Receber.










No dia mais longo do ano, fui recebida. E recebi. É engraçado como as palavras podem ter tantas ressonâncias, mesmo quando parecem ser só simples, básicas. Receber não é, à partida, um termo especialmente complexo ou que se preste a muitas elaborações mentais. Mas isso é só se ficarmos pela superfície, pela casca das coisas. É muito, é tanto, esse verbo. E até poderia ser só um verbo meio solitário ou egoísta. Eu recebo, tu recebes, ele/ela recebe, nós recebemos, vós recebeis, eles/elas recebem. Uma conjugação que pressupõe que há um sujeito que age face a um outro sujeito, objecto da sua afeição, estima, o que for. Também pode pressupor uma certa passividade, se colocarmos a tónica no sujeito que recebe. Mas isso seria só triste. Ainda bem que a vida tem outras conjugações e outras aritméticas mais vastas, caso contrário, seria um tédio. A nossa existência, perspectivada face a outras existências, é tão maior, tão mais bonita. Um exercício que desfaz assimetrias, o de sermos recebidos e de recebermos. Como se lembrássemos que somos todos feitos da mesma matéria. A melhor maneira de celebrar isso? À mesa. Nem mais:)
Fui recebida com uma mesa linda, com comida muito perfumada e feita com aquele carinho que esta minha amiga coloca nas coisas. Fui recebida com música, com os abraços apressados dos gémeos, ansiosos por trocar cromos com o meu filho:) Ficam fragmentos do lugar que me acolheu, no tal dia mais longo do ano. O sofá onde nos demorámos. Os cestos étnicos de que gosto tanto, num fundo branco. A luz daquele dia, o piano dela, um bocadinho do jazz que ouvimos, os menus que lhe trouxe de Veneza, as tacinhas de chá que ela me trouxe do Japão. A comida, a mesa e tudo o mais que ela entender, podem ser vistos lá, no lugar especial que ela torna mais especial todos os dias. Este
A música para este post só podia ser da banda sonora deste filme. Uma narrativa sobre a solidão. De como a solidão pode ser intraduzível, de como a solidão pode transformar o mundo num lugar bem estranho. Com todos os adquiridos e abismos, há coisas que não precisam de tradução e pronto. Esta narrativa também lembra isso, que às vezes esquecemo-nos de coisas simples e importantes e a arte e as suas manifestações lembram-nos essas coisas simples e importantes. 


8 comentários:

  1. Olá Mar,

    Muito grande isso de receber, sem dúvida!

    Pressupõe todo um caminho até chegar ao acto em si: todo o carinho, a preocupação, a escolha, as razões do "dar".

    Mais uma vez, tão bonita a vossa amizade!

    E sim, merece celebração!

    A mudança de visual do blogue está muito bem: as fotografias assim ampliadas têm outro encanto.

    O vislumbrar daqueles recantos, daqueles pormenores.

    Já provei "Kir Royal".Obrigada Mar!

    Um beijo do Sul, num Verão muito envergonhado

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      As palavras são assim mesmo. E, normalmente, as que parecem mais fáceis de dizer são as que estão mais impregnadas do que nos é importante.
      Somos muito amigas, sim. No espírito franco e limpo a que deve obedecer a amizade. Com todas as implicações.
      E cada vez gosto mais do trabalho que a Sílvia fez aqui no blog. Ela percebeu mesmo a ideia e transformou-a num lugar onde me sinto mesmo em casa. Também muito especial, ela.
      Fico bem feliz por esse "Kir Royal":) Dá uma volta a este dia de chuva em tempo de sol. Há-de brilhar muito e muito, o sol:)

      Um beijo para si. Obrigada pelo seu comentário carinhoso.

      Mar

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  2. Olá, minha querida.

    Que bom vir aqui, depois de um "daqueles" dias e encontrar um post tão ternurento e tão cheio de coisas bonitas. As que vemos e as que dizes. Gostei muito da tua reflexão sobre esse gesto tão nobre que é receber.

    Um beijo da tua amiga

    Ilídia

    PS: Acho que nunca falámos sobre isso, mas Lost in Translation é um dos meus filmes.

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    1. Olá Ilídia:

      É nesses dias que devemos lembrar-nos de coisas e de pessoas assim. És uma pessoa assim especial, na minha vida. Tu sabes. E sei que se não houvesse tanto mar e tanta terra, haveria coisas destas. Almoços, jantares. Na impossibilidade disso, há muito tempo ao telefone:)
      Ela recebe com essa nobreza de que falas. Com dedicação e carinho. Sente-se isso. Queria que o post passasse bem o quanto ela é toda ternura:)
      Um dos meus filmes, também. Já o vi muitas vezes e descubro sempre detalhes que me são novos. Além do mais, adoro a banda sonora.

      Um beijo. Que estejas bem.

      Mar

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  3. O verbo receber conjugado ;) Obrigada pelo olhar terno sobre as minhas coisas e pelas palavras grandes que deixaste. Com todo o meu carinho,
    Babette

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    1. Olá Babette:

      Vês como ficaram tão bem, as tuas coisas?:) Tens uma casa tão bonita, que achei que conseguia que o meu olhar resguardasse o que é de resguardar, mas que deixasse alguns dos detalhes do teu/vosso espírito minimalista.

      Muito carinho para ti também:)

      Mar

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  4. Narrativa de uma amizade maravilhosa, essa! E o bom gosto no criar e acolher à mesa é também um sinal evidente dessa vossa cumplicidade!! Beijo :-)

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    1. Olá Isabel:

      É mesmo assim como as amizades: maravilhosa. Outro beijo para ti. Foi bom rever-te:)

      Mar

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