O silêncio.
























Diz-se que não devemos regressar aos lugares onde fomos felizes. Creio que isso terá que ver com a impossibilidade de reconstituirmos as circunstâncias anteriores onde teremos sentido essa felicidade impossível de reconstituir. Mas esse ponto é demasiado nostálgico. Pelo menos para alguém que sente que o mais importante de tudo é sentir verdade no que está a viver no momento determinado que está a acontecer. E isso é até às últimas consequências. Porque a nossa verdade pode ser o mais maravilhoso dos lugares, sem que importe realmente o entorno. Ou então não. Pode ser um lugar terrível, no contexto mais idílico. A vida tem essas variáveis todas. Equação imperfeita e inacabada. Nós e a vida. Seja como for, não acho a mínima piada a existências em nuvens de algodão. Creio que as quedas, por mais agrestes que sejam, têm em si aquela parte maravilhosa de podermos sempre sobreviver-lhes. Com alguma sorte, mais blindados, mais impermeáveis. Os contrastes são bons. Bate neles um coração. E isto é para mim tão certo quanto adorar o presente maravilhoso que é o presente do indicativo. Regressei a um lugar desses onde fui feliz. Sem outra intenção ou outra vontade que não a de ser feliz agora. Com o que sou agora. Não com o que era, nesse tempo anterior em que estive neste sítio, apesar de alguns dos motivos anteriores permanecerem. E são muito simples: aquela arquitectura despida, aquele silêncio de claustros e de grades de ferro, o lume aceso da sala de jantar.
O trabalho de um arquitecto passa, muitas vezes, por deixar uma marca. Como se fosse um ADN, uma impressão digital. No caso da intervenção de Souto Moura na Pousada de Santa Maria do Bouro, a marca parece ser não deixar marca. Os musgos no granito, as ervas nos telhados, as árvores nos sítios onde sempre estiveram, as paredes interiores sem rasto de ligações para sistemas eléctricos ou electrónicos. Inevitável não pensar na resistência destas edificações tão anteriores, face à aparente sofisticação dos nossos dias. Tão frágil, a nossa sofisticação. Tão fundada no electrónico, no digital, no tecnológico. Um cortar certeiro de fios e cada um desses sistemas é nada. Mas para derrubar estas pedras com séculos, a história já seria outra. Seria preciso bem mais do que anular uma ou outra ligação. E elas lá estão, para contar essa história de resistência à História. E estarão, ao contrário de tantos mecanismos sofisticados que sustentam as nossas vidas. 
Lugares destes só parecem precisar de tempo, de livros e do silêncio suficiente para ouvir a música da água nas fontes e nos tanques. E sem a mínima tónica daquela conversa new age de nos desintoxicarmos artificialmente por via de um lugar ou de qualquer imposição exterior, a marcar hora e lugar para nos serenarmos interiormente. Não acredito nessas religiões apressadas, não tenho de fazer desintoxicação de coisa nenhuma e já me senti a última das pessoas em contextos tidos como muito serenos e muito belos e muito tudo o que é exterior. Mas o ponto é que, em sítios destes, a última coisa que apetece é ligar a televisão ou procurar um computador. Sabemos que esses aparelhos funcionam, que se iluminarão, mal os accionarmos, mas não temos vontade de nada disso. Ao contrário, concedemo-nos um intervalo. 
A Pousada de Santa Maria do Bouro estava tal qual a lembrava dessa vez anterior. O mesmo silêncio, a mesma integridade, a mesma quietude e tanto, tanto as pedras. Creio que tenho uma espécie de amor pelas marcas do tempo nas pedras. E pressinto-o nesta arquitectura. As pedras aleatórias disseminadas pelos claustros. Com mais tempo e com mais musgos. Mas lá, na mesma. Aqueles corredores silenciosos a terminarem num ponto de fuga. A porta verde a que achei piada por ser do género de antever significados e simbolismos em tudo. E perceber a evidência e a inexorabilidade da passagem do tempo, ao ver o meu filho a jogar snooker de igual para igual com o pai. Eu fico à parte, nesse e em outros momentos. E gosto disso. Mesmo muito. Por perceber que há nesses momentos uma certa lógica de território. E códigos e rituais e silêncios que lhes pertencem por inteiro. 
E daqui deste sítio, guardar que foi o sítio onde cheguei à última página dos quatro volumes da Elena Ferrante. Tantas noites a acompanhar a vida errática daquelas duas personagens foram dar ali, à madrugada daquele silêncio. Depois desse último fôlego, aquela entrega aos braços de um sono tranquilo. Gosto muito da ideia de ter terminado ali a narrativa concebida pela escritora-mistério que pode escrever e existir impunemente. Hei-de voltar lá. Com alguma sorte, a terminar outra narrativa neste silêncio. Gosto de pensar nesse regresso. E nesse silêncio. 

