Segundo os meus cálculos e cuidados prévios, este seria o Inverno em que eu não teria uma daquelas gripes. Daquelas bem devastadoras, que nos arrasam, feito tempestades sem aviso prévio. Daí a frase-mantra. Não este Inverno. Todos os dias de manhã, interiormente contente por me lembrar de tomar vitaminas e sempre que me lembrava de usar cachecol e de almoçar como as pessoas normais. Este Inverno, não. E sim. Na mesma e apesar de todas as vitaminas e cuidados e mantras.
A vida tem maneiras estranhas de restabelecer a ordem das coisas. Umas vezes, conspira de forma imperceptível. Mal notamos que há coisas a acontecer, coisas a mudar. Em nós. E nos outros. Outras vezes, arrasa com tudo e volta a baralhar as cartas e a (re)começar o jogo, de acordo com os seus desígnios. Durante o tempo em que nos sentimos últimos num mundo de primeiros, tudo parece estar envolto numa espécie de névoa. Nós e tudo o que somos/fazemos/acontecemos. Custa respirar o mundo. Como se o gesto mais simples fosse uma batalha que sabemos antecipadamente que vamos perder por muito. Mas, lá está, a vida tem mesmo maneiras estranhas de restabelecer a ordem das coisas. Porque, a seguir a cada queda episódica, a energia e o olhar são renovados. Não sabemos bem como, mas é isso que acaba por acontecer. E então, tudo parece uma pequena vitória. Acordarmos e não nos sentirmos tão últimos e retomarmos aquele espírito que não calibra as coisas nesses termos de últimos e de primeiros. Acordarmos e percebermos que voltámos a sentir os cheiros e os sabores por inteiro. E que a tal névoa desapareceu, porque numa conspiração (linda) da vida, o dia de todos esses acontecimentos insignificantes, é mesmo de sol e de céu azul. E que a noite vai (finalmente) permitir ver a lua cheia e os cinco planetas que por estes dias estão alinhados de uma maneira especial. Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. Os cinco visíveis. Os cinco na mesma direcção. E saber que há dez anos que não acontecia isso. E que conseguimos olhar-nos ao espelho sem nostalgia do que fomos, antes de sermos cilindrados por mais uma gripe. Mesmo que tenhamos dito que não, que não iria acontecer. Não este Inverno. Porque estávamos a fazer tudo bem. E a noção de que nem sempre adianta fazer tudo bem. Que isso não nos salva necessariamente. Para memória futura, a ver se também não me esqueço disso.
Mas o território onde aquilo das pequenas vitórias tem qualquer coisa de extraordinário, é mesmo nisto de fazer comida. A minha energia que parece (quase) sempre inesgotável, aplicada aos temperos e às texturas das coisas e à forma maravilhosa como as cores se juntam sempre. É aí nesse campo. Sem que seja uma questão de ganhar ou de perder. De se ser último ou primeiro. E a única prova que interessa dar, é a de saber bem. De perceber que uma certa conjugação de ingredientes sabe mesmo bem. E que isso faz com que a vida, quando vivida em pleno, por inteiro, seja uma batalha maravilhosa. Mesmo com todas as suas intermitências e quedas e fragilidades e todos os momentos em que percebemos que não somos suficientes. Que somos seres que sangram e que caem e que choram e que se sentem insuficientes como em nenhum livro de receitas. Ainda assim, podemos contribuir sempre com um verso, como no poema de Walt Whitman. The powerful play goes on. Que continue, a tal peça poderosa. Hoje, deixo este verso pequenino e imperceptível. A receita de uma massa que assinalou o final de mais uma intermitência de Inverno. O céu de dia. O céu de noite. Um vinho branco que é inesquecível como um (bom) vinho tinto E este livro. Um ensaio sobre a psique política e sobre as suas premissas contemporâneas. Tónico, este livro. Tal como a filosofia deve e pode ser tantas vezes. Tónica também, esta receita.
