Formular a esperança.


Não conseguia não escrever sobre eles. Num dia cheio de expectativas. Em que o país estava suspenso. Em suspenso. A aguardar debates e discursos e decisões. Coisas muito importantes, essas. Mas para eles, para estes meus alunos, este também era um dia importante. Para o qual se prepararam durante dias. Horas de trabalho. Finais de tarde a ler e a pesquisar, depois das aulas. Com sol lá fora. Vozes alegres de colegas em fim de dia. E namoradas à espera:)
E então, de manhã, aquele nervoso. A chamarem muitas vezes pela professora de Português. Se sim, se estava tudo bem. Se ia correr bem. Se iam estar à altura. Perguntas repetidas. Sorrisos agitados e francos. Um abraço para dizer que sim. Que estavam preparados. Que mereciam que tudo corresse pelo melhor. Porque tinham feito tudo para que sim. Uma razão aparentemente simples ou pequena. Terem sido seleccionados para um concurso promovido pelo Diário de Notícias. E a consequência disso: uma entrevista a um escritor. A escola toda no auditório. Os colegas a torcer para que os meus alunos brilhassem. E brilharam, de tão felizes. Muito. Pela inteligência. Pelo empenho reiterado com que se devotaram durante o tempo de antecipação.
Merecem tudo de bom. Merecem que a vida seja meiga. E quando não, adivinho força. Para responderem à altura do que não os confirmar.
Dizer então, o orgulho. O orgulho cheio de carinho por eles e pelos sonhos que há em cada um. Uma das coisas muito belas de ser professora. Fazer parte de percursos que sonham. Que têm esperança. Cheios de expectativas. Não desiludir. Não matar a esperança, como ouvi dizer há dias o Professor Lobo Antunes. Não assassinar aquilo que sonha e tem esperança. Isso todos os dias. Não ser só uma coisa de hoje. Circunscrita a ocasiões, a circunstâncias excepcionais. Se escrevem um texto particularmente belo. Se têm uma intervenção inteligente. Se têm a perspicácia de reformular questões, durante uma entrevista. Se têm a vontade de serem inteiros. O fragmento repetido nas aulas, a propósito de tudo e de nada. Para ser grande, sê inteiro. Se formos inteiros, se pusermos tudo quanto somos no mínimo que fazemos, seremos grandes. Ricardo Reis. Estiveram inteiros, foram grandes. E ter o privilégio de estar lá. A assistir.
O escritor era o Afonso Cruz. Que deixou um livro confiado. E música. A dele. Blues. Música de que os meus alunos gostaram. E os nomes. Alexandra, Bárbara, Francisca, Marta e André. Um outro nome a acrescentar. Fábio. Pela caricatura da professora a oferecer uma caixa cheia de ervas aromáticas, ao escritor que tirou um dia para vir do Alentejo à nossa escola. Porque disse que o sagrado estava nas coisas pequenas, nos gestos quotidianos em que não reparamos. Por isso, por ter uma quinta onde cultiva legumes e um olival para ter azeite, pensámos em ervas aromáticas. Um presente que pode frutificar, desenvolver-se, transformar-se. Como os sonhos dos meus alunos. Os alunos da entrevista, o autor da caricatura e todos os outros.
Num dia em que se olha em frente sem se saber muito bem o que vai ser, eles ensinaram-me que se pode olhar em frente com muita esperança. Tão bom, quando um professor é ensinado. Pelos seus alunos.
Ficam aqui, também. Por fazerem parte do meu universo condensado em palavras. Por serem uma manifestação de coisas que são de guardar.

PS: Amanhã volto às receitas e às mesas:)

23 comentários:

  1. Este livro está ali pousado, antes de ir para a estante dos livros lidos e guardados dentro de mim. Comprei-o porque sim. Porque gostei da capa. Porque gosto de algumas das ilustrações do Afonso Cruz, e porque o título era diferente. Podia tê-lo requisitado, como se faz nas bibliotecas, mas não quis. Comno ainda não li não sei se vou gostar, mas de vez em quando estes impulsos trazem coisas boas. A ver vamos.

