Fortaleza.




Aparentemente, não tiveram sorte nenhuma com o que os nossos olhos vêem. Nem com o nome. Parecem uma espécie de fortaleza, as alcachofras. Cheias de camadas. Aquele verde seco. Não se percebe bem a que regras deve obedecer a preparação. Por onde é que se começa. Quando se deve parar de retirar camadas. Ou em que momento ao certo é que estarão cozinhadas.
Tenho o hábito de personificar as coisas. Um traço meio infantil, se calhar. Que persistiu, pelos vistos. E então, para mim, as alcachofras são como aquelas pessoas com quem não há empatia imediata. Nada de sorrisos. Rosto fechado. Poucas palavras. Olhar neutro. Mas depois, num momento qualquer, não é bem assim. Num gesto, invariavelmente discreto, a revelação da maior das nobrezas: a de carácter.
Há uns tempos, aconteceu-me uma pessoa-alcachofra. Olhar baixo. Passos silenciosos. Parcimónia nas palavras. Depois, o tal momento. O momento em que a nobreza foi afirmativa, plena de generosidade. Nada ostensiva. Nada a querer colher elogios. Num momento que me foi difícil, a tal pessoa de rosto fechado e de palavras raras, deu a mão. Disse que também estava ali para ajudar. Que tinha sabido e que queria ajudar. Reservado. Discreto. Nobre. Ali, um dos sentidos para o mal. A bondade. A possibilidade do mal ensina-nos a bondade. A ver se nunca me esqueço disto, que a vida passa a vida a lembrar-nos estas antíteses.
Depois desse episódio, a pessoa-alcachofra não passou a ser como não era. O discurso não mudou para abundante. O rosto fechado permanece. E o olhar baixo também. Mas agora há um dado novo. Eu sei. Que os olhos baixos escondem uma luz rara. E que as palavras serão parcas por haver ruído suficiente no mundo. É que às vezes, o que importa mesmo é o que se faz. Ou o que não se faz.


Massa fresca com corações de alcachofras e nozes

250 g de massa fresca (tagliatelle) + 3 fatias de bacon (cortadas em cubos) + 1 cebola picada + metade de um pimento vermelho + 10 corações de alcachofras (em conserva) + 10 nozes + azeite, sal, salsa picada q.b.

Numa frigideira com azeite, a cebola, o pimento e o bacon. Deixa-se saltear ligeiramente. Entretanto, coze-se a massa durante três minutos. Assim que estiver cozida, escorre-se e passa-se de imediato por água fria. Junta-se ao salteado e integra-se tudo muito bem, deixando-se cozinhar durante uns dois minutos. A seguir, acrescenta-se os corações de alcachofras e a salsa picada. Tempera-se com sal e mais azeite, se necessário. No prato de servir (costumo usar pratos de sopa, para que a massa fique "aconchegada" e para que os sabores se intensifiquem), as nozes picadas grosseiramente.

Enquanto fazia a massa, o pensamento nisto. Nas pessoas. Redentoras. Capazes de nos surpreenderem. De nos confrontarem com o nosso baralhar de códigos. Subvertoras de interpretações. Assim como as alcachofras. Que debaixo de muitas camadas escondem um coração branco. Fortalezas que preservam interiores limpos, as tais camadas.

12 comentários:

  1. Também simpatizo com as alcachofras, embora não desde sempre!
    E sabes que mais, EMAGRECE! Não que tu precises deste tipo de informação... :)

    Gostei da tua ideia de "pessoa-alcachofra". Sim, tenho algumas na minha vida, ainda bem. Mas agora tenho um nome carinhoso para elas... :)

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  2. Gosto dessas tuas associações. Pessoas-alcachofras é muito bom ;))) É que podiam ser pessoas-cebolas ou pessoas-alhos-franceses, mas não teria a mesma beleza. Vês como és poética?...
    Beijo grande
    Babette
    PS. Também acho as alcachofras misteriosas. Isso de não saber exactamente até onde retirar camadas intimida-me. Mas sabes que até gosto do nome? Tem qualquer coisa de musical...

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  3. We all do, minha happy single mother:) Mas não tinha esse dado, relativamente às alcachofras. As mulheres devem partilhar informações destas:)
    E sabes, tu conheces a pessoa-alcachofra do meu post. Saudosa DT:) Depois digo-te.
    E até que acaba por ser carinhoso, o nome. Bom que façam parte das nossas vidas. Que nos façam rever códigos e hermenêuticas.

    Um beijo para ti. E um outro para a tua menina.