Spaghetti com legumes salteados, gengibre e vinagre de arroz
NB: O uso de pepinos pequenos não é por preciosismo estético. Faz diferença em termos de textura e de sabor. Caso não se consiga esta versão, basta cortar um pepino (médio) em palitos uniformes. Também é fundamental o vinagre de arroz. Nenhum outro tem o mesmo efeito. Eu sei porque já experimentei:)
250 g de spaghetti + 3 dentes de alho + 10 cogumelos marron + 10 pepinos pequenos (consigo encontrá-los com facilidade no Lidl e também no supermercado do El Corte Inglès) + 1 colher (de sobremesa) de gengibre ralado + azeite, sal, nozes picadas, molho de soja e vinagre de arroz q.b.
Primeiro, coze-se a massa em água quente, sal e um fio de azeite. Enquanto isso, a parte linda de cortar os legumes. Depois, numa sertã larga, um fio de azeite e os dentes de alho (picados e com um pouco da casca). Durante uns segundos, deixa-se que as coisas aconteçam entre o azeite e os alhos. A seguir, junta-se os cogumelos e os pepinos, salpica-se com um pouco de sal e a primeira fase de vinagre de arroz. Envolve-se bem, durante mais uns segundos. Depois, molho de soja e mais uns segundos, a envolver. Mais azeite, se necessário. Assim que a massa estiver cozida, transfere-se de imediato para a sertã, com a ajuda de uma escumadeira. Envolve-se bem a massa, acrescenta-se o molho inglês que entendermos e mais azeite e vinagre. Quase a terminar, o gengibre. Envolve-se mais uma vez e prova-se. Se necessário, mais sal e mais dos outros temperos mágicos. Já no prato, umas nozes picadas grosseiramente.
A música é do rock meio psicadélico dos Tame Impala, mas numa cadência suave.
Mas o território onde aquilo das pequenas vitórias tem qualquer coisa de extraordinário, é mesmo nisto de fazer comida. A minha energia que parece (quase) sempre inesgotável, aplicada aos temperos e às texturas das coisas e à forma maravilhosa como as cores se juntam sempre. É aí nesse campo. Sem que seja uma questão de ganhar ou de perder. De se ser último ou primeiro. E a única prova que interessa dar, é a de saber bem. De perceber que uma certa conjugação de ingredientes sabe mesmo bem. E que isso faz com que a vida, quando vivida em pleno, por inteiro, seja uma batalha maravilhosa. Mesmo com todas as suas intermitências e quedas e fragilidades e todos os momentos em que percebemos que não somos suficientes. Que somos seres que sangram e que caem e que choram e que se sentem insuficientes como em nenhum livro de receitas. Ainda assim, podemos contribuir sempre com um verso, como no poema de Walt Whitman. The powerful play goes on. Que continue, a tal peça poderosa. Hoje, deixo este verso pequenino e imperceptível. A receita de uma massa que assinalou o final de mais uma intermitência de Inverno. O céu de dia. O céu de noite. Um vinho branco que é inesquecível como um (bom) vinho tinto E este livro. Um ensaio sobre a psique política e sobre as suas premissas contemporâneas. Tónico, este livro. Tal como a filosofia deve e pode ser tantas vezes. Tónica também, esta receita.
Spaghetti com legumes salteados, gengibre e vinagre de arroz
NB: O uso de pepinos pequenos não é por preciosismo estético. Faz diferença em termos de textura e de sabor. Caso não se consiga esta versão, basta cortar um pepino (médio) em palitos uniformes. Também é fundamental o vinagre de arroz. Nenhum outro tem o mesmo efeito. Eu sei porque já experimentei:)
250 g de spaghetti + 3 dentes de alho + 10 cogumelos marron + 10 pepinos pequenos (consigo encontrá-los com facilidade no Lidl e também no supermercado do El Corte Inglès) + 1 colher (de sobremesa) de gengibre ralado + azeite, sal, nozes picadas, molho de soja e vinagre de arroz q.b.