    Um bem haja à Mar, que faz parte do percurso dos seus alunos, que lhes quer bem, que deseja que sejam inteiros. É assim que imagino os professores de referência, como também já o foram comigo.

    Ah! E ficamos a saber que a Mar tem pestanas bonitas e usa brincos grandes. ;-)

    Um grande beijo, com admiração.
    Sandra

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  2. Axel Vervoordt? Timeless Interiors?

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  3. Querida Mar, fico fascinada com o modo como colocas no papel os teus sentires e de quem contigo acompanha. Bem hajas por seres uma professora, de corpo inteiro :)

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  4. És única!!! (Mas já te tinha dito, não? É tão bom ser-se repetitiva, às vezes...) ♥♥♥

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  5. Linda a sua caricatura! E o ar satisfeito com que a desenharam, oferecendo as ervas aromáticas.
    Beijinhos a esta criativa Professora de Português que vai ter com certeza um lugar grande nas recordações dos seus alunos!

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  6. Num dia que só ia ficar marcado pela "queda" de um Governo, um grupo de alunos e a sua professorinha registam a "ascensão" de coisas boas, criativas, frutíferas. Um a um a agir assim e o mundo era bem melhor...
    Um beijo grande e cheio de orgulho
    Babette

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  7. Olá Sandra!

    Também eu gostei da capa deste livro. Não conhecia como romancista e tinha uma ideia das ilustrações de livros para crianças. Mas fiquei/ficámos a saber coisas sobre o universo deste escritor recente, que passou dez anos da sua vida a conhecer mais de sessenta países. Viagens que decorriam dos livros que estava a ler. Ganhar dinheiro para gastar a viajar. De ler, portanto. Uma escrita muito marcada pela literatura russa (começou a ler Dostoievski aos 12 anos).
    E o meu aluno com talento para o desenho exagerou os tamanhos. Das pestanas e dos brincos:) Mas quis registar o desenho que me foi oferecido depois da nossa sessão. E o talento do meu aluno Fábio Pinto, que devia ter ido para Artes. Sempre a tempo, que estamos. De mudar. De alterar os rumos das histórias.
    E sim, Timeless Interiors, Axel Vervoordt. Que há-de merecer um post. Um dia.

    Um beijo de obrigada e com carinho:)

    Mar

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  8. Olá Manuela,

    Quando as realidades que nomeamos são gratas, torna-se quase imperativo registar. Dar sinal de. Quis falar sobre eles. Sobre a alegria e o orgulho que significam. Obrigada pelo bem-haja:) Tento ser isso. Ser professora. A partir do mais básico: gostar de o ser. A partir daí, vem sempre o resto, não é?

    Um beijo de gratidão. Pelas palavras carinhosas da Manuela.

    Mar

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  9. Para a happy single mother:

    Nada contra a repetição:) Principalmente vinda de ti. Com a amizade que pressupõe essa repetição. Obrigada. E também pela professora que és. Sabes por isso as coisas boas que nos dão, os alunos.

    Um beijo feliz:)

    Mar

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  10. Olá Lusitana:

    Também eu gostei muito da caricatura do meu aluno com talento para o desenho. Daí querer que ela ficasse aqui cristalizada. E sim, eu estava muito feliz. Aquele momento correspondeu ao final da entrevista. E tinha corrido bem. E como gosto de dar presentes, fico sempre assim: francamente luminosa. O meu aluno teve a sensibilidade de registar isso. E de exagerar também alguns traços:)
    A ver se sim. Se há recordações:)

    Um beijo carinhoso.

