Ler devagar.

O nome de uma livraria. Que se adequa à ideia dos livros da Ana Teresa Pereira. E que recupero, a propósito não só do livro, mas de uma daquelas coisas que acontecem num determinado dia e a que não conseguimos ser indiferentes. Porque no sábado quis tanto que, à minha espera, houvesse algures um livro novo da Ana Teresa Pereira. Um que ainda não tivesse lido. E do nada, num instante de completa gratuitidade, ali estava. A materialização do meu desejo matinal, à mesa do pequeno-almoço demorado de sábado. E eu sei que não é preciso mais nada. Sei que não preciso de ter lido críticas literárias, nem de ver se foi prefaciado ou não, apresentado com direito a fotografias nas páginas das revistas. Sei que os livros dela se bastam. E que ela é uma daquelas escritoras insubmissas, livre. Que não aparece. Nem sequer para receber prémios. Uma figura algo misteriosa, que vive entre as ruas frias de Londres e a exuberância da Madeira. E que, no intervalo entre as duas coisas, escreve. Bem. Há os livros. Que são o que realmente interessa. Tão de ler, que não queremos saber coisas terrenas sobre a Ana Teresa Pereira. Não à opinião dela sobre situações políticas, não à perspectiva relativamente à voracidade com que as coisas se alteram. Só que continue a escrever. O mesmo que sinto em relação a Philip Roth, num registo diferente, porque a escrita crua deste judeu americano se opõe completamente à dimensão fora do real da Ana Teresa Pereira. Mas sei que a minha vida adquire mais sentido, porque posso esperar que um dos dois escreva. E que escrevam, então. É só isso que se deve pedir a quem escreve. Que continue. Sem ser importunado, questionado, interpelado.  
Nos livros da Ana Teresa Pereira, há uma maneira irrepetível de dizer os corpos. As flores. Os aromas. As casas. As roupas com que são vestidas as personagens. As memórias. E a comida. Também a comida. Descrições muito essenciais de coisas muito essenciais. O queijo, o pão quente, os frutos, um copo de vinho bebido a sós. Os livros a que cheguei há muito tempo. Oferecidos pelo amor, feliz porque havia um livro em que uma personagem tinha o meu nome. E porque ela era assim como eu era: de cabelos soltos ou presos, água de colónia que cheirava a frutos e a flores de Verão, jeans gastos, pés de bailarina e ombros despidos. Nesse tempo difuso, o pedido para que o vestido de casamento deixasse ver os ombros. E que a água de colónia fosse a mesma. Voltar aos livros da Ana Teresa Pereira significa voltar ao aroma inicial dos frutos e das flores de Verão. Tanto que há num livro. Nos livros. E a dádiva completamente imerecida que há aí.
Então, amanhã, o meu filho vai dizer que a mãe cheira a flores e a frutos. Early in the morning.

11 comentários:

  1. Sinto isso em relação a muitos dos meus escritores favoritos. Anseio por cada livro novo. E sinto que é uma dávida quando os vejo nas livrarias à minha espera. Não conheço a obra da Ana Teresa Pereira. Mas se gosta, e muito, eu também quero ler. Por qual hei-de começar? Dê-me um título que eu vou já comprar!...
    Babette

    ResponderEliminar
  2. Mar:
    Está escrito: não vou descansar enquanto não comprar um livro da Ana Teresa Pereira. Se não é pedir-lhe muito, será que me recomendaria um em especial para 1ª leitura? É meu costume valorizar mais, muito mais, um autor aconselhado por um amigo ( a Mar é amiga dos seus leitores) do que meras críticas literárias
    por vezes injustas ( num ou noutro sentido). Foi assim que há alguns anos "descobri" Teolinda Gersão e o fantástico Ruben A. Devorei tudo o que pude, nem sempre é fácil encontrarmos obras pouco recentes. Mas faz parte do encanto! Engraçado, uma das minhas pintoras de referência, uma mulher com uma tremenda carreira internacional mas pouco difundida em Portugal é madeirense: Maria de Lourdes Castro. Serralves há cerca de 1 ano fez uma retrospectiva dela muito bem apresentada.
    Obrigada pelo seu belo texto, logo pela manhã, que bem nos dispõe!
    Beijinho

    ResponderEliminar
  3. Olá, Mar
    Julgo nunca ter lido nada da autora que refere, mas curiosamente o meu olhar já ficou preso à capa deste livro, quando há poucos dias o vi numa livraria. Senti necessidade de a descodificar e de estabelecer uma relação com o título. Porém, acho que foi mais o significado pessoal, que dela retirei, que me obrigou a reter o olhar na imagem da capa durante uns minutos. Depois perdi-me nos meus pensamentos e saí da livraria. Agora estou a retomá-los com um novo incentivo - ler o livro e compreender a relação entre a imagem da capa, cuja escolha não deve ter sido estranha à autora, e o conteúdo. bjs

    ResponderEliminar
  4. Mar
    Os livros são uma das coisas belas da vida.
    Ler é...construir...destruir...Ler é sonhar...é concretizar...é viajar, sem nunca sair do lugar...é conhecer e viver com o conhecido...com o desconhecido. Ler é projectar...("Os ombros descobertos"...)
    Um livro fora da estante, pousado no lugar onde paro todos os dias é Vida!
    Neste momento "ando à luta" com António Lobo Antunes."Que cavalos são esses que fazem sombra no mar?"
    Obrigada pelo fantástico texto!Vou começar a desbravar Ana Teresa Preira que nunca li.
    Beijinhos
    P.S. Na próxima 5ª feira estarei em Viseu. Vou seguir as suas sugestões.

