Chegar ao ponto.

















Há muito que a receita que fica hoje devia fazer parte destas páginas. Mas creio que há alegrias que precisam de ganhar densidade, depósito. É como decantar um vinho especial, num paralelismo possível. Então, decantada essa alegria, creio que é este o momento. 
A parte da alegria carece de explicação e tem que ver com o facto de sentir que nunca tinha acertado verdadeiramente no ponto, nisto dos peitos de pato. Digamos que as minhas versões até aqui estariam no domínio do aceitável. A questão é que eu acho que a comida deve fazer com que sintamos coisas extraordinárias. E como as nossas narrativas irrepetíveis são feitas de momentos sublimes nascidos de comida simples. Tantas e tantas memórias sublimes, a partir de ingredientes humildes, de procedimentos elementares. Por isso, sim. Queria que o sublime acontecesse um bocadinho, depois de servir peitos de pato. Levou tempo. Mas creio que cheguei ao tal ponto. 
Aquele silêncio. É aquele silêncio que diz tudo, quando servimos a comida. São só uns segundos, mas são a alma da comida. Tudo bem que depois vem a parte da verbalização. E eu gosto igualmente dessa parte. Mas aquele início é-me muito. Porque é algures naqueles segundos que eu sinto que as coisas encontraram os seus lugares. Que fazem sentido. É aí que se sente que as coisas se pertencem umas às outras. 
Até chegar a esta alegria, umas desilusões. Mas foram-me fundamentais. Ajudaram-me a perceber que, nesta peça de carne, é importante abdicar da pele e das (muitas) gorduras que liberta. Tentei tanto fazer como diziam as receitas, mas um dia fartei-me de ver aquela gordura a arruinar o meu tempero, em vez de o sublimar. E retirei-a por completo. A partir daí, o meu tempero pôde transformar-se sempre num molho aveludado, feito com os sucos da carne e não com aquela gordura a flutuar e a "desligar" os elementos. A partir daí, percebi quais eram mesmo os ingredientes. Os processos. Os tempos. São estes que deixo hoje, junto da mesa onde esta comida foi servida, associada a um dos vinhos de que mais gosto. Este. E com imagens aleatórias da minha alegria sozinha, por não ter resistido a compor uma espécie de prato para mim, na tábua onde tinha fatiado a carne. E sim, a receita é com a minha alegria dentro, na fé de que dê mais alegria a outras mesas. 

Peitos de pato com cognac, laranja e xarope de ácer
NB1: As quantidades desta receita são as ideais para duas pessoas. Devem adaptar-se, de acordo com o número de pessoas para quem estivermos a cozinhar. 
NB2: Os tempos de forno e a sequência associada a esses tempos e às temperaturas são muito importantes. Foram precisos vários desastres, até que conseguisse acertar com isso tudo:) 

2 peitos de pato (generosos) + 1 copo de cognac + 4 dentes de alho (esmagados e com um pouco da casca) + 1 colher (de sopa) de molho inglês + 1 colher (de chá) de tabasco + sumo de uma laranja + 1 laranja (cortada em gomos) + 4 colheres (de sopa) de xarope de ácer (uso este) + 1 copo de água + 1 colher (de sopa) de Maizena (uso Express) + sal, azeite e pimenta preta q.b. 

Primeiro, retira-se a pele aos peitos de pato. Basta fazer deslizar a lâmina da faca numa das pontas, levantar ligeiramente e ir puxando com alguma delicadeza. Lava-se bem a carne e coloca-se no tabuleiro onde irá ao forno. Tempera-se com todos os ingredientes da sequência, excepto o copo de água, a laranja cortada em gomos e a colher de Maizena. Se tivermos tempo, deixamos tomar o gosto durante uma meia hora. Se não houver tempo, pode ir de imediato para o forno, que vai correr bem na mesma. Primeiro, deve estar durante 10 minutos a 210ºc. É neste momento que a parte de cima da carne vai ficar tostada. Depois, hidrata-se a carne com os sucos do tabuleiro e deixa-se estar mais 10 minutos, com o lume reduzido para os 180ºc. Retira-se, fatia-se consoante o nosso gosto e reserva-se. Entretanto, filtra-se o molho para uma caçarola e acrescenta-se o copo de água, para equilibrar os sabores, que estarão a precisar de ser suavizados. Deixa-se estar uns cinco minutos e prova-se, para ver se é preciso rectificar os temperos. Acrescenta-se a colher de Maizena, mexe-se e cobre-se de imediato a carne fatiada. Leva-se ao forno a 160ºc durante mais cinco minutos. Os sabores vão só ficar mais veludo, durante estes cinco minutos preciosos. Decorrido este tempo, retira-se do forno e acrescenta-se os gomos de laranja, sem nenhuma parte branca. Nesta altura do ano, costumo servir só com os espigos maravilhosos que significam que se está inequivocamente em Fevereiro. 