    Mar

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  11. Olá minha Babette:

    Um dia tumultuoso, o de ontem. Em que se aguardava com expectativa um desenlace com direito a directos intercalados. Eles fizeram com que o dia de ontem fosse luminoso. Pela esperança limpa que há dentro de cada um. Uma coisa que contribui. Que faz com que o mundo custe menos. Mérito deles. Inteiramente.

    Um beijo. A pensar no almoço de sábado:) Já pensaste num sítio?

    Mar

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  12. Não resisto a transcrever alguns versos de autor desconhecido sobre ser professor.
    "Ser professor é ser artista
    malabarista
    pintor,escultor,doutor
    musicólogo,psicólogo...
    ...É ser mãe,pai,irmão e avó
    é ser palhaço,estilhaço
    é ser ciência,paciência...
    é ser informação
    é ser acção...
    ...é ter nas mãos o mundo de amanhã
    é ser bússola,é ser farol...
    ..."
    eu acrescento:é dar e receber
    é ensinar e aprender
    é ensinar a ver e a viver.
    Para isso não se pode envelhecer!
    Também ,hoje, os meus alunos, no âmbito da Semana da Leitura e da Poesia,entrevistaram a poetisa Luísa Azevedo.Leram,também cheios de orgulho,alguns poemas elaborados nas aulas sobre as cores.Produção árdua mas compensadora. Orgulho? Muito.O deles.O meu,por eles.A semente é lançada todos os dias.Um dia,brotará!Acredito.Espero. Ser professor também é acreditar!
    É muito bom verificar que a Mar acredita!
    Bem haja!Ser professor é...SER!
    Um abraço amigo e solidário
    Emília Melo

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  13. É bom saber que alguém zela pelos nossos sonhos :) Obrigada pelas palavras. Quando eu for grande também quero andar de saltos altos :P
    3985737582948 "Obrigados"! Vou ter saudades suas quando me for embora. :(

    Alexandra Ferreira

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  14. Olá Emília

    Tão bom saber que é professora. Que partilha do orgulho que sentimos quando os vemos brilhar em momentos que pensamos serem fugazes. Não são. Ficam. Ecoam na memória que conservamos dos rostos que são de todos os dias, durante um certo período de tempo. Depois os rostos deixam de ser de todos os dias. Mas pelo melhor dos motivos: para irem em busca de mundo. E nós só queremos que o mundo seja bom para eles e para o que sonham.
    E sim, lançar a semente todos os dias. Por acreditarmos todos os dias.
    Muito obrigada por partilhar. Por também partilhar isto. Toda a poesia que há numa profissão tão bonita. E o orgulho nos seus alunos. Fico feliz por eles. Pelas mãos a que foram confiados.

    Outro abraço para si. Muito amigo.

    Mar

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  15. Olá Alexandra,

    Uma das minhas alunas. Inteligente, com espírito crítico e sensibilidade. Muito bom que seja minha aluna. Que algures, os percursos tenham coincidido.
    E sim, uns belos saltos altos para a Alexandra. Muitos sonhos. E saudades. Também hei-de ter saudades. Mas a minha aluna há-de estar à procura do que há em si de expectativa. Do que em si acredita com ilusão e com vontade. Por isso, vou ficar sempre feliz com essa imagem. Para as saudades custarem menos.

    Obrigados infinitos:) De onde é que surgiu aquele número tão exacto e tão longo?:)

    Da professora com nome de Mar.

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  16. Formular a esperança. Mais um texto único, tão lindo e expressivo de uma Professora tão única, de uma beleza tão profunda. Com nome de Mar:)
    Obrigada por tudo. Pela confiança, orgulho e esperança que depositou em nós. Pelas suas palavras. "Por zelar pelos nossos sonhos", como disse a Alexandra. Por nos fazer sonhar e acreditar.

    Um grande beijinho de alguém que a admira imenso,

    Bárbara Rodrigues.
    :)

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  17. :) Sempre fascinante...

