A Primavera e o Inverno sentados à mesa.



Pois...está a chover. Outra vez. Chuva e frio de volta. E de volta também, a vontade de chegar a uma casa quentinha, a tempo de lareira e de comida perfumada. A inspiração surgiu de um presente. Mais um. A verdade é que as pessoas que fazem parte do meu quotidiano sabem da minha devoção pela comida. E, nas alturas certas, oferecem-me coisas que sabem que vão trazer-me alegria. O sr. Manuel da Tabacaria é uma dessas pessoas. Também gosta de mesa e de fazer coisas para servir à mesa. Daí o entendimento, creio. A par da simpatia de todos os dias. E dos sorrisos cúmplices, quando entro, apressada e saio na mesma cadência. Com um "obrigada, até amanhã!" soltado da porta. Neste dia, a Mar apressada teve direito a um presente fresquíssimo em tons de verde. Muito desta época. Espigos das couves de Natal. Não resisti a "convidá-los" para jantar. E achei que ficariam mesmo bem, conjugados com o pato temperado que aguardava pelas minhas mãos. Não era preciso mais nada.
As coisas, quando comidas nas tais alturas certas, têm um sabor muito essencial. Para mim, estes legumes anunciam o declínio do Inverno. Dizem que está a chegar ao fim. E que podemos esperar pela Primavera. À minha maneira, quis sentar o Inverno e a Primavera à minha mesa. A ver como corriam as coisas. A parte do Inverno já estava resolvida. Faltava a Primavera. Pensei na primeira cor que, no jardim, anuncia a chegada desta altura do ano: o rosa. Das camélias, neste caso. Em copos de chá bebido nos desertos. A flutuar numa taça de mármore muito branca. Numa mesa sem toalha, sem individuais. Loiça branca, copos e taças de avó. Creio que correu tudo bem. Que se harmonizaram tranquilamente, a Primavera e o Inverno. À minha mesa.

Muito simples de fazer, estes peitos de pato. Bastou um tempero antecipado: sal + um copo de vinho branco + um copo de licor de mirtilos + sumo de uma laranja + pimentas moídas + azeite + molho inglês.

Na altura de cozinhar, salteia-se os peitos de pato em azeite quente, numa frigideira. Muito ligeiramente, virando-os duas a três vezes. Entretanto, quando estiverem com uma cor dourada, acrescenta-se o líquido do tempero onde estiveram a repousar. E deixa-se estar. Vinte minutos é o suficiente. Decorrido este tempo, retira-se a carne e deixa-se reduzir o molho, para ficar cremoso. Na altura de servir, basta ter espigos cozidos à espera, num prato fundo (de massa), para os manter quentinhos. Coloca-se o pato fatiado por cima deste "leito" verde. E finaliza-se com uma colher generosa do molho aromático de laranja e licor de mirtilos.
Entre o Inverno e a Primavera, mais música. Kings of Leon. Come around sundown. Música à minha volta. Que faz pensar nos concertos a que vou assistir. Para ficar (ainda) mais rodeada de música. Portishead. Arcade Fire. Enquanto se antecipa o Verão, junta-se o Inverno e a Primavera. À mesa.


11 comentários:

  1. E que bem que se portaram a Primavera e o Inverno. Estiveram à altura de mais uma mesa belíssima. É este ritual diário de pôr as melhores loiças, de conjugar peças antigas com outras modernas que aprendo consigo (e com a Babette). Aos poucos dispo a mentalidade "de vestir o bom fato ao Domingo", para o vestir todos os dias, numa plena celebração da vida... Obrigada por isso!

    Desde que me lembro ser gente que estou rodeada pelas letras, pela música, pelo teatro e pelo cinema. Pela criatividade, no fundo. Quis (?) ser actriz, porque é a única profissão que me permitiria dar azo à curiosidade de ser todas as outras profissões; Fui uma soprano que não acabou o conservatório (o grande desgosto da minha vida). Fui jornalista numa cidade cujo jornalismo regional (quase) não sobreviveu à passagem do tempo. Dei aulas de escrita criativa (adoro!). Faço actualmente "das tripas coração" para acabar a 2ª licenciatura (em marketing e publicidade, áreas bastante criativas). Ando a tentar encontrar-me. Preciso de me encontrar. Amo de paixão os livros; só por eles me mantenho numa profissão desgastante, que é bem menos glamourosa do que parece. Mas preciso de mais da vida. Horários fixos, compatíveis com o resto do mundo, e que não me fechem num shopping sem luz natural. Aos poucos vou definhando por dentro. Por isso todos os dias luto por mais. Os livros, a música, a cultura, as pessoas e seus comportamentos dignos de estudo... sei que sempre me acompanharão.
    (Peço desculpa pela breve história profissional da minha vida em forma de desabafo).

