Ela aí está. De novo. Sempre como se nunca tivesse acontecido. Renovada. Solta, livre, como uma rapariguinha descalça, a atravessar um jardim onde a relva é sempre verde. Com ela, as primeiras frésias. As primeiras ervilhas de quebrar. As primeiras cebolas. As primeiras alfaces. As primeiras cenouras. Tudo é primeiro. Inicial, limpo. E a cada Primavera, verificar que permanece aquela propriedade inqualificável que me faz reparar nas coisas ínfimas e dar-lhes na minha vida o trono que merecem. Força invencível que se move ligeira pelo mundo, tal como a rapariguinha descalça que sempre é a Primavera.
A minha alegria, quando por esta altura surgem todas as coisas que sei de cor, mas que vivo com aquela surpresa, aquele espanto de que fala a poesia do Fernando Pessoa incarnado Alberto Caeiro. Ir ao mercado ao sábado de manhã, por mais que seja rotina, hábito, é algo do domínio da graça. Passa por aquele encantamento primeiro, face às coisas tal como elas são, antes ainda de as transformar noutras coisas, já em casa. Lindas, mesmo. Sinto-me então a transbordar de gratidão pela dádiva dos sentidos. Por poder ver as cores vibrantes, por sentir o aroma do raspar da casca fina das cenouras ou do quebrar da rama, que é tão ou mais importante do que as cenouras. Por ouvir o som das pessoas, da azáfama da vida muito particular do mercado. Por tocar o pão cozido nessa manhã bem cedo, pela senhora de olhos pequeninos e brilhantes onde compro sempre os enchidos. Bom de ver, o orgulho que as pessoas sentem naquilo que fazem. E, para mim, fazer um bom pão, um bom salpicão, são coisas que justificam uma vida. Depois disso, chegar a casa e ir imaginando as coisas transformadas noutras coisas. Também isso justifica uma vida.
Deixo hoje duas receitas que me fazem pensar muito no dom maravilhoso que é o de fazer comida. A matéria principal é a pescada. Um daqueles peixes que não desperta grandes coisas, mal se pensa. Eu adoro. O meu imaginário vai logo para os filetes de pescada do Aleixo. Ou para a pescada de cebolada do Dóri, que inspirou uma das minhas receitas. Para uma pescada gratinada com maionese, que é uma daquelas receitas de família e que veio parar-me às mãos, num livro de receitas que estimo como a um tesouro. E muito, para o meu creme de legumes com pescada. Um caldo prévio, feito com a cabeça da pescada e perfumado com ervas frescas. A seguir, legumes feitos creme, a usar o tal caldo em vez de água. O processo é simples, mas com pormenores, detalhes que lhe acrescentam delicadeza, sofisticação. A última vez que o fiz foi neste fim-de-semana, a preceder uma pescada voluptuosa, servida com batatas novas e com salada de alfaces tenras como só conseguem ser no início do tempo quente. À mesa, aquele silêncio de início que é sinal de se estar a viver coisas boas, que depois dá lugar às palavras e crianças a pedir para repetir a sopa e o peixe. Por todo o lado, andava ela, a Primavera.
Os dias neste jogo entre o lá fora e o cá dentro. As mantas continuam a estar por perto dos sofás, para as noites. A luz vai mudando. Mas, seja o que for que mude, o olhar que pára nas coisas e que as contempla na sua beleza vulnerável, como a minha colecção de jarras, que mistura eras, geografias e matérias. Para mais inspiração para os lugares que habitamos, esta revista. E mais um livro de Tolstói. Narrativas mais breves, mas sempre com o traço magistral de um dos grandes, senão o maior, eras e eras se somem, como diz o Quinto Império. E só o título deste livro é um manifesto. De quanta terra precisa o homem. A resposta sabe-se antes de ler o conto: da suficiente para que se sinta tranquilo, satisfeito, feliz. E isso é mais difícil do que parece.
Creme de legumes com pescada
Para o caldo: 1 cabeça de pescada (na banca, peço sempre para ser cortada com um bocado generoso do resto do peixe) + 1 rodela de limão + 1 talo de aipo + um ramo de cheiros (com salsa e coentros) + 1 tomate (inteiro, com a casca) + água, sal e azeite q.b.
Para o creme: 1 cebola + 5 cenouras + 2 pedaços (pequenos) de abóbora + 2 batatas + sal, azeite, coentros e salsa q.b.
Primeiro, leva-se ao lume uma panela com água e todos os ingredientes necessários para fazer o caldo. Desliga-se o lume, mal a água ferve e deixa-se estar uns cinco minutos. Decorrido este tempo, retira-se a cabeça de pescada com uma escumadeira e tira-se a "carne" toda para uma tigela. Reserva-se. O caldo deve ser coado para uma taça larga e esmaga-se bem as ervas, o limão, o tomate e o aipo, deixando escorrer todos os sucos para a taça, a partir do coador. Reserva-se.
Entretanto, leva-se ao lume a cebola cortada, num fio de azeite. Dá-se uma volta com a colher de pau e junta-se todos os outros ingredientes, excepto a salsa e os coentros. Cobre-se os legumes com o caldo reservado previamente, tempera-se com um pouco de sal e deixa-se cozer durante cerca de 20 minutos. Mal esteja tudo cozido, passa-se com a varinha mágica até ser creme, acrescenta-se o peixe reservado, rectifica-se de sal e de azeite e salpica-se com salsa e com coentros.
Pescada de cebolada
6 postas de pescada + 2 cebolas (médias) + 2 dentes de alho + sumo de metade de um limão + 2 tomates + 1 colher (de sopa) de amido de milho + sal, azeite, coentros e salsa q.b.
Primeiro, as cebolas e os alhos, num fio de azeite e num tacho largo. Uma volta rápida ao lume e acrescenta-se o tomate, partido em pedaços. Um pouco de sal e mais uma volta com a colher de pau. Por fim, as postas de pescada (que devem ser cortadas altas, para se manterem suculentas e inteiras). Mais um salpico de sal, o sumo de limão por cima e um fio de azeite. Tapa-se e deixa-se cozinhar durante 10 minutos (é importante não exceder este tempo e mais importante ainda não mexer, para que as postas se mantenham intactas). Quando estiver pronto, acrescentar ao molho o amido de milho, previamente dissolvido num pouco de água, as ervas picadas na hora, por cima da pescada e do molho delicioso que acabou de acontecer. E sim, é imperdoável não haver pão à mesa, para este molho:).
A música é dos Cage The Elephant.