Sem uma única palavra, esta imagem. E diz tudo. A desolação. A desesperança. A vulnerabilidade de quem se sentiu entregue sozinho a uma fera inconcebível. E uma dignidade enorme. Nas mãos calejadas e pousadas uma na outra. No rosto marcado pelas cinzas. Nos olhos cansados. Olhos objectiva e intangivelmente cansados, pela mágoa enorme de terem visto coisas que não era suposto terem visto. Coisas que ninguém devia ver. Porque há os sítios habitados por gente como esta, que já não espera outra coisa da vida senão morrer em paz, depois de uma vida inteira a trabalhar terras que só dão para subsistir. A chamada agricultura de subsistência, convencionada como uma espécie de dado adquirido, relativamente à agricultura do interior do país. E nem isso, agora. O interior entregue à sua sorte. O interior há muito tempo entregue à sua sorte. Sublinho o há muito tempo, porque o abandono não é de agora. O interior deixado para lá, com os seus ciclos e rituais silenciosos que não interessam assim muito, porque às vezes, até são sítios onde nem há internet nem nada. Sítios onde não acontece nada, dizem as pessoas. Acontece sim. Muito do que acontece em todos os sítios esquecidos tem efeitos nos sítios onde tudo parece acontecer. E a floresta, também deixada à sua sorte, lembrou-nos que tudo pode mudar de um dia para o outro. E que o caminho para esse dia em que tudo muda é feito silenciosamente, num rumorejar imperceptível de vegetação a densificar-se e a acumular-se, feita combustível anunciado. Seca, imensamente seca. Abandonada. De um momento para o outro, algo (ou alguém) acende o rastilho e o resto acontece. E é aí que o silêncio termina.
Tem de haver um sentido qualquer para tanta tragédia. Tem de haver. E uma coisa é, para mim, certa. Não se pode pedir esse sentido às comunidades reiteradamente esquecidas dos territórios igualmente esquecidos. Não se pode, porque homens como o da imagem foram fazendo tudo na mesma, apesar de tudo. Foram vivendo as estações e fazendo o que sempre fizeram. E, naquele dia terrível, defenderam casas e animais e terras e pessoas até ao limite. Alguns viveram para contar. Outros não. Morreram a fugir. Morreram em casa. Para essas pessoas, não há depois.
Quem está aqui e assiste à vida agrícola longe dos rótulos biológicos e assépticos das cidades, sabe que estes incêndios têm repercussões a longo prazo. Nas aldeias, as pessoas viram arder o que já tinha sido colhido e guardado para o ano, até ser altura das colheitas seguintes. Nas aldeias, as pessoas viram arder na terra aquilo que ainda faltava colher. Mais as sementes que estavam guardadas. Mais os animais e o pasto que os alimenta. Mais os sítios onde os animais estavam. A par disso, a mancha negra em que se transformou a floresta. Uma mancha contínua, ininterrupta. Silenciosa e ainda fumegante, volvidos estes dias. Fiz esses caminhos. Obriguei-me a fazer os caminhos que conheço desde pequena. Os colectivos e os individuais. Falo dos colectivos e guardo os individuais para mim, por respeito face aos que perderam tudo ou quase tudo o que havia para perder. Por mais que me custasse, tinha de os fazer.
Não consegui (nem consigo) palavras para dizer a perda. Não quis fazer outro registo que não o da minha memória. Inconcebível, ter um filtro. Fotografar. Ganhar distância. Os profissionais têm esse dever. E alguns, como o fotógrafo que guardou o rosto deste homem, fizeram-no com sensibilidade, com respeito. E, o tempo todo desses caminhos difíceis, pensei no efeito terrível de todas aquelas cinzas, nos que ali ficam. Porque a vida é todos os dias. E ali também, não obstante esta tragédia. Passada a nuvem de fumo que tornou o ar irrespirável, as pessoas levantam-se e têm de ir trabalhar. Os filhos levantam-se e têm de ir para a escola. Tudo segue. Tudo continua, apesar daquela mancha negra e extensa. Há esse depois que todos os dias tem de olhar em frente. E bem de frente para toda aquela desolação. Não dá para fugir, porque a vida é ali. Vai levar tempo. Construir, reconstruir, criar, edificar, semear, crescer. Verbos que levam tempo. Muito tempo. O oposto é que não. Basta um fósforo. Ou uma ignição, como dizem nas notícias lá longe.
