Wanderlust.




















Creio que cada um de nós terá um glossário íntimo. Palavras que tomamos quase como organismos vivos. Gostamos de as dizer. Pensamos nelas e elas são logo as coisas e as pessoas e os lugares e os dias. Como em quase tudo o que é íntimo, não há uma lógica determinada. Até pode haver coordenadas mais ou menos prévias. Mas creio que são quase sempre maravilhosamente ilógicas.
Lembro-me bem da primeira vez que li esta palavra. A grafia. A justaposição de duas palavras lindas por si só, mas ainda mais assim. Juntas, mas sem perderem a integridade: wander + lust. O som, primeiro. E tanto, o significado, mal procurei no dicionário. Segundo essa entrada primeira, a palavra dizia respeito a um desejo intenso de ir. A ideia era a de ser algo à flor da pele. Constante. Determinante. E, muito importante, um ir sem angústia. Um ir concentrado no prazer imenso de ir. Creio que na altura em que coincidi pela primeira vez com esta palavra, não terei percebido logo qual seria o lastro. Vou percebendo à medida que o tempo e que os lugares vão passando. É bom que as palavras nos deixem margem e fôlego para o mais de tudo que nós quisermos. 
Dos lugares, quero  poder estar lá. Dou-me por contente por poder respirá-los. Caminho-os de uma maneira muitas vezes aleatória e sempre apaixonada. Há neles sempre um significado qualquer. Umas vezes consigo antecipá-lo. Outras vezes, não. Umas vezes são lugares de primeira vez. Umas vezes são lugares de muitas vezes. E sempre a sensação de que nós não conhecemos nada. Ir a um sítio não é conhecer esse sítio. Sabê-lo mesmo, digo. Mas nada pode mudar ou diminuir o termos acontecido numa determinada geografia, num tempo determinado. Nada pode mudar isso. Porque já aconteceu. Já foi. E isso é tão serenamente avassalador. 
Este lugar é um daqueles lugares de muitas vezes. Estive em Santiago de Compostela em outros contextos anteriores a este. Mas este contexto tinha um sentido novo. Uma viagem dentro de uma viagem. Interior. Silenciosa. E um bocadinho tempestuosa, também. O imprevisível dos caminhos que escolhemos, suponho. Bom assim, que as sucessivas encruzilhadas dos nossos caminhos nos lembrem sucessivamente que teremos sempre de lidar com o imprevisível e que isso faz parte do jogo. 
Compostela é um lugar tão independente da religião, apesar de tudo. Aquilo que sinto sempre é que há tantas ressonâncias pagãs. Há pequenos deuses por todo o lado e podem assumir a forma de duendes ou de elfos, num fôlego de imaginação de criança à solta. É o destino de muitas e muitas peregrinações. Mesmo que o destino último seja o Cabo Finisterra. No Inverno, é um lugar quente-frio. Estamos sempre naquele contraste. Queremos o frio dos caminhos e das vielas. Mas ansiamos também por passar uma porta que nos aqueça por dentro e por fora. Queremos a lã das camisolas e o algodão de uns lençóis, quando cai a noite. E o livro que seguiu viagem connosco, à espera das noites frias de Compostela. E comida e vinho substanciais. Tanto, disso. 
Nesta página, as paredes medievais do Hotel dos Reis Católicos. A comida maravilhosamente honesta do restaurante dessas paredes medievais, a que se regressa como a uma casa que nos (re)conhece. E fragmentos com significados mais ou menos silenciosos, mais ou menos partilháveis. Nesta página, a luz nocturna de Compostela. E um bocadinho da chuva e do frio e do verde do caminho. Nesta página, o caos maravilhoso de uma livraria muito especial, a Follas Novas. Nesta página, páginas sobre um dos meus viajantes preferidos, a propósito das dissoluções biográficas e da liberdade com que viaja pela vida. Viajo tanto, de cada vez que assisto a este programa da CNN. Viagens de sexta-feira à noite, com chocolate quente, com mantas e sofá. Também nesta página, geografias que eu (ainda) não conheço, oxigénios que eu (ainda) não respirei, páginas biográficas que (ainda) não escrevi. Este sítio. E este. Tanto(s) mundo(s), nesses sítios, nessas pessoas. São assim como a tal palavra do título: dão vontade de ir. Só por isso de ir. E eu acho que é mesmo assim que faz sentido. 

NB: Deixo a morada da livraria Follas Novas: C/Montero Ríos, 37. Mais a referência de dois sítios no perímetro da Catedral: este para dormir e este para comer. Esta loja de chapéus. E este café tão bonito. 

E esta música. Porque a ouvi durante esta viagem e porque tem uma energia boa. Ideal para desejar bom fim-de-semana:) 



10 comentários:

  1. Bom dia, Mar. Bom domingo.
    Também eu gosto de ir, e de me sentir em Santiago de Compostela. De me demorar nas ruas e na catedral. E, agora, depois deste maravilhoso texto (que bela maneira de eu começar um domingo. Obrigada.) estou com vontade de lá voltar.
    Um óptimo fim de semana.
    Bjs
    Ana

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  2. Bom dia, Mar. Bom domingo.
    Também eu gosto de ir, e de me sentir em Santiago de Compostela. De me demorar nas ruas e na catedral. E, agora, depois deste maravilhoso texto (que bela maneira de eu começar um domingo. Obrigada.) estou com vontade de lá voltar.
    Um óptimo fim de semana.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa tarde, Ana

      É um daqueles lugares a que se regressa sempre. Independentemente das motivações/religiões. Obrigada por ter gostado desta maneira de dizer Santiago de Compostela. E por essa vontade de voltar lá. Ainda bem que sim.