    Obrigada, por sempre conseguir tornar tudo tão simples e fácil o que é uma complicação.
    Por perguntar se estou bem, e por aceitar aqueles abraços "roubados" no corredor. É uma maneira de demonstrar que é uma pessoa importante.

    Gosto de si.
    Francisca Rodrigues.

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  18. Parabéns pelo cuidado e pela seriedade com que tentas atingir os teus objectivos.
    Parabéns pela dedicação em nome dos alunos e da escola.
    Parabéns por teres realizado mais um momento que fica na história e na retina de todos quantos contigo trabalham.
    Beijinhos

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  19. Que inveja saudável dos que estiveram aí, consigo. Com as palavras que a professora nos ensina, que soam sempre a mágicas.
    Cheios de expectativas, e de vontade. Bem sei o que isso é.

    «O fragmento repetido nas aulas, a propósito de tudo e de nada. Para ser grande, sê inteiro.»
    Nunca me vou esquecer disso, que aprendi consigo e que trago em mim, para cada sorriso, cada palavra, e cada atitude ser assim, inteira. Isso reconforta.
    Tenho saudades da professora. Tenho saudades de assistir às aulas brilhantes que sempre me proporcionou.
    E num sítio qualquer de Lisboa, num sítio qualquer cheio de história, espero por si. Porque quero leva-la a um café que sei que vai gostar, para bebermos um chá e pormos a conversa em dia.

    Um beijinho com saudades imensas.

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  20. Para a Bárbara:

    Uma aluna de sorriso doce. Sempre ali. A acolher com um sorriso. Mesmo nas aulas mais complicadas, em que parece que não chegamos lá. Que não está a ser fácil. O sorriso da Bárbara já fez coisas maravilhosas pelas minhas aulas. Porque as acolheram. Obrigada por isso à minha aluna de sorriso doce e cabelos negros. Que escreve tão bem, a minha aluna Bárbara. O melhor.

    Um beijo.

    Da professora com nome de Mar:)

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  21. Para a Francisca:

    Quero sempre saber se está bem, a minha aluna que gosta muito de ser feliz. Que distribui sorrisos e abraços. Que precisa de felicidade e de carinho. Que fica triste como uma menina pequenina, quando alguém se chateia com ela. De uma candura enorme, a Quica:)

    Um beijo carinhoso para ela. De gratidão.

    Da professora Mar:)

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  22. Para o Zé Pedro:

    Obrigada por escreveres. Pela generosidade das palavras. Estamos todos os dias nisto. Tu na Matemática. A fazer com que não seja uma abstracção ingrata, a Matemática. Todos os dias.
    Uma coisa breve, a deste dia. Para eles significou muito. Para mim também, por eles. Muito bonita, a vida de todos os dias na nossa escola. Tu ajudas a fazer com que a vida de todos os dias seja irrepetível e única. Obrigada por isso. Pela força reiterada e quotidiana. Mesmo quando nos irritas um bocadinho:)

    Um beijo.

    Mar

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  23. Para a Marta:

    Muitas saudades, também. De olhar e ver a aluna com roupas levemente góticas, um bocadinho punk:) Cabelo rosa e laranja. De muitas cores, o cabelo da Marta. Ficam estas e outras imagens.
    Ficou a inteireza, então. E eu fico tão feliz por ter ficado esse fragmento em ti. Porque te vai ajudar tanto. Nem imaginas o quanto te vão ser preciosas, essas palavras. Quando for preciso enfrentar, quando for preciso cair e lamentar, quando falhares. Pensar sempre que estivemos inteiros. E saber que quando assim é, somos sempre fortes na nossa fragilidade. Até mesmo na nossa fragilidade seremos fortes.
    Um dia em Lisboa, um chá ou um café. E conhecer a tua escola de cidade. Para haver lugar à conversa. Um dia. Quem sabe se será no dia da final, com os colegas?:) Bom pensar nisso. Até lá!

    Um beijo com saudades da aluna com cabelos às cores:)

    Mar

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