A(s) mãe(s).




















As mães são como o céu, o sol, a lua e as estrelas. Por isto: pensamos que estão sempre lá. Como quase sempre acontece com o que tomamos por certo, fazemos o que fazemos em relação ao céu, ao sol, à lua e às estrelas. Olhamos sem olhar mesmo. Porque estão sempre ao alcance do olhar, porque não (nos) falham, porque não (nos) desiludem, porque esses brilhos podem sempre ser remetidos para depois, para mais tarde. Porque lá está: estão sempre lá. As mães, o céu, o sol, a lua e as estrelas.
Há uns dias, fui ter com a minha mãe e convidei-a para almoçar comigo num sítio de que ela gosta muito. A lógica foi essa. Por isso, este texto tem dentro esse sítio. Mas, mais do que o sítio, ela. A alegria dela, quando a convidei para estarmos só as duas durante um dia inteiro. É que a minha mãe, como quase todas as mães, dá muito e não pede nada de volta. É que a minha mãe, como quase todas as mães, faz muita comida. E eu sei como é, porque sinto o mesmo. Quando fazemos muita comida, damos um valor difícil de dizer ao gesto aparentemente normal de sermos convidadas para almoçar ou para jantar. Por ser bem especial que alguém nos diga que, durante uma refeição inteira, tudo vai acontecer sem que tenhamos de intervir ou de interferir. Eu sinto assim. A minha mãe sente assim. Sem que isso diminua a alegria enorme de fazermos comida, de pormos uma mesa e de dizermos sem palavras que gostamos, que nos lembramos, que não nos esquecemos.
A minha mãe tem quatro filhos e sempre fez uma coisa que às vezes nos irritava um bocadinho. Especialmente durante a adolescência. Tempo complicado em que parece que tudo o que as mães dizem ou fazem está errado. A minha mãe arranjava sempre circunstância para estar a sós com cada um dos filhos. Não era um hábito de programa e não obedecia a um calendário estrito. Não íamos ao cinema ou a parques de diversões. Nada disso. As circunstâncias eram quase sempre imperceptíveis e implicavam quase sempre acordar (muito) cedo aos fins-de-semana ou nas férias. Daí a irritação de adolescente. Mas ela fazia assim na mesma. Ouvia os queixumes matinais sem dizer nada e sabíamos que não havia hipótese: era para fazer o que ela estava a dizer. Na altura, não percebia a razão pela qual ela fazia isso. Anos mais tarde, sim. E agora, ainda mais. Era uma questão de tempo. Era isso. Queria dar tempo a cada um dos filhos. Para falar. Para ouvir. Para interpretar os silêncios. Para saber o ponto em que cada filho estava. Explicou-me isto há uns anos, quando me disse para fazer isto com o meu filho. Tempo a sério e sem mais ninguém. Só nós os dois. Segundo ela, as mães têm sempre de falar com os filhos. Mesmo que eles não queiram falar nem queiram ouvir. Ainda assim, as mães insistem e procuram esse espaço de comunicação. Tenho feito assim com o meu filho. E, se tivesse mais filhos, faria também assim como ela fazia com cada um dos quatro filhos. 
Desta vez, quis que o caminho fosse feito ao contrário e partiu de mim. Daí querer passar um dia inteiro com ela. Daí querer almoçar com ela num sítio bem especial na nossa memória. Tínhamos estado ali juntas, voltámos lá. De vez em quando, complicamos aquilo que não é preciso complicar. E adiamos coisas que não devemos adiar. Com as mães, muito especialmente. Porque compreendem sempre. Porque acolhem sempre. Porque aceitam que outras coisas e que outras pessoas estejam à frente, mesmo que isso signifique que elas sejam adiadas. Aquilo de todas as coisas que brilham e que estão sempre lá. Porque as mães são o sempre e o nunca das nossas vidas, creio. O sempre de tudo o que é bom. O nunca de tudo o que é mau.
Tia Alice é um dos sítios preferidos da minha mãe. E só podia ser, que ela é uma daquelas cozinheiras. Irrepreensivelmente bom, este sítio. Nunca falha. Assim como as mães, tal como as imaginamos. A sopa no ponto certo de legumes, de consistência, de sal. O pão quente a vir para a mesa. E tanto, o bacalhau gratinado com camarões. E tanto, a vitela assada lentamente. E cada uma das sobremesas. Há uns bons anos que o Tia Alice é um dos meus sítios certos. Há uns bons anos que aquilo que nunca deve mudar num restaurante se mantém ao mesmo nível maravilhoso. A carta do Tia Alice é sempre a mesma. Nunca muda. Sabemos o que vamos encontrar e sabemos que vamos gostar muito de encontrar as coisas tal como estavam desde a última vez. E sim, volto sempre. Tal e qual como ao abraço da minha mãe. A vida que dê as voltas que entender, que eu e a minha mãe voltamos sempre uma à outra. E ao Tia Alice. Assim seja.
Fica o sítio de que eu e a minha mãe gostamos muito. O anjo por cima da nossa mesa. O céu desse dia. O nosso silêncio na arquitectura muito espiritual da basílica nova de Fátima. Apesar das nossas diferenças, creio que temos as duas a mesma religião: a do bem. Eu não cumpro os rituais nem os cerimoniais e não gosto de igrejas cheias e ela não se importa que seja assim. No final de tudo, apanhei do chão uma pedra pequenina, para juntar às outras todas que trago dos sítios. Ela riu-se e não disse nada. Porque sabe. Sem que seja preciso dizer nada. 