Primeiro, coze-se a massa em água quente, sal e um fio de azeite. Enquanto isso, a parte linda de cortar os legumes. Depois, numa sertã larga, um fio de azeite e os dentes de alho (picados e com um pouco da casca). Durante uns segundos, deixa-se que as coisas aconteçam entre o azeite e os alhos. A seguir, junta-se os cogumelos e os pepinos, salpica-se com um pouco de sal e a primeira fase de vinagre de arroz. Envolve-se bem, durante mais uns segundos. Depois, molho de soja e mais uns segundos, a envolver. Mais azeite, se necessário. Assim que a massa estiver cozida, transfere-se de imediato para a sertã, com a ajuda de uma escumadeira. Envolve-se bem a massa, acrescenta-se o molho inglês que entendermos e mais azeite e vinagre. Quase a terminar, o gengibre. Envolve-se mais uma vez e prova-se. Se necessário, mais sal e mais dos outros temperos mágicos. Já no prato, umas nozes picadas grosseiramente.
A música é do rock meio psicadélico dos Tame Impala, mas numa cadência suave.
Ainda bem que já está a passar... eu por mais gengibre, açafrão das Índias e limão que misture em receitas várias, não escapo a duas por ano pelo menos :)
ResponderEliminarmas não venho aqui esgrimir achaques, antes dizer que fiz algo muito parecido este fim de semana onde em vez dos pepinos (pequeno ódio de estimação) usei espargos que tinha congelado da época da abundância. Ficou mesmo bom, aliás, a massa com qualquer coisa nunca desilude.
E vim também perguntar se a Mar se importa que use a sua receita da tarte de amêndoa , tal e qual, no meu blogue pois já a fiz várias vezes, cada uma com cem por cento de adesão por parte dos que a saborearam
Olá, Maria
EliminarFaz parte. Também tive imensos cuidados que, agora, só me parecem irónicos. Mas já estou bem melhor:) E sim, as massas têm qualquer coisa. Alegria e conforto imediatos. Sem grandes elaborações.
Claro que não me importo. E agradeço o seu cuidado. Essa tarte de amêndoa é uma daquelas delícias. Faço-a tantas vezes, para atender a tantos pedidos amorosos:) Fico bem feliz por saber que é tão gostada.
Uma boa semana para si.
Mar
Já me tinhas falado destas tuas gripes arrasadoras. Fico feliz por saber que já estás bem. Apesar de este ano, por enquanto, ter escapado, recordo-me bem desta sensação boa de nos reerguermos. Sentimo-nos ressuscitar e damos ainda mais valor às rotinas simples de todos os dias.
ResponderEliminarUm beijo grande para ti. Take care :)
Ilídia
Estou bem, sim. Estes e outros episódios fazem com que a normalidade seja ainda mais extraordinária. As tais rotinas e todas as pequenas coisas das rotinas.
EliminarObrigada. Sim, estou a tomar conta de mim:)
Um beijo.
Mar
Boa noite, Mar.
ResponderEliminarFico feliz por saber que já superou mais uma partida do Inverno. E que voltou com os sentidos apurados, como sempre. Uma receita a experimentar.
Continuação de dias repletos de saúde.
Bjs
Ana
Olá Ana,
EliminarSim, o Inverno (também) tem destas coisas. Estranhamente, sempre com essas consequências de apurar aquilo que é bom. Esta massa é bem especial. Foi o que me apeteceu fazer, mal recuperei:)
Dias repletos de saúde para si também. Obrigada.
Mar
Boa noite, Mar.
ResponderEliminarFico feliz por saber que já superou mais uma partida do Inverno. E que voltou com os sentidos apurados, como sempre. Uma receita a experimentar.
Continuação de dias repletos de saúde.
Bjs
Ana
O Inverno e as suas partidas... Parabéns pelo texto tão, mas tão bonito, que tive o prazer de ler aqui e reler novamente (parte) na partilha, do às 9 no meu blogue ;)
ResponderEliminarDias bonitos para ti, um beijinho grande
Obrigada, querida Cláudia. Tão bom que tenhas gostado. E sim, a Sofia tem sido de uma generosidade muito bonita, nessas partilhas.
EliminarDias lindos para ti, aí longe! Um beijo grande.
Mar