A propósito.












Um dos dados persistentes destas páginas é o vinho. E isso é por ser persistente na minha narrativa de todos os dias. Num exercício de memória rigoroso, nenhum dos meus jantares passa sem esse dado. Tinto denso e do género de deixar lastro. Nos copos e nas memórias sensoriais. Branco mineral ou frutado. Normalmente, são estas duas tonalidades, com mais ou menos gradações. Mas mais tinto com densidade, numa contabilidade interior de rajada. Não obstante a frequência desse dado, procuro só dar conta de vinho que (para mim) é especial. Não domino o léxico mais ou menos hermético deste universo e remeto para lugares onde se fale essa linguagem técnica. Vivo um bom vinho como vivo a vida, creio. Aproveito, fico feliz, concentro-me no prazer aparentemente fugaz. É assim nesse espírito. O que não me impede de saber exactamente quando gosto/não gosto. 
Para mim, a comida vai bem com vinho. Ligam-se, harmonizam-se, fazem sentido. Ou não, se não forem certos um para o outro. Em todo o caso, aplico ao vinho o mesmo princípio que aplico à comida: se não gostar, não bebo/não como. Um mau vinho é uma lástima, uma má memória. E eu penso que é sempre bom fugirmos às más memórias, sempre que pudermos fugir-lhes, melhor acrescentar. Quando gostamos tanto de uma dimensão das nossas vidas, procuramos sulcá-la, como se fosse um caminho bom de percorrer. 
Esse caminho leva-me invariavelmente ao sítio destas imagens. Uma garrafeira "à séria". No Passeio Alegre que aparece em fragmento, a abrir o post. Quando entramos, a impressão primeira é a de um pequeno caos. Caixas de vinho por todo o lado. Tão literalmente espalhadas, que estão no chão, em suportes de madeira, em estantes, a ladear as escadas que nos conduzem à zona baixa da Garrafeira Augusto da Foz. Uma das mais antigas e mais completas do Porto. Se não encontramos lá, dificilmente encontramos noutro lugar. A lógica é essa. O atendimento é à antiga, no que isso tem de ressonâncias boas. E, tanto as escadas como o balcão, dão sinais da quantidade de pessoas atendidas, ao longo da longa existência deste sítio. E gosto do portão de ferro que guarda vinhos como se fossem segredos que se quer preservar. E do aviso recorrente e em tom definitivo, em algumas vitrines. Reserva da casa. Não se destina à venda. A Gerência. Também gosto dessa (i)lógica comercial. Revela paixão, creio. Vinhos guardados como se fossem jóias de família, como se fossem herança. Acabo sempre por me distrair a olhar os rótulos e a achar que as garrafas aguentam bem com o tempo. Não ficam feias, mesmo que acabem por amarelecer, de antigas. O princípio wabi sabi aplicado a garrafas de vinho, muito possivelmente. 
A propósito deste sítio, um livro e uma boa notícia. A começar, o livro. Este. Cheio das histórias de cada garrafa. Contar uma história é como fazer comida. É preciso juntar ingredientes e querer muito que façam sentido. Neste caso, esse tempero vai mais à frente e abre uma garrafa a cada história. E a boa notícia, a propósito de um vinho especial, feito no (meu) Dão. O Quinta de Lemos Jaen, 2007, a ascender à categoria de Diamante, no Japão. 
Parece-me que ficam bem aqui, estas três coisas juntas, como os vinhos que fazem sentido com a comida. Um sítio, um livro, um vinho. Bem a propósito. 
E a música. Sempre. A de hoje é a que estava a ouvir, algures na última imagem. A Foz vista em versão a abrir, ao som de uma onda electrónica que me soube mesmo bem e que é memória do Porto nocturno de que gosto tanto. Jamie XX. Girl. 




6 comentários:

  1. Boa tarde, Mar.
    Admiro a paixão que deixa transparecer nas palavras com que descreve tudo aquilo de que gosta e que faz parte do seu universo. Coisas simples, como a comida ou uma garrafa de vinho, ganham outro significado e dimensão quando no-las dá a conhecer.
    Raramente bebo vinho, mas aprecio vinho de boa qualidade.
    Um bom fim de semana, com sol.
    Bjs
    Ana

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  2. Boa tarde, Mar.
    Admiro a paixão que deixa transparecer nas palavras com que descreve tudo aquilo de que gosta e que faz parte do seu universo. Coisas simples, como a comida ou uma garrafa de vinho, ganham outro significado e dimensão quando no-las dá a conhecer.
    Raramente bebo vinho, mas aprecio vinho de boa qualidade.
    Um bom fim de semana, com sol.
    Bjs
    Ana

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    1. Bom dia, Ana

      É bom dizer-lhe "bom dia", para variar:). Tem essa componente de paixão, no que isso pressupõe de intuição e de fruição. O universo dos vinhos presta-se a algumas interpretações que não partilho de todo. Costumo dizer que o meu único critério é gostar/não gostar. Um critério muito elementar, mas certeiro.
      E sim, bom vinho. Quando não, é melhor deixar ficar.

      Está a ser de sol, o fim-de-semana. E lindo. Espero que o seu também. Obrigada pelos significados e dimensões que lê aqui.

      Um beijo.

      Mar

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Mais uma vez o teu olhar. Os detalhes a que prestas atenção. O meu Porto tão bonito. Um dos sítios que faz parte também do meu universo. Há muito tempo que sim. Primeiro com a minha mãe, mais tarde com o Zé. Gosto deste lugares que têm alma e são lugares que perduram. Boas, estas referências ;)
    Beijo grande!
    Babette

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    1. Sim. Mais uma vez, o Porto. A cidade que está no sangue do Vasco, que não nos é epidérmica. Os meus sítios, os sítios dele. Os percursos no Porto resultam sempre dessa conjugação. Adoro esta garrafeira e ainda mais a mercearia que lhe está associada. Um dia, quando não estiver tão concentrada nas minhas compras, guardo imagens desse outro lugar dos senhores simpáticos que me ajudam a chegar às coisas e que acham piada ao meu cestinho algarvio:)

      Um beijo.

      Mar

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