Quem está aqui e assiste à vida agrícola longe dos rótulos biológicos e assépticos das cidades, sabe que estes incêndios têm repercussões a longo prazo. Nas aldeias, as pessoas viram arder o que já tinha sido colhido e guardado para o ano, até ser altura das colheitas seguintes. Nas aldeias, as pessoas viram arder na terra aquilo que ainda faltava colher. Mais as sementes que estavam guardadas. Mais os animais e o pasto que os alimenta. Mais os sítios onde os animais estavam. A par disso, a mancha negra em que se transformou a floresta. Uma mancha contínua, ininterrupta. Silenciosa e ainda fumegante, volvidos estes dias. Fiz esses caminhos. Obriguei-me a fazer os caminhos que conheço desde pequena. Os colectivos e os individuais. Falo dos colectivos e guardo os individuais para mim, por respeito face aos que perderam tudo ou quase tudo o que havia para perder. Por mais que me custasse, tinha de os fazer.
Não consegui (nem consigo) palavras para dizer a perda. Não quis fazer outro registo que não o da minha memória. Inconcebível, ter um filtro. Fotografar. Ganhar distância. Os profissionais têm esse dever. E alguns, como o fotógrafo que guardou o rosto deste homem, fizeram-no com sensibilidade, com respeito. E, o tempo todo desses caminhos difíceis, pensei no efeito terrível de todas aquelas cinzas, nos que ali ficam. Porque a vida é todos os dias. E ali também, não obstante esta tragédia. Passada a nuvem de fumo que tornou o ar irrespirável, as pessoas levantam-se e têm de ir trabalhar. Os filhos levantam-se e têm de ir para a escola. Tudo segue. Tudo continua, apesar daquela mancha negra e extensa. Há esse depois que todos os dias tem de olhar em frente. E bem de frente para toda aquela desolação. Não dá para fugir, porque a vida é ali. Vai levar tempo. Construir, reconstruir, criar, edificar, semear, crescer. Verbos que levam tempo. Muito tempo. O oposto é que não. Basta um fósforo. Ou uma ignição, como dizem nas notícias lá longe.
A ordem sábia e tácita que havia entre Homem e Natureza há muito que foi quebrada. A actividade humana orientou-se desde sempre pela subordinação aos ciclos e às lógicas dos elementos, das geografias, das estações. Subverteu-se isso tudo e todos nós contribuímos de alguma forma para isso. Desprezar ou ter como menor a actividade agrícola foi um erro que há muito se cometeu e que foi sucessivamente reiterado. A vida que havia nas aldeias e que agora é escassa e envelhecida, era zeladora das florestas. Toda a gente cultivava as terras. Toda a gente tinha animais porque cultivava as terras. E isso era motor para uma série de pequenos gestos que iam vigiando as florestas. Os animais limpavam naturalmente os espaços entre as árvores. E as pessoas iam em busca de mato, para fazerem a cama dos animais nos currais, para os alimentarem durante o Inverno e para depois fertilizarem naturalmente as terras. Uma equação simples e que se foi perdendo porque as aldeias foram ficando desertas, porque a agricultura se foi transformando num sector maldito, distante dos progressos e dos avanços tecnológicos e da voracidade que alimenta vidas que há muito perderam o sentido da ligação com a terra. Vidas que se habituaram a ter tudo ready to go. Calibrado e embalado sem sentido ecológico. Vidas que, não tendo nenhuma intolerância alimentar, passam a não consumir leite e ovos e carne e peixe e manteiga e queijo e enchidos e pão e tudo o mais que foi sendo rotulado de pouco saudável. Pouco saudável é escolher olhar para rótulos de embalagens de produtos transformados, em vez de comprar coisas frescas e chegar a casa e cozinhá-las com sensatez. E esse gesto ancestral tem que ver com todos os gestos ancestrais praticados na vida agrícola. Também essa relação foi sendo reiteradamente quebrada e é importante reabilitá-la. Mas que venha sem as habituais brigadas radicais que fazem a apologia de enviesarmos as nossas perspectivas. Que as pessoas se lembrem que há mais carne para além das carnes brancas. Que há cabrito e borrego e coelho e vitela e porco. E que há gente no nosso país a produzir isso tudo. Que nas escolas se possa comer melhor e que se privilegie a sazonalidade e a proximidade. Um detalhe que poderia fazer toda a diferença nas vidas dos pequenos agricultores do interior: se as escolas comprassem as matérias primas diretamente aos produtores mais próximos e que fossem cozinhadas nas cozinhas das escolas, que neste momento, servem para acondicionar embalagens de plástico de comida de plástico. E as pessoas que estão lá, transformadas em meras correias de transmissão, destituídas da capacidade de tempero, de deixarem a sua marca na comida das cantinas escolares. Feitas as contas, creio que seria bem mais em conta, esta solução. Não sou só emocional e etérea e poética. Isso tudo tem base num pragmatismo alimentado por uma mente que pensa por si.
