Lastro.













Fazer comida é um exercício de subversão. Por mais que até seja lido ao contrário. Mas todos os gestos/actos humanos têm sempre vários níveis de leitura. A questão é que a serenidade associada a estes temperos é, muitas vezes, uma afirmação. Tem essa componente. Quantas e quantas, as alturas em que se respira fundo, face a um dado qualquer nas nossas vidas e se pensa que há um tempero qualquer, à espera que o façamos acontecer. E não no registo passivo, de resignação. É ao contrário. O caminho que se faz é o inverso.  
Esta comida foi feita pela primeira vez num dia particularmente complicado. Lembro-me de tudo o que verbalizei, de tudo o que escolhi calar. Algures entre uma coisa e outra, pensei que queria chegar a casa e fazer isto que acabou por acontecer. Ocorreu-me que a subversão maior seria esse tempero e que esse seria o verdadeiro lastro desse tal dia complicado. Dessa primeira vez, o tempero foi imediato e aleatório. Quase como se fosse uma cena de "action painting". A minha comida tem muito essa cadência. Vou fazendo e logo se vê no que dá. Os ingredientes são tintas. As cores das coisas são sempre tão bonitas, parecem sempre querer juntar-se a outras, até fazerem sentido. 
A tinta mais importante, neste tempero, é o vermelho intenso do vinho tinto. É esse o ingrediente que determina que esta peça de carne que habitualmente é regada com vinho branco, passe a repousar num nível diferente. E sereno. Muito sereno, esse tal nível diferente. 
No dia destas imagens, foi servida com um vinho que eu costumo descrever como sendo "de comer". O nome Zambujeiro é muito certo. Mesmo muito certo. Deste ano, muito especialmente. Abençoados os elementos de 2009, que deram em vinhos inesquecíveis. Fica mais este. Perto da comida com que foi servido. Duas coisas que deixam lastro. Este vinho. Esta comida. 


Entrecosto em vinho tinto (e em mais coisas:)
NB1: No talho, pede-se entrecosto da parte com menos gordura, sem o courato e cortado em pedaços relativamente pequenos.
NB2: Esta receita não implica forçosamente ter uma panela de ferro fundido. Sou particularmente cuidadosa nessas questões e, antes de publicar, segui os mesmos procedimentos numa assadeira, para ver se corria tudo bem. E sim. 

1 peça de entrecosto com cerca de 1 quilo e meio + meio litro de vinho tinto + 5 dentes de alho (esmagados e com um pouco da casca) + 2 folhas de louro (sem a nervura do meio) + 6/7 rodelas finas de funcho + 1 malagueta (verde ou vermelha) + 4 colheres (de sopa) de molho inglês + 2 colheres (de sobremesa) de Tabasco + 1 colher (de sopa) de xarope de ácer + sumo de 1 laranja + 2 colheres (de sopa) de Maizena (uso Express) + sal e azeite q.b. 

O ideal é assegurar que a carne fica temperada de um dia para o outro. E é muito simples: lava-se bem as peças de carne, coloca-se na panela ou na assadeira e vai-se acrescentando os temperos da sequência. Cobre-se, deixa-se ficar e dorme-se sobre o assunto:). No dia seguinte, basta ligar o forno nos 210ºc, pôr lá dentro a panela ou a assadeira (sem nada a cobrir) e deixar estar assim durante meia hora. Este primeiro tempo é muito importante, porque é aí que a parte de cima das peças de carne vai ficar tostada. Decorrida esta meia hora inicial, põe-se a tampa na panela ou cobre-se a assadeira com papel de alumínio. Reduz-se o forno para os 170ºc e deixa-se estar assim durante uma hora e meia. A seguir, verte-se o molho para uma caçarola, leva-se ao lume e junta-se a Maizena. É nesta altura que se prova e que se rectifica o tempero. Verte-se novamente sobre a carne e leva-se ao forno mais dez minutos (com a tampa da panela ou coberta com folha de alumínio). Costumo servir com legumes cozidos e com um arroz muito aromático de que deixarei receita por estes dias. 

A música é dos Royal Blood. A uns dias de um concerto muito desejado:) 



9 comentários:

  1. Bom dia, Mar.
    Como fiquei feliz por chegar e ver que havia um texto novo. Já não venho só à procura de receitas, venho à procura dos textos, das imagens e da música. E que texto! E que imagens! Sentido e belas. Obrigada.
    Cozinhar é, muitas vezes, um exercício que serve para exorcizar maus momentos, para apaziguar o espírito e nos devolver a serenidade. Cozinhar é mais do que prover uma necessidade básica, é um acto de amor e como todos (ou quase todos) os actos de amor redime-nos.
    Apesar de não comer carne de porco, esta receita vou fazê-la, primeiro, para os meus homens, depois para uns amigos especiais, pois só de a ler já lhe sinto o aroma e adivinho o prazer que vai proporcionar.
    Um bom dia. Uma boa interrupção lectiva.
    Bjs
    Ana

