Vouzela continua. Linda.






























Por onde quer que as nossas vidas sigam. Por mais longe que elas se declinem, há sempre o lugar de onde viemos. O lugar onde existimos desde o início, com todos os nossos inícios. Muito importantes, os lugares onde construímos as nossas ilusões primeiras. Mesmo que se desfaçam, nada nem ninguém pode alterar o sítio inicial onde foram acalentadas como matéria preciosa. Os cenários onde nos projectámos no mundo lá de fora. Os lugares onde dissemos muitas vezes, quando eu for grande, quando eu for grande, quando eu for grande. No meu caso, esse lugar foi Vouzela. E esse foi/é um dado determinante na minha biografia. 
O empedrado das ruas muito antigas. As casas e as suas narrativas. A maneira como as cadências da luz do dia vão desenhando a ponte omnipresente. O rumor do rio. As fontes de água muito fresca e límpida e todas as lendas associadas à água de Vouzela. A delicadeza inesquecível dos pastéis de Vouzela. Ninguém se esquece deste doce. O folhado finíssimo. Quase impossivelmente fino. O doce de ovos que é como nenhum outro. Labor secreto e sagrado das famílias que os fazem com sabedoria e entendimento sedimentados. E, claro, o verde. A cor dominante e determinante em Vouzela. Ao redor. Muito desse verde, ao redor. Para onde quer que olhássemos ou fôssemos, aquele verde. Foi sempre essa a cor-oxigénio. Verde denso, fresco, abrigo. E tudo o mais que o verde sempre significa nas nossas vidas. 
No dia 15 de Outubro, o fogo consumiu uma boa parte desse verde. À volta, tudo ficou irremediavelmente marcado por essa mágoa que lemos no olhar das pessoas, por mais que se esforcem por seguir e por ser fortes. Ferida aberta que vai demorar a cicatrizar. Mas há uma coisa, um dado incontornável: Vouzela continua linda. Airosa. Com flores e com plantas em cada porta e janela. Como se fosse uma mulher que é sempre muito bonita. Uma daquelas mulheres que, ainda que atravessem tragédias e perdas e quedas, são sempre lindas. Mecanismos insondáveis e aleatórios, esses. E paradoxais, quando acontecem coisas que deviam só fazer cair, deitar abaixo, fazer chorar, entregar os pontos. E não. Às vezes, acontece o contrário. E os sítios e as pessoas e (principalmente) as almas e os corações das pessoas reinventam-se. À maneira (linda) de Vouzela: sem estar com grandes declarações, sem anúncios solenes. E assim, se numa porta ou numa janela parece faltar uma flor, podemos estar certos que daí a nada, haverá uma flor. Porque é assim que as coisas são, na vila onde cresci. 
E sim, os pastéis de Vouzela continuam maravilhosos, a justificar peregrinações. Continuarão sempre ao nível do maravilhoso, assim continue o lugar e quem habita o lugar. Pessoas que vêm por causa dessa memória que querem renovar indefinidamente. De perto, de longe, de muito longe. Pessoas que ficam irremediavelmente encantadas com a integridade do lugar onde aquelas delícias são feitas, envoltas num segredo ancestral que só é revelado aos que o continuarão. Quem já sentiu a alegria especial de quebrar aquele folhado fino e avançar para o recheio interior, sabe (bem) do que estou a falar. Quem ainda não viveu isso, que venha a Vouzela e que tente perceber por que é que é uma daquelas coisas que vale mesmo a pena viver. É que Vouzela continua. E continua a ser o que sempre foi: linda. Está magoada, está a tentar por tudo, não se esquece de nada, mas continua linda. 
Ficam alguns dos muitos caminhos possíveis, na vila. A página do Município, para quem quiser/puder ajudar. E esta imagem última de esperança, que me foi enviada pelo Tiago Ferreira Santos e cedida pelo Ivo Madeira. Também diz de que matéria é feita o lugar onde tive a sorte de crescer. O lugar que será sempre a minha casa. 

A música é esta. 

4 comentários:

  1. Que linda esta Vouzela que aqui deixas. Dos teus olhos.
    Parece um lugar fantástico, dos musgos e dos bosques, muito bonita a luz das fotografias... do sitio onde crescemos.
    Um beijinhos a ti.
    da Pipinha

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    1. Sim, o sítio onde crescemos juntas. Os (nossos) sítios dentro do sítio. E todas as nossas coisas especiais e urgentes e cheias de significados. Muito linda, a nossa vila. Tivemos muita sorte, Pipinha.

      Um beijinho grande para ti*

      Isa

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  2. Que fotos e que palavras tão bonitas Mar... é exactamente assim que me lembro de Vouzela.E dessa rua à beira rio tão bonita...
    Já fui tão feliz por aí na zona centro. Fiquei (como ficámos todos) absolutamente desolada e incrédula com as notícias...
    Irónicamente conheci Vouzela por causa de um incêndio.
    Há uns 9 ou 10 anos atrás, estavamos de férias em Arganil, houve um incêndio, tivemos de sair. Olhamos para o mapa e decidimos ir até S. Pedro do Sul. Foi amor à 1ª vista, voltamos mais 2 ou 3 anos seguidos. Guardo muito boas recordações dessa bonita zona do país e sim, hei-de voltar muito em breve, mais que não seja para provar os pastéis de Vouzela,que ( pasme-se) não comi!!!
    Beijinhos

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    1. Olá Dulce,

      Obrigada pelas tuas palavras. A rua chama-se Rua da Ponte e é um dos caminhos de que mais gosto, em Vouzela. A ver se sim, se voltas. E se bebes água da fonte junto ao rio. Dizem que quem beber daquela água, ficará (para) sempre ligado à vila. E sim, os pastéis. Tens mesmo de os provar. Têm o mesmo efeito da água da tal fonte, na memória sensorial das pessoas. Nunca mais se esquecem de Vouzela.

      Isto tudo que agora é cor de cinza há-de passar. Vai levar tempo, mas vai passar.

      Um beijinho*

      Mar

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