Comida "mestiza".








Como eu gosto de comida voluptuosa. Temperada. Condimentada. Com ervas e com sucos que nos fazem tentar adivinhar. O poder da sugestão a funcionar, nesses momentos. Apanhamos um fio sensorial, fechamos os olhos e tentamos aceder ao que nos é sugerido. Para mim, a comida mexicana tem esse mistério. Essa volúpia. No meu imaginário, é sempre feita por mulheres com história, com força. No meu imaginário, é comida feita por mulheres plenas, sensuais, apaixonantes. Mestizas, exóticas, como a comida dos trópicos. 
Durante uns três anos, li tudo quanto era literatura sul-americana. E, invariavelmente, sentia-me atraída pelas descrições da comida, dos lugares, dos corpos, dos cheiros. Isso era tanto assim, que, a meio de uma dessas leituras de dezassete anos, dei por mim a tentar reproduzir um bolo feito por uma personagem muito inteira. Chamava-se Tita e tinha caído no erro de se apaixonar pelo homem errado. Numa evolução narrativa especialmente perversa, teve de fazer o bolo dos noivos. O que seria servido no casamento desse homem errado com a sua irmã mais velha. Era um bolo misterioso, lembro-me. Consegui executá-lo tal como dizia o livro. Mas faltaram-me duas coisas, na altura. Uma essência qualquer feita a partir de pétalas de rosa e as lágrimas dela. Ela chorou o tempo todo, enquanto fazia o tal bolo dos noivos. As lágrimas iam caindo na massa, enquanto era batida. Mas fez o bolo, ainda assim. A adivinhar a alegria dos outros, a celebração alheia, a dançar por cima da mágoa dela. Lembro-me tão bem desse bolo. Lembro-me tão bem dessa mulher-narrativa. A Tita, do Como água para chocolate. Lembro-me dela sempre que faço comida com ressonâncias mestizas. E isso acontece bastantes vezes, dada a minha vontade (regular) de guacamole.  
Numa das vezes em que ia começar a fazer o guacamole de que gosto tanto, não me apeteceu que os ingredientes ficassem integrados naquela pasta deliciosamente verde. Gostei tanto de ir partindo cada pedaço em pedaços cada vez mais pequenos, que não tive coragem de avançar para o momento de esmagar o abacate. Deixei estar como estava e acrescentei papaia, para ver no que dava. Deu nisto. Numa das minhas alternativas a guacamole. Uma entrada com aquele quê de maravilhoso da cozinha mexicana. Pedaços ligeiros servidos sobre tostas escuras e não em tortilhas, por ser infinitamente mais maravilhoso. 

Ceviche maravilhoso inspirado no guacamole 
NB: Eu costumo servir isto como entrada. Mas já servi como acompanhamento e é igualmente maravilhoso. Tem também a vantagem de se poder guardar no frio durante uns três dias. 

1 pêra abacate + 1 cebola vermelha (pequena) + 1 tomate (pequeno) + 1 pimento doce vermelho (pequeno) + metade de uma papaia (pequena) + sumo de 1 limão verde + azeite, coentros, flor-de-sal e pimenta preta q.b. 

Parte-se a pêra abacate, a cebola, o tomate, o pimento e a papaia em pedaços muito pequenos. A seguir, coloca-se num prato fundo e largo. Rega-se tudo com o sumo do limão, tempera-se com flor-de-sal, um fio de azeite, os coentros e pimenta preta moída na hora. Envolve-se muito bem e serve-se. Com estas tostas ligeiras. Com este vinho branco que parece mesmo pedir coisas destas. Ou com o que apetecer, desde que nos faça bem. 

A música tinha mesmo de ser esta. Uma gravação rough, numa ruína algures no México. FKA Twigs. Hide. 



4 comentários:

  1. Olá, Mar.

    Também me deixei encantar, há muitos anos, por Como água para chocolate, essa história de amor lindíssima, temperada pela comida. Desde então, recomendo-o muito a alunas que dizem não gostar de ler. Acho mesmo que é daqueles livros a que uma adolescente não fica indiferente. Gostei de o recordar aqui :)
    Fiquei curiosa em relação a este guacamole com papaia :) Deve ficar bem saboroso e fresquinho.

    Um beijo,

    Ilídia

    PS: Gosto muito de FKA Twigs. Hoje, foram duas coincidências :) Mas não consigo abrir este vídeo. Não sei se será temporário ou se foi retirado do youtube. Também já me aconteceu.

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    1. Creio que sentiria as coisas de maneira diferente, se voltasse a lê-lo. A frescura dos dezassete anos é irrepetível. Foi-me oferecido pela mãe de uma amiga. Muito mística, do género de ler a minha aura, assim que eu entrava lá em casa:)
      É assim como dizes: saboroso e fresco. E outras coisas.
      Estranho, isso do vídeo. Dificilmente será por ter sido retirado, que eu tenho o cuidado de partilhar as versões oficiais. Esta gravação é das sessões Yours Truly. Sempre improváveis e com um som muito particular. Espero que por esta altura já tenhas conseguido ouvir a música que diz que é para nos escondermos.

      Um beijo.

      Mar

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  2. Gosto tanto da literatura quente da América do Sul. Imagino sempre isso das mulheres inteiras, fortes, que são casas. E que cozinham ;) Como essa do livro que gostei tanto de ler. Deve ter ficado deliciosa, essa entrada "mestiza". Gostei da música e do vídeo, que não conhecia. Tanto o lugar como a rapariga têm um ar de "abandono altivo e arrastado". Do género, não quero saber ;)
    As cores todas juntas ficam maravilhosas.
    Um beijo e boa semana
    Babette

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    1. Um traço bem frequente. Mulheres com uma luz muito especial. E sim, a comida é um dado permanente. Há imenso tempo que não leio nada dos trópicos, agora que penso nisso.
      Fica uma delícia, esta comida de início. Cheia de cores muito juntas. Bem linda de fazer:) E acaba por ser uma maneira ligeira de ir debicando coisas enquanto faço o jantar. Já sabes como é o meu registo de pássaro:) Como pouco e muitas vezes.
      Uma certa altivez, naquela melancolia. Verdade. Fico feliz por teres gostado.

      Um beijo de boa semana.

      Mar

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