Hoje.

Porque hoje não consigo falar sobre as coisas luminosas que fazem os meus dias. Sobre a mesa de hoje. A refeição de hoje. As palavras lindas de hoje. Porque hoje li sobre a morte de uma mulher. Que aconteceu no meio de muita gente. Numa cidade. Num sítio onde há muitos carros e centros comerciais e cartões de crédito com limites no limite. E vidas que decorrem. Indiferentes às vidas. Que prosseguem indiferentes. No meio de todo o ruído que distrai, que abstrai, que faz esquecer que há pessoas que vivem anos mergulhadas na mais absoluta solidão. A quem ninguém diz bom dia, de quem ninguém se lembra, de quem ninguém sente a falta. Pelo menos lembradas aniversariamente que fosse, como no poema de Álvaro de Campos Se te queres matar, dedicado, segundo alguns teóricos literários, a Mário de Sá-Carneiro. Estamos sós. Estamos muito sós. Mas esta solidão de que falo é ontológica. Uma solidão intrínseca à nossa condição. E que é mitigada pelos afectos. Pelos sorrisos e pelas palavras doces que nos vão resgatando dessa condição, que a tornam menos intrínseca.
Esta mulher morreu na zona de Sintra. Num prédio com mais dez apartamentos. Numa das regiões mais populosas do país. Aparentemente, nada de novo. Exceptuando o facto de ter estado morta durante nove anos no apartamento onde vivia. Vou repetir: nove anos. Uma só pessoa procurou saber o que tinha acontecido à mulher silenciosa, que só saía de casa para despejar o lixo. Pelos vistos, havia família. Família que não quis saber. Nove Natais, nove Anos Novos, nove aniversários. Ao menos nestas datas. As tais datas lembradas aniversariamente. Mas não. E há-de haver muita gente a escrever sobre isto. E notícias. E depoimentos. E ruído. A propósito de histórias destas, há sempre muito ruído e muitas declarações de intenção. Muitos discursos de indignação sonoros. Feitos de palavras que se gastam rápido.
Já se sabe que sou professora de Português. Num sítio muito especial. Tão especial, que faz com que seja possível que todos os quinze dias, haja uma turma a deslocar-se ao Centro de Dia que fica muito próximo. Só para ouvir. Não para iniciativas que infantilizam a idade maior. Não uma situação assimétrica, em que um grupo que personifica a força da vida se desloca, paternalista, para dar sentido a vidas longas de trabalho. Não isso. Chamei-lhe A Vida Contada. Porque a ideia foi sempre a de dignificar muito a vida contada na primeira pessoa. E é sempre muito bonito, aquele espaço de união. Traços muito belos de união. A que tenho o privilégio de assistir. Porque do nada, assisto a abraços como o da fotografia. Do nada, surge a dança entre idades afastadas por anos de vida. Do nada, beijos carinhosos. E risos à solta. Sem que nada tivesse sido planeado, antecipado, projectado. Tão espontâneo, o afecto. Tão à solta, como os risos muito juntos dos meus alunos e dos meus anciãos de mãos macias, com caminhos que demoraram anos a ser feitos. As mãos deles nas minhas mãos. A menina. Sou sempre a menina. Encantada por estar ali. A querer que o tempo não seja impiedoso e que se deixe estar ali um bocadinho.
E nunca me vou esquecer que a razão para que tudo isto aconteça, foi uma reportagem da SIC. Este país não é para velhos. Da Sofia Arêde. Uma jornalista rara, que conta histórias com tempo. Mesmo que sejam histórias que nos fazem olhar de frente para aquilo que queremos disfarçar, esquecer. A velhice dos outros. O tempo no rosto dos outros. Que nos lembra a nossa própria velhice. A altura em que o tempo vai tomar conta de nós, do nosso corpo. Até nos esquecermos de hoje. E de ontem. Obrigada a si, Sofia. Outra vez. Porque já escrevemos muito sobre isto. Eu não disse que as coisas boas se transformam algures em coisas boas? Foi assim com esta reportagem. Transformou-se em tardes feitas de risos e de histórias. Transformou-se em afecto.
Para lembrar isso. Que podemos tentar sempre pelo melhor. E, no entretanto, dizermos bom dia. E fazermos um carinho no cabelo de alguém que teve um dia difícil. Ou sorrirmos. É fácil sorrir. Não custa assim muito.
E fica o nome da senhora que morreu sozinha há nove anos: Augusta Martinho.