    Respondi-lhe no meu cantinho, no post da gelatina de frutas.
    Sandra

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  2. Foi mesmo comprido. Peço desculpa (a todas) mais uma vez.
    Sandra

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  3. Mais uma mesa belíssima. A taça de um mármore tão branco é linda. E depois aquelas misturas que surpreendem. Porque os copos da avó ficam mesmo bem com a louça branca deste tempo. E tudo se conjuga numa mesa depurada, sem toalha nem individuais a ofuscar.
    Engraçado também a coincidência da receita... Mentalmente vou imaginando o que podia preparar para te receber. E ontem pensei num prato de magret de pato. Uma receita muito especial e que não faço há demasiado tempo. Depois hesitei: "E se eles não gostam de pato?...." Agora veio a confirmação.... Afinal gostam!
    Babette

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  4. Mar, que usa a culinária num cantinho de bem escrever! E que faz vir ao de cima relatos de vida tão emocionantes e contidos ( acabei de ler SML). E Babette, que se deslumbra com a arte da boa mesa da nova amiga. E eu que me deslumbro com tudo.
    A mesa hoje está particularmente bonita!
    Beijinho

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  5. Olá Sandra:

    Vou começar pela sua história. Pelo respeito que sinto pelas suas palavras. Por ter descrito um percurso de vida num comentário. A propósito de mesas e de comida. Creio que isso acontece naturalmente, quando se fala destas coisas. Talvez por isso me seja impossível falar destas realidades aparentemente pequenas, sem as associar às circunstâncias que as desencadearam. Ou que lhes serviram de contexto. Assim, só posso acolher o que deixou de si. E aos caminhos que a trouxeram até aqui. Muito cheios, por aquilo que se adivinha. Caminhos que quiseram estar associados às coisas belas, maiores do que nós. As palavras, a arte, a música, os livros.
    E sabe, os horários são avassaladores, esmagadores para a maior parte de nós. Por isso, é que estas "coisas" de nos dedicarmos, no final do dia ao que nos faz bem, são tão importantes. Não consigo imaginar a minha existência quotidiana sem estas "coisas". A minha dança ao final da tarde, enquanto penso no jantar. Nas flores. Nas velas que vou acender. Coisas que iluminam os dias e as noites. Que me fazem sentir grata por mais um dia. Querer mais da vida, como a Sandra disse. Sim, queira mais da vida. Muito, sempre. Eu acompanho-a nisso. Porque uma parte do seu percurso ficou aqui. E eu agradeço isso.
    Está a ver como me fez escrever? É bom escrever, pela libertação que pressupõe.Eu gostei muito que tenha dito muito:)

    Um beijo da Mar.

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  6. Para a Babette:

    A mesa das camélias. Foi assim que lhe chamei. A taça de mármore veio da Empatias, a loja de que gostamos as duas, aí no Porto. Um verdadeiro achado, acredita. Depois explico melhor por email. Foi o Vasco que a "descobriu". Um homem muito especial, capaz destas coisas. Trouxe-a para que eu a visse. E imaginou que eu iria fazer coisas com a taça de mármore que ele tinha acabado de descobrir. Esta foi a primeira de muitas: água e camélias a flutuar.
    E sim, gostamos muito de pato. Uma carne delicada, que deve ficar deliciosa, depois de sair das tuas mãos. E também penso na ementa para receber os meus novos amigos pianistas:) Com muito carinho.

    Um beijo da Mar. A voar até ao Porto:)

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  7. Para a Lusitana:

    Gosto mesmo de si, sabia?:)Sem precisar de a ver, de saber coisas sobre si. Tão bom que as palavras valham por si. E as suas valem muito. Também fazem vir ao de cima formulações espontâneas como a que introduziu este comentário.
    E o ponto de partida para o desencadear das palavras: uma mesa e uma receita. Muito minimalista, este princípio de conversa.
    Obrigada por ter gostado da minha mesa das camélias.

    Um beijo da Mar. Com ternura.

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  8. Olá Mar,

    Queria agradecer o facto de ter respondido ao meu comentário.
    Mais uma vez uma mesa linda. A mesa das Camélias. Estou deslumbrada com tudo...não passo um dia sem a visitar. Parabéns

    Maria José Duarte

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  9. Olá, Mar
    Um taça de mármore com camélias rosa são um ponto de atracção forte para o olhar, mas há outros objectos que de forma mais tímida me atraem. Estou a referir-me ao vaso com diversas faces, que "encontro" muitas vezes nas suas fotografias, salvo erro em dimensões diferentes.
    Quanto ao pato é um animal com o qual não consigo ter uma boa relação na cozinha. Prefiro que chegue ao meu prato preparado por outras mãos.
    bjs

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  10. Para a Maria José:

    Não tem que agradecer. Foi com muito gosto. É bom partilhar coisas boas:)
    Que bom que gostou da mesa das camélias. Que bom que aqui venha todos os dias. Agradeço-lhe então por cada uma das visitas. Por cada um dos dias.

    Um beijo da Mar.

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  11. Querida Fa:

    O vaso é uma vela. Chama-se Muse, do Jonathan Adler. Muito linda e com um aroma que me faz lembrar um perfume que o meu marido usou em tempos.
    Sentia o mesmo em relação à carne de pato, mas deixou de me custar cozinhar, desde que passei a retirar a pele, para evitar toda aquela gordura enjoativa. Ficava sempre com náuseas:)

    Um beijo da Mar.

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