E este som. Com aquele quê rough de que gosto tanto. Gary Clark Jr. 




9 comentários:

  1. Nunca usei o Golden Syrup em comidas salgadas! É um dos produtos de eleição e tenho sempre uma generosa reserva de frascos ou latas que me vão chegando de Inglaterra, mas em salgados nunca usei. Lá está, sempre a aprender :)

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    1. Olá Maria,

      É, realmente, um ingrediente especial. A começar por ser a escolha do meu filho, em waffles e em panquecas. Em comidas salgadas, é maravilhoso. Parece acentuar as características boas das coisas. É assim com esta carne. E com uma outra que fiz para o jantar de Domingo e que há-de ficar aqui.
      Costumo comprar este xarope de ácer no supermercado do El Corte Inglès. Mas não havia esta marca, há uns anos. Nessa altura, deixei um pedido e passou a haver. Atenciosas e competentes, as pessoas que registaram que era bom que houvesse cá deste xarope que faz maravilhas doces e salgadas:)

      Uma boa semana.

      Mar

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  2. Bom dia, Mar.
    Demorei-me nas imagens! Só de olhar já ganhei vontade de fazer. A certeza, que se fizer tal e qual a descrição, não há erros. Obrigada pelo esmero que dedica a cada receita, pelo tempo que demora a contabilizar os minutos precisos, para que, deste lado, tudo dê certo. É um acto de amor cozinhar, mas é sem dúvida, um acto de grande generosidade a maneira poética, mas precisa, como partilha. Bem haja.
    Obrigada.
    Continuação de boa semana.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Obrigada por essa demora. E pela generosidade carinhosa das suas palavras. Guardei-as. Fez-me um bem enorme, lê-la. Hoje foi um daqueles dias em que me senti a quebrar. De vez em quando, sentimo-nos só insuficientes.
      A comida que fica aqui significa felicidade, alegria. É comida que é servida, vivida várias vezes, antes de ser fotografada e descrita. Acarinho muito esse património frágil. E depois disso tudo ficam aqui, as coisas. Para que corram bem, sim. Daí o meu cuidado e o meu respeito por quem me lê. Não faria sentido ser de outra forma. Para mim. Convém fazer sempre esta ressalva, que há muitos entendimentos sobre as mesmas matérias. O meu é este.

      Bem haja a si. Sempre gostei desta expressão. Obrigada por usar esta formulação. Tem qualquer coisa de maternal.

      Um beijo.

      Mar

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  3. Bom dia, Mar.
    Demorei-me nas imagens! Só de olhar já ganhei vontade de fazer. A certeza, que se fizer tal e qual a descrição, não há erros. Obrigada pelo esmero que dedica a cada receita, pelo tempo que demora a contabilizar os minutos precisos, para que, deste lado, tudo dê certo. É um acto de amor cozinhar, mas é sem dúvida, um acto de grande generosidade a maneira poética, mas precisa, como partilha. Bem haja.
    Obrigada.
    Continuação de boa semana.
    Bjs
    Ana

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  4. Que bom que esta receita chegou a este ponto. Tal como a Ana, agradeço o teu cuidado e o carinho com que nos entregas as tuas receitas. Foi assim ontem, com o teu frango com mostarda, o teu arroz de molho inglês e o teu bolo de chocolate, coco e laranja. Fizeste uma família feliz. A minha ;) Obrigada mais uma vez ;)
    Babette

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    1. Olá Babette,

      Essas três coisas já são tuas e da tua família. Aconteceram aí, mesmo que tivessem começado aqui. E é bem lindo, pensar nestes termos. Fico muito feliz com coisas dessas. Tu sabes. Obrigada a ti, por essa enumeração carinhosa.

      Um beijo.

      Mar

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  5. A imagem deste pato é daquelas que têm aquele efeito de nos apetecer ir a correr para a cozinha. Imagino a delícia deste molho aveludado. Realmente, ao ler a receita, percebe-se que a gordura da pele não faça muito sentido. Um dia, experimento fazer pato sem a pele, numa versão assim como esta. Mas vou guardar a gordura para assar batatas :)
    Imagens lindas, caseiras, de conforto feliz.

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Olá Ilídia,

      É uma delícia que dá felicidade, aqui. Curioso, que quando fiz isto pela primeira vez, antecipei uma comida alternativa para o meu filho, por pensar que ele não iria gostar. Foi tão ao contrário:) Eu não uso a gordura desta parte do pato por achar que é demais. Como em muitas outras coisas, é uma questão de gosto. Não acho piada ao sabor em si nem ao que faz aos outros sabores.
      Conforto quietinho, sereno. Tem sido muito bom, o meu/nosso tempo de casa. O Inverno é uma altura maravilhosa.

      Um beijo.

      Mar

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