    ResponderEliminar
  5. Cheguei aqui vinda de um blog de que muito gosto e admiro (o da Babette). E logo me maravilhei. Pela escrita, tão poética e cheia de significado. Pelas memórias, tão bem partilhadas. Pelo cheiro a flores e a frutos que aqui senti. Só li três posts, mas sei que vou ter de o descobrir devagarinho, como a sua leitura, infelizmente sem a companhia do chá da Maison Mariage Frères (que saudades).
    Obrigada por ter tornado esta minha pausa de almoço numa experiência de sentidos, tão boa como se tivesse ido comer ao mais maravilhoso dos restaurantes. Cristina

    ResponderEliminar
  6. Para a Babette:

    Seria bonito começar pelo primeiro livro que li. O Rosto de Deus. Oferecido pelo meu marido, quando eu ainda andava na faculdade. Mas há outros. Muitos. Com títulos lindos: O Verão selvagem dos teus olhos. As Rosas Mortas. Se nos encontrarmos de novo. As personagens. Espero que a Babette goste muito das palavras da Ana Teresa Pereira!

    Beijo da Mar.

    PS: Tão bonita a sua resposta, a propósito da minha dança e da sua música. E estou ansiosa por ver The Black Swan. Por intuir a beleza e a crueldade da arte que ensaia a leveza.

    ResponderEliminar
  7. Para a Lusitana:

    Está a ver como as coisas são? Não conheço os autores de que falou. Bom assim. Eu falei numa escritora de que gosto e a Lusitana falou de dois escritores e uma pintora. Fiquei eu a ganhar:)
    Também estou de acordo com essa ideia que formulou, a propósito dos livros que surgem com a amizade. Os livros e os escritores que mais me marcaram chegaram assim: através da amizade e do amor. E não ligo muito a críticas. O difícil é escrever. Dizer o mundo. A posição confortável de analisar, de dissecar a escrita dos outros, não me diz nada.
    Fico muito feliz que o seu dia tenha começado com as palavras sobre a Ana Teresa Pereira. Também aí há uma componente muito bela de dádiva.

    Um beijo a meio do dia. Depois de muitas aulas a tentar cativar alunos para a escrita do Padre António Vieira:)

    ResponderEliminar
  8. Para a Lusitana (outra vez)

    O meu dia está a ser particularmente cheio, pelos vistos. Esqueci-me de lhe deixar a referência de um livro para começar a conhecer a Ana Teresa Pereira: O Rosto de Deus. Uma bela maneira de iniciar a leitura. Foi assim que começou comigo. E correu bem.

    Outro beijo:)

    ResponderEliminar
  9. Para a Fa:

    As capas dos livros da Ana Teresa Pereira oscilam entre imagens de quadros ou fragmentos de quadros de Dante Gabriel Rossetti e de Rothko. E a relação encontra-se algures nas narrativas, nas personagens. Deixe-se guiar pelo seu primeiro instinto e leia-a. Vai gostar, de certeza. As mulheres são descritas de uma maneira muito nossa. De mulher. Nos pormenores. Nos perfumes. São pedaços de narrativa que ficam muito. Que perduram.


    Um beijo da Mar.

    ResponderEliminar
  10. Para a Emília.

    São tudo, os livros. Está tudo escrito algures num livro. Eu amo as paredes da minha casa. Cada uma das estantes. Cada uma das paredes feitas de livros.
    E nunca li António Lobo Antunes. Embora tenha gostado muito de uma biografia. Mas não consigo gostar da figura. Dos discursos sobre si. Sobre o mundo. Sobre os outros escritores. Mas diga coisas sobre a escrita dele. E assim, pode ser que, por via das suas palavras, eu chegue às palavras dele.

    Um beijo da Mar.

    PS: Que bom que vem a Viseu. Se vier para almoçar, e se aceitar uma sugestão, o Muralha da Sé é um bom sítio para partilhar uma refeição com um filho. Fica bem perto da Rua do Comércio. Gostava muito de a conhecer.Embora não saiba ainda como vai ser o meu dia.

    ResponderEliminar
  11. Para a Cristina:

    Que bom receber uma primeira visita. No primeiro dia do mês de Fevereiro. Fica esse registo inicial. E a alegria interior por ter gostado de ler as páginas breves dos dias da Mar. Que hoje foram sobre um livro e sobre flores e frutos. Muito obrigada pelo pedaço de poesia que ficou aqui. O meu dia cansativo e cheio de aulas ficou acrescentado por isso. E pela comparação muito bela com que encerrou o seu texto. Espero lê-la mais vezes. Um bom resto de dia para alguém que se emociona com as palavras.

    Beijo da Mar

    PS: O chá especial da latinha preta arranja-se no Club Gourmet do El Corte Inglès. Este da imagem é de flores. Muito suave.

    ResponderEliminar

AddThis