A música é do Jamie XX. Loud places. 

14 comentários:

  1. é tão bom começar o dia contigo... a serenidade da tua escrita, a profundidade do que és e tudo o que trazes para dentro de quem, contigo, partilha um pouco destes sentidos todos que se sentem, ouvem e cheiram através das palavras que escreves. adoro-te, pessoa bonita

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    1. E eu estou a terminar um dia cheio. Pelo óbvio do trabalho e tudo o mais. Mas cheio de muitas coisas e de muitas pessoas boas. E, principalmente, de verdade. Tanta verdade, a deste dia. Bom assim.
      Linda Vanessa, tu tens uma frescura de menina. O lastro que deixas no mundo é essa frescura muito etérea e muito bela. E isso é maravilhoso. O tal dia a chegar ao fim ficou ainda melhor ao ler-te. Obrigada com corações dentro:)

      E eu adoro-te de volta, pessoa bonita!

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  2. Plenamente de acordo com a Vanessa.
    E "leio-a" há muito pouco tempo!

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    1. Obrigada. Por esse acordo pleno. Por ler. Por estas suas duas frases que me fizeram tão bem.

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  3. Palavras e imagens muito bonitas. Cada uma a transmitir serenidade e silêncio. Gosto muito da primeira fotografia. Uma moça à janela, como no quadro de Dalí :) As fotografias dos teus homens a jogar bilhar são uma ternura. Também me derreto com os momentos de cumplicidade entre os meus.

    Ando curiosa em relação a Elena Ferrante, mas ainda não cheguei lá. Ando a ler uma obra grande, e ainda só vou no primeiro volume: A minha luta, de Karl Ove Knausgard.

    Um beijo grande de quase fim de semana,

    Ilídia

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    1. Obrigada, minha querida. Gosto tanto que tenhas gostado. A fotografia da moça à janela foi tirada pelo meu Vasco:)

      Este sítio é tão assim. Esse silêncio, essa serenidade, essa atenção às coisas invisíveis. Mesmo que não vás à procura disso, não dá para não te ficar na pele.

      Adorei cada página destes quatro volumes. Por causa deles, andei semanas a adormecer a horas impossíveis, porque não conseguia parar numa página e aguardar até ao dia seguinte. Há gente que escreve mesmo a vida. Que diz mesmo as coisas. O traço dos grandes é muito esse, creio.

      E adoro vê-los jogar. Já gostava quando era só o Vasco, mas quando estão os dois, estão lá nas coisas deles e eu fico só de fora, a ver.

      Outro para ti. Dias bons!

      Mar

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  4. Bom dia Mar,

    A magia desta visita matinal. Sempre as palavras tão serenas mas, que nos atingem com a força de um raio. E as fotografias. Como se fosse preciso algo mais para revelar o que lhe vai na alma.

    Eu também já ouvi dizer que não se deve voltar aos lugares onde fomos felizes. Mas, de facto, se aceitarmos que as circunstâncias são sempre diferentes, somos sempre felizes. Não podemos é querer voltar atrás.

    Adorei o título do post. O silêncio, hoje em dia, é um luxo. Um bem precioso a que não se dá valor.

    Como faz falta e sabe bem parar só para "ouvir" o silêncio.