16 comentários:

  1. Mar, certeiro este teu texto sobre a solidão, no meio de tanta gente. Certeira a tua iniciativa de colocar os mais novos, em contacto com os mais velhos. Certeira a troca de experiências e conhecimentos mas sobretudo, a partilha dos risos.
    Beijinhos.

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  2. Mar
    Como ficar indiferente ao seu texto? Como ficar indiferente à notícia a que se refere? Como ficar indiferente quando os filhos abandonam os pais nas urgências dos hospitais em épocas de Natal e férias? Como ficar indiferente quando ouvimos que apresentam moradas falsas para não serem incomodados nesses períodos? Como é possível aceitar uma sociedade que desperdiça a riqueza de vidas cheias e vividas?
    As suas palavras tocaram-me profundamente.Pelo conteúdo. Porque a Mar é ainda jovem. Quando somos jovens, pensamos ser eternos. A velhice é algo longínquo que nunca nos vai aparecer.Velhos?São antiquados...são repetitivos... são rezingões...querem saber e perguntar tudo...impedem-nos de sair...de viver...
    A passagem dos anos e os espelhos vão-nos indiciando que não tardará muito e... estaremos no mesmo degrau da descida da escada.
    O que semeámos com os jovens que nos rodeiam?
    Os últimos sete anos da minha vida, da nossa vida foram anos de sofrimento interior e muita aprendizagem. Sete anos de dádiva total. Sete anos sem fins-de-semana.Sem férias. Sem cinema. Sem saídas com amigos. Com tudo!Consciência tranquila. Um bálsamo para a imensa dor de ver Pai e Mãe a descerem a escada ,saltando degraus em direcção ao abismo. Com tudo.Vi os meus filhos e o meu marido a ler em voz alta para atenuar o silêncio de quem se vai ausentando; vi vestir, vi mudar fralda , vi muito carinho , muito amor para com os Avós. Com tudo. Se não nos damos aos nossos, não nos damos aos outros!
    Era esse tudo que nos colava diariamente à cama do hospital, junto do Pai/Avô em coma.Quarenta e cinco dias.Beijámo-lo, abraçámo-lo, alimentámo-lo com sonda,virámo-lo, amámo-lo.Demos e recebemos tudo.
    Esforço-me por passar aos que me rodeiam este carinho pelos mais vividos. Todos os anos, leio aos meus alunos "A Casa das Bengalas", de António Mota.Rimos durante a leitura. Choramos . Eu choro e eles choram comigo pelo destino da personagem.Nos dias seguintes, trazem os avós para a aula , através de alguns dos seus objectos...fotografias...estou a lembrar um pincel da barba...E já fomos ao Centro de Dia visitar avós de outros. Que também são nossos avós.
    As suas palavras tocaram-me profundamente. Pela sua juventude .Pela sua sensibilidade.Por ser uma voz, uma atitude contra uma sociedade que ostraciza os idosos , mas que faz o tal ruído socialmente correcto!
    A Mar é Vida. A Mar é Esperança.
    Bem haja!
    Muito , mas muito obrigada e peço-lhe desculpa pelo desabafo de olhos muito humedecidos.
    beijinhos
    Emília Melo

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  3. Olá Manuela:

    Uma primeira visita. Numa entrada que não é particularmente luminosa, como as que aqui deixo. Porque o que me fez escrever foi algo muito triste. A solidão triste de se ser esquecido. De não se existir em ninguém.

    Obrigada pela visita. Pelo comentário.