Há uma ética associada à comida, ao consumo. Pequenas escolhas que determinam coisas muito importantes e muito maiores do que nós e que têm que ver com gestos muito simples. Este sítio é um sítio dedicado à comida, na sua matriz mais elementar. É livre e descomprometido e não deve nada a ninguém. Não precisa de se submeter a nada. Tal como eu, na minha vida. Não conseguia seguir com as publicações normais sem este post. Que é longo, fora dos limites regulamentares, neste meio de leitura rápida e esquizofrénica da internet, onde tudo faz a diferença e onde nada faz a diferença. Mas era necessário. Só hoje me senti certa do silêncio necessário para escrever, depois de fazer uma série de coisas muito concretas e de dar andamento a outras. Em silêncio e com o respeito que os cenários que encontrei me inspiraram e que inspirarão sempre. Há um antes e um depois. Na minha vida. Nas nossas vidas, creio. Um antes e um depois. Que seja melhor, esse depois. Que seja um depois com memória. Que, desta vez, as pessoas não se esqueçam outra vez.
Este post é sem música.
Este post é sem música.
Que texto, Mar! Certeiro e sentido, de quem viveu tudo muito perto. O melhor texto que li sobre o assunto. E li muitos.
ResponderEliminarUm beijo, minha querida. Que o depois seja melhor, sim. Tem de ser!
Ilídia
Sentido, sim. Muito. Não dá para ser de outra maneira. Por tudo o que disse. Por tudo o que calei, também. Pelo meio de toda aquela tragédia, as tuas palavras ao telefone, aí de longe. Obrigada por elas, naquele dia. Por estas, hoje.
EliminarUm beijinho grande*
Mar
Obrigada por este texto que faz toda a diferença! Para quem como eu viveu e continua a viver de perto este pesadelo, fica a tristeza de ver tudo dizimado e queimado! Vidas que se perderam, o "sustento" de tantos, que se perdeu, casas que se perderam, indústrias que se perderam e floresta que se perdeu...perguntamos como é possível acontecer esta tragédia, que se não fossem, também, os que cá vivem, teria tido um desfecho muito pior...
ResponderEliminarResta-nos perpetuar a memória (tem de haver um sentido qualquer para tanta tragédia) e que os cenários nos inspirem, para um depois melhor!
Um beijinho da Maria Jorge
Este pesadelo vai prolongar-se, querida Maria Jorge. É um dado certo. As pessoas estão a tentar reerguer-se, mas é tão desolador o confronto diário com tanta tragédia. E sim, não fossem as pessoas destas (nossas) geografias esquecidas e teria sido bem pior. Obrigada pelas palavras. E muita força para o depois, aí. Que seja melhor. É altura de inventar esperança. Uma esperança ferida. Mas uma esperança possível.
EliminarUm beijinho muito grande para si*
Mar
Que texto assertivo! Diz tudo o que faz falta saber. E fazer. Que tudo e todos se recomponham e ganhem ânimo para as novas vidas que têm de abraçar com a coragem necessária.
ResponderEliminarUm beijinho.
Guida
Tanto por/para fazer, Guida. E sim. Ânimo, esperança, coragem. Muito disso. Obrigada a si.
EliminarUm beijinho*
Mar
Estou aqui a olhar para o ecran e faltam-me as palavras....
ResponderEliminarTenho tanto para dizer mas não consigo organizar o pensamento... foi demasiado mau o que aconteceu... nem imagino a desolação, o sofrimento e a angústia de quem vive aí.
E agora? Será que vamos conseguir erguer gentes e casas e terras para que o interior não morra de vez? ... não sei. Vai levar muito tempo mas não podemos amputar esta parte do país...
Beijinhos querida Mar
Sim. São bem difíceis, as palavras. E não sei, Dulce. Não sei o que vai ser. Vivemos num tempo sem memória, onde tudo é muito rápido, muito frenético. Mas sim, seria bom que houvesse uma esperança a sério para o nosso interior.
EliminarUm beijinho grande, querida Dulce*
Mar