    Mar

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  4. Olá minha Babette:

    Olha que ainda pode haver possibilidade disso das pessoas-cebola ou alho-francês:) Agora que dizes...
    Tentei uma vez cozinhar alcachofras frescas. Melhor nem falar do assunto, por ter corrido tão mal:) Não acertei com as tais camadas. Nem com os tempos. Mas hei-de ver se arranjo maneira de pôr cobro a isso. Depois digo-te.
    E vou rever o meu ponto de vista em relação à palavra. Se tu dizes que tem um quê de musical, é porque sim, minha pianista:)

    Um beijo.

    PS: Amanhã vamos à tua cidade. Será como quase sempre: uma ida cirúrgica. Mas ligo-te na mesma, pode ser que dê para café ou chá. Ou o que for:)

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  5. Mar,

    que analogia tão maravilhosa e fantástica

    há um livro chamado 'A alcachofra e a cebola' que fala precisamente dessa mesma questão...
    diz, basicamente que as alcachofras têm um núcleo, um coração... já as cebolas com as suas múltiplas camadas, descascam-se, descascam-se e acabam : )

    vou experimentar essa receita de alcachofras que é algo que nunca provei

    obrigada
    beijinhos,

    Jo

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  6. Nunca comi alcachofras mas tenho muita curiosidade acerca delas, do seu sabor.
    Curiosa a sua comparação das pessoas com as alcachofras. Já conheci algumas assim. Provavelmente as "camadas" que as pessoas utilizam são para se protegerem e ao seu coração frágil!
    Gostei muito do seu texto.
    Um beijo
    Graça

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  7. Mais uma leitura maravilhosa da vida, as pessoas, na descoberta do carácter da alcachofra...gostei.
    Por acaso já viu o filme "Um toque de canela"?...se não, aconselho vivamente, tem tudo a ver com a identidade do seu blog, que eu tanto aprecio.

    A receita, irei experimentar um destes dias, agora que o trabalho da escola se aproxima do fim.

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  8. Gostei muito do teu conceito de "pessoa-alcachofra" :) E este teu texto lembrou-me a minha amiga das pipocas de canela (vou telefonar-lhe a dizer que ela é uma pessoa-alcachofra:). E sabes a coincidência? Veio à Terceira este fim de semana! Esteve cá em casa a jantar. E foi tão bom!
    Um beijo,
    Ilídia (nada "alcachofra":)
    P.S.: Nunca cozinhei alcachofras. É difícil arranjá-las por cá.

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  9. Olá Jo:

    Lindos, os prolongamentos dos posts. Não tinha ideia desse livro. Mas tinha a noção de haver uma analogia com as cebolas. Coisas em que pensamos, de vez em quando. Ainda bem que gostou da analogia.
    E só tinha comido alcachofras uma vez. Gostei. Da próxima vez vou arriscar fazer alcachofras frescas. A ver se me entendo com as camadas:)

    Um beijo de boa semana para si. E obrigada.

    Mar

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  10. Olá Graça:

    O meu entendimento é próximo do seu. O meu marido contou-me uma vez um episódio que serve esta analogia. Foi há uns anos, antes de mim. Deu aulas numa escola longe, perto de Espanha. Havia lá um colega que não falava com ninguém. Não criava laços. Não combinava jantares nem saídas. No final do ano lectivo, explicou ao meu marido porquê. Era dali. Não ia embora depois de o ano terminar. O que acontecia com a esmagadora maioria dos professores que ali davam aulas. Por isso, escolhia não criar afinidades. Para não lhe custar tanto dizer adeus às pessoas de quem tinha gostado. Achei triste. Embora perceba o sentido. A verdade é que sou irremediavelmente ao contrário. Não me protejo nem tomo conta de mim. Penso sempre que logo se vê. De vez em quando, corre mal não ser assim como as pessoas-alcachofra.
    E está. Contei uma história. Escrevi muito, se calhar.

    Um beijo para si. Obrigada pelo seu comentário vindo de uma ilha longe.

    Mar

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  11. Olá Isabel:

    Não. Nunca vi. Mas vou pela sua referência. Sem pensar duas vezes:) Obrigada eu. Pela sua leitura. Pelo prolongamento por escrito. Sou sempre grata pelas palavras. Mais quando são escritas, por me merecerem um respeito enorme.
    A ver se gosta de alcachofras, então:)

    Uma boa semana para si.

    Mar

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  12. Olá Ilídia:

    Lembro-me desse teu texto. E sim, a corresponder a esta imagem. Fico feliz por teres tido a tua amiga perto de ti. Já fui ler o vosso jantar com mantas e conversa pela noite dentro. O meu sábado à noite também foi assim. Até tarde. Lindo, aquele tempo.

    E também não sou nada assim. Às vezes devia ser, mas não consigo muito bem.

    Um beijo de boa semana.

    Mar

    PS: Tenta procurar enlatadas. Pode ser que essa versão seja mais fácil.

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