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  2. Bom dia, Mar.
    Como fiquei feliz por chegar e ver que havia um texto novo. Já não venho só à procura de receitas, venho à procura dos textos, das imagens e da música. E que texto! E que imagens! Sentido e belas. Obrigada.
    Cozinhar é, muitas vezes, um exercício que serve para exorcizar maus momentos, para apaziguar o espírito e nos devolver a serenidade. Cozinhar é mais do que prover uma necessidade básica, é um acto de amor e como todos (ou quase todos) os actos de amor redime-nos.
    Apesar de não comer carne de porco, esta receita vou fazê-la, primeiro, para os meus homens, depois para uns amigos especiais, pois só de a ler já lhe sinto o aroma e adivinho o prazer que vai proporcionar.
    Um bom dia. Uma boa interrupção lectiva.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Isso é tão bonito. Mesmo lindo. Obrigada. De vez em quando, uma parte do meu trabalho implica horas muito longas ao computador, a rever textos extensos. É trabalho que só posso fazer à noite, para não interferir com as aulas e com as outras coisas. Mas é moroso e muito cansativo e faz com que não dê para escrever aqui. Fica a justificação pela ausência da semana passada. Mas volto sempre, que gosto muito de andar por aqui e já estava farta de ver este lugar em suspenso:)
      E sim, redenção pela serenidade. Ao mesmo tempo, aquilo que eu sinto invariavelmente, é que penso muito, enquanto faço comida. "Arrumo" muitas coisas que parecem só desarrumadas. E o melhor é que, no final desses e de outros processos interiores, há uma mesa posta, comida que faz bem e vinhos inesquecíveis. Nós damos às histórias os finais que queremos. Fazer comida também ensina isso.
      Esta comida é tão gostada. Fiz isto na sexta-feira para o jantar e tive de voltar a fazer para o almoço de Domingo. Pressões exteriores amorosas:)

      E só mesmo as aulas é que estão interrompidas. Vou estar a trabalhar até à véspera do feriado. Quero guardar o meu tempo de férias para outra altura e aproveitar bem o final de semana prolongado:)

      Um beijo para si. Obrigada.

      Mar


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  3. Bom dia Mar,

    Mais uma vez um texto cheio de ensinamentos.

    Eu gosto muito da música do Frank Sinatra, "My Way", muito por causa daquela parte que diz: "regrets y had a few but a did it my way".

    E na comida também é assim, muito assim. É o que nos liberta.

    Mas, do seu texto retiro também o seguinte: não vale a pena carregar com memórias do que correu mal. Rectificamos os temperos e seguimos em frente. Na cozinha, na vida, seja no que for.

    Como eu tenho necessidade de aprender esta lição!

    Quanto á sua receita, parece-me muito bem. Como sempre.

    Por coincidência, tenho entrecosto temperado para o jantar. Enquanto preparava o jantar de ontem, temperei a carne para hoje. Depois de um dia de trabalho e de um episódio algo enervante. Libertação depois, ao misturar ingredientes. Da próxima vez, usarei este seu tempero.

    Já levei a receita do peito de frango com mostarda e legumes. Depois dou conta do resultado.

    Um beijo do Algarve, à espera que a Primavera se deixe de vergonhas e se declare definitivamente,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Não, não vale a pena andarmos carregados. É engraçado que faço sempre uma espécie de reflexão flash, quando corrijo a minha postura, enquanto estou ao computador. Digo para mim: costas direitas:) A dança também deixa lastro. Mas o ponto é que essa frase inofensiva lembra um detalhe muito importante. Isso de mantermos as nossas costas direitas. Então, se andarmos a carregar com coisas, não dá para isso de costas direitas:)
      E eu não tenho essa pretensão de lições ou de ensinamentos. É que a comida motiva sempre outras coisas. Dá muito em que pensar. E acaba por ficar aqui tudo junto. Creio que é por aí.
      Espero que corra tudo bem com essa receita com aroma a mostarda.

      Vai declarar-se. Dizem que sim, que está quase:)

      Um beijo para si. Obrigada.

      Mar

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  4. Um mundo inteiro nestas palavras, nestas imagens, nos ingredientes de mais uma receita. O cuidado que pões em tudo é o mais comovente. E faz acreditar que tudo na vida se resolve. E que cada um encontra o modo de o fazer. A fazer os outros felizes parece-me ainda melhor ;) Um beijo
    Babette
    Babette

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    1. Olá Babette,

      Só há uma coisa na vida que não tem resolução. Tudo o mais, sim. Não há fatalismos nem coisas determinadas à partida que quebrem essa noção. Sou pela versão em que estamos ao volante das nossas vidas. O que até calha bem, porque adoro conduzir:)
      E sim, bem felizes, que ficam as pessoas, depois desta comida:)

      Um beijo.

      Mar

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  5. Há dias em que fazer comida é mesmo um ato de revolta. É dizer não a tudo o que de mau nos aconteceu e escolher fazer algo que nos faz bem. Para quem gosta de cozinhar, ter uma cozinha à nossa espera ajuda sempre. E ajuda pensar nela ao longo do dia. Saber que, independentemente de tudo, a nossa cozinha estará lá para nós :)
    Gostei muito desta receita e da imagem a ela associada. "Action painting". Às vezes é assim :)

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Olá Ilídia,

      Não é bem uma coisa de raiva. Não devo ter passado bem a ideia. Tudo o que me é exterior e que é mau, fica à porta. Chego a casa, vou ao jardim um bocadinho, tomo um banho muito tranquilo e a seguir, é só abrir o vinho para o jantar e ir fazendo a comida. Depois desse banho, é como se houvesse um começo fresco e as coisas más deixam de estar na minha pele. A maior parte das vezes, resolvo-as antes de vir para casa, que gosto de preservar a minha serenidade, nem que me custe um ou outro conflito, uma ou outra divergência.
      Acho que tu e os teus homens iriam gostar desta comida. Uma lástima, estares tão longe. Acho que os nossos temperos são semelhantes:)

      Um beijo.

      Mar

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