A música é esta. Era a que estava a acontecer, mal entrámos. E ela ficou feliz logo aí. Assim que ouviu a música do Out of Africa


9 comentários:

  1. Boa noite, Mar.
    Lindíssimo, este texto. Tocou-me muito. Fez muito bem em não adiar. Apesar das mães estarem sempre lá, não desperdice as oportunidades do abraço físico. Faz tanta falta.
    Um beijo e votos de um feliz dia da Mãe para si e para a sua Mãe.
    Ana

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  2. Boa noite, Mar.
    Lindíssimo, este texto. Tocou-me muito. Fez muito bem em não adiar. Apesar das mães estarem sempre lá, não desperdice as oportunidades do abraço físico. Faz tanta falta.
    Um beijo e votos de um feliz dia da Mãe para si e para a sua Mãe.
    Ana

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    1. Olá Ana,

      Não desperdiço. Acredite que não. Já muitas pessoas (me) desapareceram, para que caia no erro de tomar isto tudo como certo. Nós. Os outros. Talvez por isso vá tanto ao limite, na maneira como gosto (muito) das pessoas. Só desapareço se/quando me disserem para desaparecer, para deixar de estar. A finitude é um paradoxo. Pode fazer com que vivamos com mais intensidade. Ou não. Nós é que escolhemos.
      Obrigada a si, por ter gostado de ler.

      Um dia das mães maravilhoso para si. Muitos dias maravilhosos para si.

      Um beijo.

      Mar

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  3. Que dia feliz deve ter sido. Desejo-lhe muitos mais com a sua mãe.

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    1. Muito, muito feliz. Foi a primeira coisa que a minha mãe me disse, no e-mail que me escreveu, logo depois de ter lido este post-surpresa. E sim. Muitos mais. Para si também. Um abraço grande, Ana. Obrigada.

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  4. Que lindo Mar, lindo o texto, lindo esse amor. De mãe, e de filha. Que transparece tanto nas tuas palavras. Achei tão, mas tão maravilhoso, a tua mãe passar um bocadinho com cada filho, querer ter esse tempo com cada um... Há gestos, atitudes, que são amor, mesmo que na altura não nos apercebamos disso. E a minha mãe, também é mãe de 4 ;) Somos dois rapazes e duas raparigas :)

    Um beijinho muito grande para ti, espero e gostava muito, que os dias difíceis já tenham ido para bem longe... E desejo que hoje tenhas tido (estejas a ter) um dia da mãe cheio de momentos bonitos e de coisas boas. Tu mereces ❤

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    1. Obrigada, Cláudia. Quanto carinho. Não acredito em adquiridos nem em relações "porque sim". A começar pelas relações familiares. Sei bem do que falo, por motivos que não interessam para aqui. Mas o amor da/pela minha mãe é sagrado. Haja o que houver. É uma mulher maravilhosa, a minha mãe. Arranja sempre esse tal tempo. Ainda hoje o faz. Percebemos todos sem palavras. Nós somos 3 raparigas + 1 rapaz:)
      Foi um dia lindo e cheio de sol. Só falei ao telefone com a minha mãe, que ela passou o dia numa manifestação do 1º de Maio. Dei-lhe o meu presente ontem e dou-lhe o meu amor todos os dias. Sabia que seria assim.

      As coisas difíceis estão muito longe daqui. E de mim. Um beijo grande para ti, querida Cláudia. Também tu mereces muitas coisas boas. Muitas.

      Mar

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  5. Ohhh muito obrigada, Mar ❤ E fico muito contente por saber que foi um dia lindo e cheio de sol ;)

    É bem verdade, da família esperamos tudo de bom. É o nosso núcleo, mas por vezes existem relações familiares muito complicadas... E é muito complicado quando nos desiludem... Porque nunca esperamos, porque magoa muito mais do que qualquer outra pessoa, por isso mesmo, por serem família. Infelizmente, sabemos as duas, do que falamos... Mas há também quem nos faça sorrir, quem nos faça sempre sentir em casa e é a isso que nos temos que agarrar, não é... a essa família. :)

    Um beijinho muito grande para ti e uma excelente semana.

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    1. Querida Cláudia,

      Claro que sim:) Muitos e muitos sorrisos e andar para a frente. Mais fortes, mais lúcidos, mais densos. O sentido é esse. Só pode ser.

      Um beijo grande para ti também e uma semana linda!

      Mar

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