Frágeis.






Todos devíamos chegar ao mundo com a etiqueta de frágil. Como as caixas de vinho. Qualquer insignificância pode ferir-nos ou matar-nos. E só temos o nosso corpo, não somos mais nada. A impressão de solidez massiva que pode dar um corpo na sua aparência, não oferece nenhuma garantia de duração. Como um copo de vinho.
Todo o teatro, todo o cinema, toda a literatura, toda a filosofia, toda a forma de expressão, repousam sobre a fragilidade. Ela é a nossa fonte de inspiração oculta, o motor de toda a emoção e de toda a beleza. Mesmo quando aspira à eternidade. Aceitemo-la. Reivindiquemo-la. Como quem pede mais um copo de vinho. Devemos preservar a nossa fragilidade, como devemos salvar o inútil. O vinho é inútil. Como a arte. O amor. A beleza. Mas é o inútil que nos salva do simples cálculo produtivo, que é dono do mundo. Sim, permite evadirmo-nos também. É, talvez, uma saída de emergência. Em todo o caso, o inútil, a fragilidade, o vinho, aproximam-nos uns dos outros, enquanto a força nos separa.

As palavras do início vieram por ele. Quis que estivessem aqui, mesmo que tenham sido escritas para outros fins. Mas achei que pertenciam aqui. Elas e as imagens. Um dos redutos mais bonitos da nossa existência partilhada passa por nos sentarmos juntos, ao final do dia. E haver dois copos de vinho. Que se vão enchendo à medida que nos esvaziamos do que trazemos connosco. E todos os dias a graça desta equação.
Curiosamente, raramente aparecem aqui os vinhos que acrescentam tanto. Não gosto de uma série de coisas associadas a este universo. E isso inibe-me. Não gosto de descrever a experiência. Nem que ma descrevam. Não gosto dos termos e dos detalhes técnicos. Gosto dos nomes das castas. De saber os lugares onde elas crescem. De tentar adivinhar a terra de onde veio o vinho que me sabe bem. Gosto da parte de gostar. E não querer saber porquê. Ou para quê. Porque sim. Intuição e vontade de viver quanto baste.
A minha memória sensorial seria irremediavelmente diferente. Caso não soubesse ao que sabe um Amarone. Ou um Vale Dª Maria. Ou um gin tónico antes de um jantar de Verão. Champanhe com comida ligeira. Ou sem nada. Só champanhe. Se fechar os olhos, consigo regressar a cada um desses lugares. E com ele. Nunca viajo sozinha, para essas memórias. Abro os olhos e ele está lá sempre. É o que está escrito em cada uma das rolhas dos vinhos que nos fizeram bem. Que estávamos os dois. A viver uma coisa muito bela. E tão inútil, como todas as coisas belas.
Com isto, uma música que tem estado connosco.


8 comentários:

  1. Obrigada pela partilha.
    Um brinde a tudo isso.
    E um bom abraço, com um sorriso.

    Joana

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  2. Lembro-me que este gosto comum por um copo de vinho foi uma das coisas que nos aproximou. Gosto das imagens que nos deixas, a evocar momentos bons. Belíssima, a reflexão acerca da nossa fragilidade. Somos, realmente, assustadoramente frágeis. Às vezes penso nisso e arrepio-me. Sempre que tenho um acidente, por exemplo (já te contei que tenho tido alguns :). Por isso, aproveitemos a vida, mas de mãos e copos enlaçados, que é bem melhor :)
    Um beijo,
    Ilídia

    P.S.: Ainda a corrigir testes. Ainda a preencher grelhas. Está quase, quase.

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  3. Olá Joana:

    De nada:) Um brinde a todas as partilhas, então.

    O mesmo abraço com um sorriso dentro. Melhor, dois. Um meu e outro do Vasco.

    Mar

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  4. Olá Ilídia:

    Uma das muitas qualidades do vinho: aproxima. Tem sido essa a minha experiência, até ver. Expostos permanentemente à possibilidade da nossa fragilidade. Nós é que inventamos maneiras de fugir a essa noção. Mas muito vulneráveis o tempo todo. Nós e as nossas noções.
    Viver a vida. Muito. O mais possível disso. Concordo.

    Um beijo.

    Mar

    PS: Cuidado com os sustos na condução.

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  5. O rótulo de frágil devia estar sempre lá. Que é perene, a vida. Que é uma ilusão isso do ficarmos. Fica a garrafa, ficam palavras, ficam pedras (as pedras de que o Vasco tanto gosta). Ficam as recordações de nós, para os nossos, apenas. Dos grandes do mundo ficará mais, talvez. Por isso será importante este registo. Este sobre o efémero que é um copo de vinho. Apesar de um brinde poder ser eterno. Inesquecível. Tal qual um beijo. Fiquem bem!...
    Babette

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  6. Olá Babette:

    Já sabes como é. Aquilo dos registos. Uma espécie de repositório de coisas, estas coisas. E sim, pela casa, as pedras. As pedras feitas esculturas. E as outras. Que apanho perto dos mares onde já estive. Escrevo as datas e os lugares de onde vieram. As pessoas associadas. Como nas rolhas das garrafas. Algumas dessas, têm a marca indelével dos dias em que vocês já estiveram aqui:)

    Um beijo.

    Mar

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  7. Como é bom celebrar a fragilidade da vida com um bom copo de vinho na companhia de quem mais gostamos. Se a isso juntarmos a boa mesa, a boa conversa, então a fragilidade transforma-se em momentos de genuina felicidade. E como é bom!!

    Um brinde, pois, o vinho também!!

    Um beijo,
    Isabel

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  8. Olá Isabel,

    Mesmo assim. Celebrar a fragilidade da vida com um copo de vinho.
    Boas de viver, essas equações. Sempre importante, lembrá-las, que de vez em quando o mundo parece que quer que sejam esquecidas.

    Um beijo para si.

    Mar

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