    Mar

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  4. Emília,

    Vou confessar-lhe uma fragilidade, uma limitação. Também eu pensava na velhice de uma forma distante, longínqua. Creio que por receio. Pelo medo de me confrontar. De me olhar ao espelho. De ver a minha própria velhice. Crua. Mas um dia, vi a reportagem de que falei no texto. O ano passado. E custou-me dormir. E não consegui que houvesse lugar ao desprendimento, depois de carregar no botão que desliga a televisão. No dia seguinte, estava a entrar no gabinete da directora do Centro de Dia, a falar-lhe do que acontece desde essa altura. E a alegria que senti, depois da primeira sessão. Tão leve, afinal, o confronto que eu receava. Sim. Se a vida assim o permitir, chegará o dia em que o meu corpo vai deixar de ser leve e flexível. Já não vou poder dançar como agora. Nem mesmo fazer comida. Talvez envelheça. E digo talvez, porque não consigo olhar para a minha vida como garantida. É sempre hoje. Agora.
    Se vier esse tempo, vou querer só que as minhas mãos não estejam vazias, como disse uma senhora, na última sessão. Que disse que era velha, que só restava esperar. Mas que as mãos dela estavam cheias. Porque tinha procurado fazer sempre coisas boas com as mãos dela. E eu dei-lhe um abraço comovido. E os meus alunos olharam-nos em silêncio. E eu sei que nenhum de nós saiu dali como era.
    Como agora, em que tento corresponder às suas palavras. Que dizem tanto. Que são o muito que a Emília é. Sinto-me afortunada, grata. Por si. Porque é uma pessoa muito bonita. Porque significa amizade a preservar, a cuidar.

    Um beijo comovido. Da Mar.

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  5. As lágrimas também falam...
    (Sou particularmente sensível em relação a tudo o que foi dito, por si e pela D. Emília Melo. Subescrevo todas as palavras e sinto-as como se fossem minhas).
    Sandra

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  6. Bom dia, Sandra:

    Um respeito enorme pelas lágrimas que falam. Pela sensibilidade que a fez escrever. Hoje. Por sentir as palavras de outros como suas.

    Um beijo da Mar. Hoje.

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  7. Fiquei tão chocada com a notícia. Não me vou repetir aos comentários anteriores (que subscrevo, plenamente!...). Apenas que ontem pensei o mesmo que tu, mas um pouco ao contrário. Que se essa senhora tivesse vivido estes 9 anos, não tinha tido um único telefonema ou visita. Nem em 9 aniversários, nem em 9 Natais, nem em 9 inícios de Ano. Muito triste. Exige reflexão e acção. No nosso universo procuremos ser mais atentos aos que nos rodeiam...
    Babette

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  8. Bom dia, Babette:

    É, de facto, o tipo de coisa a que não se consegue ser indiferente. E ontem, quando me sentei para escrever o post que seria lido hoje, senti que não conseguia. Não me foi possível falar das coisas de que normalmente falo. E então, ou não dizia nada. Ou escolhia isto. Escrever sobre isto. E estás certa. Se tivesse vivido estes 9 anos, a senhora teria vivido em solidão. Mergulhada em solidão. Triste, isso. De não se ser nada para ninguém. De ninguém se aperceber da nossa falta. Uma espécie de alegoria, este caso. Que serve para ilustrar a indiferença.
    Que sirva para isso que disseste: para dedicarmos atenção aos que fazem parte do nosso universo. Se houver essa ética em cada um de nós, as coisas serão um bocadinho melhores, creio.

    Um beijo para ti. Aí para o Porto.

