claramente do encantamento de andar por entre aquela folhagem que intercalava as flores lilás com as vagens muito verdes e muito frescas. A Natureza tem o(s) seu(s) tempo(s) e eu aprendi desde cedo a perceber as estações de acordo com estas coisas ínfimas. A minha mãe ensinou-me a saber reconhecer e a recolher as vagens que estavam no ponto para esta comida. Fazíamos isso tudo juntas, normalmente ao final do dia ou bem cedo, que era quando deviam ser apanhadas. A seguir, vinha aquela parte de lhes retirar os fios. No final, via como ela as cozinhava com o cuidado que merecem. Insistia (e insiste) sempre no ponto fundamental: tempo a mais estraga as ervilhas. Se facilitarmos, perdem irremediavelmente o verde e ficam amarelas e feias, do género de só inspirar misericórdia pela alma que tinham e que deixaram de ter. Assim, as vagens são sempre a última coisa a entrar no tacho, escassos minutos antes de se servir. Posso até vir a esquecer-me de muitas coisas, mas que nunca me esqueça desse chão que ela me ensinou. Desse chão que ela é. 
Comida quentinha, feita num tacho, com aquele tempero que nos dá alegria e serenidade imediatas. Comida de Abril a caminho de Maio. Comida que se come com garfo e com colher, por parecer uma sopa entre o substancial e o delicado. 
Fica aqui mais este capítulo. Com bocadinhos da mesa desse dia. Com as flores que gosto sempre de ter por perto, no lugar onde esta e todas as outras comidas são feitas. A limonada muito fresca, naquele jogo feliz entre a doçura e a acidez. E um vinho branco vindo deste lugar e que parece querer rivalizar em densidade e em sofisticação com os vinhos tintos. 


Massa de bacalhau com ervilhas de quebrar e com ovos escalfados

2 lombos de bacalhau (uso congelado) + 2 dentes de alho (picados, com um pouco da casca) + 1 folha de louro (sem a nervura do meio) + 1 lata de tomate em pedaços + metade de um pimento vermelho + massa cotovelinhos (uso esta) + ervilhas de quebrar + ovos + sal, azeite, água e coentros q.b.

Primeiro, coze-se os lombos de bacalhau. Quando a água começar a ferver, desliga-se de imediato o lume e deixa-se estar assim dez minutos exactos. Decorrido esse tempo, retira-se do tacho os lombos de bacalhau e mantém-se a água em lume brando, acrescentando-lhe mais um copo. Entretanto, elimina-se todas as espinhas e peles do bacalhau, de maneira a que fiquem só as lascas, limpas de impurezas. 
Quando a água recomeçar a ferver, acrescenta-se a massa, o tomate, o pimento cortado, o louro e um fio de azeite. Tempera-se de sal e deixa-se cozer a massa. Quando estiver quase a ficar cozida, entram as lascas de bacalhau, as ervilhas, os dentes de alho picados e os coentros. Mexe-se com cuidado, para não desfazer as lascas, rectifica-se os temperos e acrescenta-se os ovos. Deixa-se estar durante três minutos, em lume médio. Serve-se de imediato, que esta comida não espera mesmo por ninguém. A partir do momento em que se desfaz a gema naquele caldo generoso, uma espécie de magia silenciosa. Bom assim. 

E esta música. Esta música. 


7 comentários:

  1. Bom dia, Mar.
    Num tempo muito distante, também costumava apanhar ervilhas de quebrar com a minha mãe. Cá em casa gostamos imenso de ervilhas, mas nunca fiz com bacalhau e massa, agora com ovos escalfados, sim.
    Ontem, ofereceram-me uma sacada de ervilhas. Hoje, ao jantar, vou experimentar esta receita. As imagens são tão apelativas que não há com resistir.
    A mesa, como sempre, lindíssima. Adorei a toalha, a limonada e a simplicidade das flores, na jarra/caneca também ela tão bonita.
    Um bom final de abril e um ótimo começo de maio.
    Bjs
    Ana

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  2. Bom dia, Mar.
    Num tempo muito distante, também costumava apanhar ervilhas de quebrar com a minha mãe. Cá em casa gostamos imenso de ervilhas, mas nunca fiz com bacalhau e massa, agora com ovos escalfados, sim.
    Ontem, ofereceram-me uma sacada de ervilhas. Hoje, ao jantar, vou experimentar esta receita. As imagens são tão apelativas que não há com resistir.
    A mesa, como sempre, lindíssima. Adorei a toalha, a limonada e a simplicidade das flores, na jarra/caneca também ela tão bonita.
    Um bom final de abril e um ótimo começo de maio.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana.

      É inevitável associar este verde de quebrar à minha mãe. Se tem as mesmas memórias, entende bem. A minha mãe tem quatro filhos e sempre passou tempo a sós com cada um de nós. Este era um dos rituais dela só comigo. Sigo esse preceito com o meu filho, também. De vez em quando, só eu e ele. A fazer coisas muito simples, não de programa ou de calendário. Assim sem mais.
      Espero que tenha sido bom, o seu jantar. É uma das minhas comidas preferidas. E o meu marido adora, que também nunca tinha comido massa com bacalhau, antes de mim aqui.
      Obrigada por gostar dessa maneira da mesa para esta comida. Com a limonada feita com limões que o meu filho foi buscar ali ao jardim e que espremeu sozinho. A vida e cada uma das suas simplicidades.

      Um bom início também para si. Bom fim-de-semana.

      Mar

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  3. Nunca houve isso de ervilhas de quebrar apanhadas com a minha mãe. Pensando bem, nem sei assim de repente como é o processo;). Mas mesmo que não tenha havido isso, muito do meu chão é fruto do que são a minha mãe e o meu pai e os ensinamentos que me passaram. Ter chão. Seguro.
    Beijo grande.
    Babette

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    1. É um processo lindo, cheio de subtilezas. Havias de gostar, creio.
      Sim. Chão. Seguro, na medida do possível. Ela também me ensinou a prudência de não ter (quase) nada como absoluto. E a independência. A saber tomar conta de mim, da minha família, da minha casa. E da minha pele, com creme hidratante todos os dias, de manhã e antes de ir dormir. Um ensinamento tão importante quanto todos os outros:)

      Um beijo. Bom fim-de-semana grande.

      Mar

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  4. Gostei do ritual e das memórias repleta de sabedoria. Por cá as memórias contextualizaram-se nas favas e não nas ervilhas de quebrar. Cada um vai escrevendo a sua história e fazendo esboços para o futuro.
    É sempre reconfortante vir aqui.

    beijinhos
    Patrícia

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    1. Olá Patrícia,

      No meu caso, as ervilhas. E sim, as histórias estão sempre a ser escritas, reescritas e rasuradas, também. Obrigada. Reconfortante é bom. Essa é uma das ideias, creio. Pelo bem.

      Um beijo grande para ti.

      Mar

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