      Um bom domingo para si também. Um beijo.

      Mar

      PS: A manta de que gostou no post anterior foi comprada em Aveiro, numa loja que já não existe. Mas é lã nacional, de uma empresa de Manteigas que se chama Sotave. As mantas mais quentinhas vêm sempre da Serra da Estrela:)

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  3. Caramba, Obrigada! Ainda só ia no início, não sabia da honrosa referência, e estava a pensar: Tenho de partilhar isto. Agora sinto-me "intimidada", não quero que soe a um troca por troca, mesmo sabendo que nenhuma de nós acharia isso e é a única coisa que importa. Por isso vou transcrever este texto para o meu caderno das coisas bonitas. Não o quero só em suporte digital.
    Mas acima de tudo sinto-me emocionada. muito emocionada.
    pela referência, mas principalmente por conseguires colocar em palavras de uma forma tão direta e bonita aquilo que demoraria horas a tentar transmitir. chegando ao fim com a sensação de ter metido os pés pelas mãos e olhar para uma cara confusa, "Não percebi nada do que estavas a tentar dizer, mas valeu o esforço".
    Glossário intímo. É isso. Duas palavras tão simples. É exatamente isso.
    Em relação a Compostela, é isso. Caramba, é exatamente isso. Estou a repetir-me, mas este "na mouche" deixou-me de lágrimas nos olhos. A primeira vez que fui lá, adorei. Mas na segunda cheguei a pé, pela mão de um dos caminhos de Santiago. Foi intenso, silencioso e muito independente da religião. Não leio Compostela sem sentir um arrepio bom de reconhecimento na espinha. Tão especial. Tão íntimo.

    Doce Mar, Obrigada!

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    1. Adoro o teu sítio cheio de viagens. E reconheço-me muito na maneira como pareces viajar. Nos detalhes das imagens. No que (não) dizes. Os meus caminhos têm tanto de não dito, de silencioso. Como esta viagem com uma viagem dentro. Íntima como o tal glossário, essa viagem.
      Fico feliz por teres gostado. Mesmo muito. E não te sintas intimidada nem é preciso esse registo de "troca por troca":) Eu prezo muito a liberdade. A minha e a dos outros. É assim que faz sentido. Na vida lá fora e aqui neste espaço.
      Gosto tanto de Compostela. Uma mística muito particular. E está por todo o lado. Pelos caminhos verdes, pelas ruas, na música tão celta. No Inverno, ainda mais. Hei-de lembrar-me sempre do frio destes dias finais do ano.
      Quero fazer um desses caminhos. Os meus irmãos mais novos e a minha mãe fizeram o caminho até lá por duas vezes. Eu nunca me senti capaz. Mas esta viagem última fez-me perceber que sim, que talvez seja capaz:) Uma das muitas coisas boas em que gosto de pensar, essa viagem.

      Obrigada a ti, doce Mafalda. Também por isso de guardares o texto num "caderno das coisas bonitas".

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  4. Boa tarde, Mar.
    Obrigada pelo cuidado e carinho na procura da origem da manta de que tanto gostei.
    Boa semana.
    Bjs
    Ana

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  5. Boa tarde, Mar.
    Obrigada pelo cuidado e carinho na procura da origem da manta de que tanto gostei.
    Boa semana.
    Bjs
    Ana

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    1. De nada, querida Ana. Foi com esse carinho, sim. O carinho que a Ana (me) merece.

      Uma boa semana para si também. Obrigada.

      Mar

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  6. Ai querida Mar, que texto maravilhoso. Palavras que me tocaram tão fundo... Estas "A ideia era a de ser algo à flor da pele. Constante. Determinante. E, muito importante, um ir sem angústia. Um ir concentrado no prazer imenso de ir." e estas "Ir a um sítio não é conhecer esse sítio. Sabê-lo mesmo, digo. Mas nada pode mudar ou diminuir o termos acontecido numa determinada geografia, num tempo determinado. Nada pode mudar isso. Porque já aconteceu. Já foi. E isso é tão serenamente avassalador." ♥♥♥
    E muitíssimo obrigada pela referência, no meio de palavras tão bonitas :))
    (e a primeira foto, adoro!)
    Um beijinho*

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    1. Fico bem feliz por teres gostado. E obrigada, querida Ana. Por estas palavras aqui. E pelo teu lugar com lugares dentro. Respira-se o mundo inteiro, lá.
      Também é a minha fotografia preferida:) Sintetiza bem a palavra, creio. Guardo imagens destas há anos. Tiradas de dentro do carro. Mesmo que sejam muito imperfeitas e tudo o mais. Uma espécie de colecção.

      Um beijo. Obrigada outra vez.

      Mar

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