13 de Fevereiro de 2005




Há muitas formas de se gerar uma vida. Por acaso, por acidente, por descuido. Pela má-fé que resulta da falta de carácter. Por insegurança. Para realização (um peso enorme para ser suportado por um filho). Para reforçar uma tese ou uma tradição familiar. Para fazer companhia a outro filho. Para salvar ou motivar casamentos. Por cálculo sem escrúpulos. E outras. Muitas outras maneiras de fazer nascer uma pessoa nova. Única e irrepetível.
A mim, aconteceu-me a maior das dádivas. Ter gerado em mim uma vida com toda a ilusão e ternura que pressupõe a espera doce de aguardar pela vida que existe, porque nós existimos. A primeira coisa que pude dar ao meu filho. Antes de todas as outras coisas: pude esperá-lo com amor. Desde o primeiro minuto. Quis o meu filho. Sabia que estava numa nuvem, à espera que eu o fosse buscar. E soube sempre que seria mãe de um rapaz. Era isso que eu sentia. Um menino pequenino a crescer, a construir-se a partir de mim e do amor que havia antes dele. 
Há seis anos atrás, também num domingo, vi o meu filho pela primeira vez. Depois de um dia inteiro feito de uma dor que nunca tinha conhecido. Os olhos do meu filho. Os meus olhos nos olhos do meu filho. Num primeiro reconhecimento, a noção de que a minha vida, como a tinha conhecido até ali, havia deixado de existir. Nunca mais seria a mesma. Eu seria sempre a mãe de alguém. Alguém cuja vida dependeu da minha, durante os primeiros meses. Que se alimentou da minha vida. Quase até aos dois anos, que a vida do António se alimentou do corpo da mãe.
Um percurso que começou com um ano sem dormir. Todas as noites que cabem num ano. E em cada uma dessas noites, a evocação repetida do meu amor pelo meu filho. A ser confirmada. Reiterada. Mesmo quando achava que não dava para ser mais forte. Havia forças desconhecidas, como as dores que o trouxeram à vida. Forças indizíveis que me faziam renovar a virtude da paciência. Feitas de amor, essas forças. Muito simples e difíceis, essas equações. Porque havia a imagem do meu filho a procurar a mãe de olhos fechados, em busca de alimento e a respirar fundo e tranquilo, satisfeito. A dormir no berço. O meu "tantinho". Por ser tanto, o meu filho. Por me ter ensinado tanto. Por me ensinar tanto.
A mesa de hoje foi dele. Inteiramente. Os carros, a melodia das caixas de música que o embalaram desde o início, o livro que é todas as histórias de todas as noites, os lápis de muitas cores, o amigo macio que dorme com ele. O imaginário do António à mesa de hoje. E as coisas muito simples que pediu durante dias: um bolo de iogurte com natas e morangos. Arroz doce. Tão bonito, a deliciar-se com arroz doce. E a dar um beijo à mãe Mar, no final de tudo. Antes de dormir, frases pequeninas, no quentinho da almofada. Que disse que tinha tido um dia muito feliz. Que estava cansado. E que queria que eu tivesse bons sonhos.
O meu sonho bom tem seis anos, olhos brilhantes e pestanas longas. Gosta de jogar à bola com o pai e de nadar. De carros e de bicicleta. De fazer "construções" com blocos de madeira. Do sol, no Verão. De andar à solta, como o Tom Sawyer. E de dar abracinhos à mãe Mar. Um bom sonho. Muito doce, o meu filho.

14 comentários:

  1. Mar, há coisa de uma semana descobri o seu blog. Já a li de uma ponta à outra e ainda não fui capaz de lhe deixar um comentário. A vontade tem sido muita, mas parece que me faltam sempre as palavras certas. Acabo por desistir e continuo a lê-la, a acompanhá-la, aqui deste lado, no silêncio que decidi romper hoje. Receio que uma palavra a mais ou uma palavra a menos venha perturbar a melodia da suas palavras, deste seu cantinho tão delicado e suave, tão único, tão cheio da sua vida, dos seus pensamentos...
    Adoro lê-la e nem preciso sequer conhecê-la para saber que gosto de si.
    Parabéns sinceros ao António e aos pais do António.
    Obrigada por existir desse lado :)

    ResponderEliminar
  2. Tanto, tanto, tanto que tem o seu texto. Quase tudo desconhecido para mim, que ainda não fui mãe. Mas que espero ser. Com muito amor. Tudo o que é preciso, afinal, para gerar uma vida e acompanhá-la no seu crescimento.
    A mesa do António está lindíssima. Todo o seu imaginário presente. Os brinquedos favoritos, as palavras, as cores, os sonhos, as melodias. (os carrosseis de música são maravilhosos; inveja da boa). Que felicidade deve ter sentido, no seu dia especial. Muito doce a imagem de um menino de olhos brilhantes a beijar a mãe e a desejar-lhe bons sonhos. Preciosa!