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  9. Um pedido seu é uma ordem. ;-)
    Infelizmente já não tenho avós (fisicamente falando). Partiram deste mundo com idades bonitas (98, 94, 91 e 75 anos), deixaram muita sabedoria e ensinamentos (e bons genes, espero ;-) ). Mas tenho saudades. Tantas! E um ou outro remorso de por vezes não ter estado mais presente, especialmente no início da juventude, quando era uma "seca" ir visitá-los semanalmente com os meus pais e irmão, quando só queria ficar a ouvir música ou a falar com as amigas. Felizmente crescemos e apercebi-me de que poderiam não estar muito tempo entre nós (ainda estiveram)e sempre que pude fui lá, visitá-los, falar com eles. E estou muito feliz por esses momentos partilhados.
    Agora estou longe dos meus pais e irmão, de quem tenho imensas saudades, mas já lhes liguei hoje, para atenuar o coração do tamanho de uma noz, por saber que vão envelhecendo e eu não estou por perto. Sempre ajuda, não é?

    Um beijo do tamanho de todos os corações (enorme, portanto) que batem sozinhos neste mundo. Para si.
    Sandra

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  10. Olá Sandra:

    Ainda bem que vai pensar no pedido que deixei no seu espaço. Para termos mais receitas suas:)
    Bom ter ligado aos seus pais e ao seu irmão. Bom lembrar as pessoas que amamos. E dizer isso: que as amamos. Que temos saudades, porque nos fazem falta.

    Outro beijo para si. Também enorme. Da Mar.

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  11. Tão sensivelmente doce, esta Menina que sabe tão bem a/Mar...♥♥♥

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  12. Mar:
    Gostei de a saber tão criativa e encaminhando bem os seus alunos, contribuíndo para que sejam pessoas com sensibilidade.
    Sabe que a A. foi uma excelente neta, corajosa e enfrentou muitas horas difíceis nos cuidados que prestou. Como a Mar gosta de dizer...preciosa.
    Há uma palavra em inglês de que gosto muito: care. Também acha?
    Beijinhos e parabéns pela maneira linda como falou de algo muito, muito pesado.

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  13. Happy single mother:

    Tu e a tua ternura ensinaram-me muito. Estás também aqui. Tens estado sempre aqui.

    Um beijo da Mar.

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  14. Olá Lusitana:

    É mesmo de um caminho que se trata. Dar aulas pressupõe aceitar isso, creio. Pelo menos, é o que penso. E a sensibilidade. Que pode vir assim. Ou através da música, da poesia. Muitas palavras que arrastam palavras atrás de si. Numa formulação muito elementar: tenho muito orgulho nos meus alunos.
    A A. é um tesouro. Um tesouro inspirado(r). Sinto uma alegria e um orgulho enormes. Indizíveis.
    Gosto muito da palavra. Care. Cuidar. E das suas infinitas conjugações. Das conjugações que se concretizam. Que não são só pronunciadas, escritas. Tão bom concretizar palavras belas!

    Obrigada. Guardo as suas palavras mais uma vez. Com uma felicidade sem ruído.

    Beijo da Mar.

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  15. Hoje.

    Porque hoje não consigo falar.
    E as suas palavras me fizeram querer falar.

    Porque hoje vi a morte de uma mulher. Muito só. Que me fez lembrar outras mortes. E essa solidão intrínseca de que fala.
    (...)
    Venho aqui muitas vezes. Para fruir as palavras, imagens, sabores, emoções...
    Não foi um acaso, certamente, mais este encontro, sugerido pelo Professor-Poeta.

    Obrigada pelo "sítio" inspirador, a que hei-de voltar muitas vezes. Em silêncio.

    Joana

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  16. Para a Joana:

    A minha intuição diz-me quem é a Joana. O tom pausado. De quem tem uma profissão que olha a morte em solidão. A sua e a da vida que se esvai. De quem vê a morte à frente dos olhos. E de frente.
    O seu professor-poeta acarinha muito os fragmentos plenos de poesia que lhe envia a partir da sua vida. E eu também. A música que veio de si. Preisner.
    Obrigada pelas palavras que não quis calar. Hoje. E pelas outras. As silenciosas. A minha gratidão por cada uma delas. E por si. Que se assinalou/assinala na vida do seu/meu professor. Acolho-a e às suas palavras e silêncios.

    Mar

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