    E eu, que não sou nada de tecnologias, não podia estar mais de acordo consigo quando compara a tecnologia com as pedras!

    Tal como eu costumo dizer, nasci neste século com a mentalidade do século passado.

    Um muito obrigada e votos de bom fim - de - semana,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Obrigada por isso da magia e pela tal visita matinal. Que eu possa sempre merecer palavras dessas.

      Gosto imenso das coisas boas que a tecnologia permite. Penso é que é extremamente frágil. A começar por uma coisa muito simples: se falha a luz, colapsa tudo. Nem é preciso ir mais longe. A nossa existência contemporânea é uma existência sem plano B, parece-me. Partimos do princípio que tudo funciona por via de uma máquina qualquer. E há aí uma espécie de dependência a que procuro fugir.

      Estamos sempre a mudar. Por vontade própria. Por imposições exteriores. Mas nunca somos os mesmos. Tenho uma relação muito pragmática com o passado: viro a página, mas nunca me esqueço. Sendo que isto dá para o bom e para o mau. Mas do que eu gosto mesmo é disto que acontece agora, enquanto estou aqui e respiro. Isso é que é. Ainda assim, olho para o futuro mais imediato que é este fim-de-semana, por exemplo e penso em todas as coisas boas que ele promete:) Assim seja.

      Um fim-de-semana lindo para si!

      Mar

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  5. Que lindo texto, Mar. E que belo lugar. Fez-me recorder um outro lugar onde também fui feliz. Uma casa também centenária aí pelas terras do Norte não muito longe do seu.
    Um fim-de-semana feliz.

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    1. Obrigada, Ana. Fico (sempre) tão feliz. É bom saber que as palavras, às vezes, fazem diferença.
      Este sítio é muito especial. Tive uma dificuldade enorme em dizê-lo porque só me pedia silêncio e porque gostei tanto de voltar lá. Mas tentei, que é o que interessa:)

      Bom que o Norte aqui perto signifique coisas boas na sua memória.

      Para si também. Um fim-de-semana feliz.

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  6. Que lugar bonito, Mar. Gostei muito das fotografias e do texto. E concordo contigo, eu também gosto de voltar onde fui feliz. Apesar de não podermos voltar a viver as mesmas situações, os mesmos momentos, podemos criar novas memórias e viver novos momentos felizes. É como se no fundo determinado lugar, fosse capaz de nos fazer felizes, uma vez, outra vez, e tantas outras vezes. E se há lugares assim... onde somos felizes sempre.

    Adorei a música, é tão bonita!

    Um beijinho grande para ti, Mar e um fim de semana cheio de lugares bonitos e de silêncios perfeitos, que por vezes nos fazem tanta falta.

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    1. Querida Cláudia,

      Desculpa-me só responder agora, que vi que escreveste há uns dias. Estive longe de computadores. Foi por isso. Não gosto nada que as palavras das pessoas fiquem a flutuar, como se não tivessem acontecido. Mas já cá estou:)
      Que bom que gostaste das memórias recentes deste sítio anterior. É bom ir renovando memórias. Isso das memórias pode ser como uma sala por abrir durante anos. Se não a abres, o ar não se renova. Fica ali tudo, como se fosse um compartimento estanque. Isso faz mal.
      Este sítio é muito bonito. Faz um bem difícil de dizer, aquele silêncio. Aconteceu comigo, pelo menos. Foi assim que aconteceu.

      Percebo isso da música:) também a acho muito linda. Mesmo que o nome seja a antítese do meu texto. Mas eu acho que a música electrónica tem um efeito muito pacificador. Uma espécie de silêncio.

      Um beijo grande para ti também. E muitas coisas lindas. Obrigada pelos teus bons desejos. Estavas certa.

      Mar

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    2. Não faz mal, Mar. Eu por vezes, também demoro a responder. Mas vou tentar melhorar isso ;)

      Que bom! Ainda bem que acertei :)

      Beijinho grande, grande, para ti

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    3. :) outro para ti. Uma boa semana!

      Mar

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