    Sandra

    ResponderEliminar
  3. Ser Mãe é isso tudo que a Mar tão bem decreve. E tudo ainda que está para vir mas assim desse geito, cheia de atenção e cuidados ( care...) pelo seu menino.E cuidando também do lar onde ele vai crescer, um forma de perpetuar a doçura do berço que um dia o acolheu...
    Muitos parabéns e um beijinho.

    ResponderEliminar
  4. Que mesa tão bonita. Poética como tu és. Original e cheia de significado. Coisas boas que puseste no centro da mesa e que descrevem tão bem o António. E é curioso. Também sempre soube que ia ser mãe de rapazes... Nunca pensei dois de uma vez, é certo, mas costumo brincar e dizer que queria tanto ter um rapaz que Deus mandou-me logo dois!...
    Um beijo grande. Uma semana feliz. Com o teu sonho bom de 6 anos....
    Babette

    ResponderEliminar
  5. Vê como sou trapalhona, não releio o que escrevo: descrevo, jeito. Aqui fica a correcção e assim a Mar vê que sou mesmo eu...
    Mais um beijinho.

    ResponderEliminar
  6. Bom dia à visitante que quebrou hoje o silêncio:)

    Obrigada. Por ter escrito. E numa entrada tão especial. Que escrevi para guardar aqui, à espera do meu filho. Que aprenda a ler. As suas palavras ficaram bem, muito certas. Não perturbaram nada. Acrescentaram muito ao que aqui estava. Acrescentaram-me, também. Tão belo, o que se pode fazer com as palavras.

    Agradeço que exista aí desse lado. Que tenha escrito. Que se tenha dito um bocadinho, a propósito da evocação do nascimento do meu filho.

    Um beijo da Mar. Para uma pessoa que tem lua no nome:)

    ResponderEliminar
  7. Olá Sandra:

    É um dos nomes pequeninos que chamo ao meu filho: "tantinho". Também a Sandra tem sido "tanto". Por ser muito. Há-de ser uma mãe capaz de muito amor.
    Como a mesa do meu filho. Feita a partir das coisas que fui buscar ao quarto, enquanto pensava no que significavam. As caixas de música, os carros, o livro. Algumas das coisas que amo no meu filho. Que o tornam único. Que fazem com que seja tanto. Para mim.

    Um beijo para si. De agradecimento terno. Da Mar.

    ResponderEliminar
  8. Bom dia, Lusitana:

    Não é nada trapalhona:) Estas coisas acontecem. A todos nós.
    Ser mãe é difícil, às vezes. Bem sabe, não é? Mas é o compromisso mais doce, este de prolongar a ternura de um berço. As metáforas do berço, da casa, do colo. De todas essas realidades significarem ser mãe. Creio que foi uma das muitas coisas que aprendi com o meu filho.
    Care. Caring. Palavras partilhadas pela Mar e pela Lusitana.

    Um beijo que agradece. Da Mar.

    PS: No Museu do Caramulo, parei a olhar um quadro lindíssimo, de um pintor português: Retrato de Maria Luísa, Eduardo Malta. E não sei porquê, mas fez-me pensar em si. Fica a lembrança, então.

    ResponderEliminar
  9. Minha doce Babette:

    Uma mesa poética. E infantil. Com coisas pequeninas do António. Coisas que significam coisas.
    Exactamente como descreveste no teu email matinal: muito intuitiva, a composição da mesa que assinalou o nascimento do meu filho.
    Soubemos as duas, então. Que iríamos ter filhos rapazes. Dois de uma vez, no teu caso! E o teu dia de ontem, no Shis. Risotto e mar. Um dos sítios definitivos, aquele restaurante.

    Um beijo da mãe Mar. Para a mãe Babette.

    ResponderEliminar
  10. Vir aqui no final do dia é ir para a cama mais reconfortada, mais quentinha...
    E logo depois de ler um texto destes, onde me revi em (quase) todas as linhas, pelo que senti, sinto e sentirei pela minha Princesa de Olhos Grandes, na eternidade de um amor de mãe!
    Um beijo grande ao teu Príncipe e outro não menos especial para ti, from Mother to Mother...

    ResponderEliminar
  11. Sabia que sim, minha happy single mother. Que estarias algures nestas linhas. E estavas lá. De manhã cedo, quando eu chegava, exausta. Depois de mais uma noite. Solidária, como só algumas mulheres especiais conseguem ser. E íamos tomar um café. E eu queixava-me e perguntava por "receitas" milagrosas que o fizessem dormir. Só que não havia. Não há. Ser mãe é saber aceitar isso, não é?

    Uma noite descansada. Para ti. E para a Princesa dos Olhos Grandes. From mother to mother.

    ResponderEliminar
  12. Parabéns!!

    Adorei as palavras, que agora têm mais significadi por me aproximar desse momento de transformação...

    Bjinhos
    Sandra

    ResponderEliminar
  13. Lembrei-me de si. Porque sei que está perto. Que deve estar quase na hora. Que seja pequenina, breve. E feliz.

    Um beijo da Mar para a mãe Sandra:)

    ResponderEliminar
  14. Bela descrição do que é ter um filho.
    Tal como o António também sou amante de automóveis.
    Parabéns a ele!
    Parabéns à escritora!

    ResponderEliminar

AddThis