Quando um restaurante é muitas coisas.


Há uns dias, uma vontade enorme de ir à Casa Aleixo, no Porto. Mais especificamente dos filetes de polvo da Casa Aleixo. Porque este é um daqueles lugares. Um daqueles lugares onde se vai porque se teve uma motivação específica como a minha. Acaba por ser vontade de tudo, ali. Da sopa que é como a de uma mãe. Dos bolinhos de bacalhau quentes, logo a seguir. Dos tais filetes de polvo com legumes salteados. E as sobremesas. Rabanadas todo o ano. Como se fosse possível ser Natal todo o ano. E a aletria. Fios cremosos a saber a canela. E a alegria do meu filho. Por ser um dos doces preferidos dele. O meu filho. Ele nem sabia. Mas aquele lugar é significativo por outros motivos que não os que são de comer. No fundo, a comida acaba por estar sempre ligada a outras coisas. A primeira noite que a mãe dormiu longe dele, faz agora dois anos. Era preciso saber se conseguíamos os dois estar longe um do outro durante a noite. Já tinha passado demasiado tempo. Já não era um bebé. Toda a gente dizia que sim. Que era bom sabermos estar longe um do outro. Aprendermos isso, ao fim de quatro anos. O jantar dessa noite foi ali. E eu era uma angústia só. Sempre a olhar para o telemóvel, à espera que me dissessem que tinha de ir embora. Mas não aconteceu nada disso. Aquela noite ensinou-me muitas coisas. Ensinou-me a saber que devemos dar espaço aos nossos filhos. Que podemos dizer-lhes que vamos ali um bocadinho. Mas que voltamos. Voltamos sempre dos sítios onde vamos só um bocadinho. E o carinho da senhora que me trouxe um doce, para acalmar a tal angústia. Não fique assim, menina. Ele está bem. Olhe mas é para o seu homem. A sabedoria das mulheres que já viram muito. E eu aprendi. Só de ouvir a voz despachada da dona Inês.
Desta vez não houve angústia. Ele foi connosco. Ao sítio que é significativo. Para nós, que estamos agora a viver. E para os que deixaram de existir. E assim, o meu filho conheceu o lugar onde o pai e o avô que já não está cá iam. Muitas refeições. Têm os três o mesmo nome. Mas não dá para os imaginar ali juntos. As três gerações. Mas deu para ver os dois de mão dada. À mesa da Casa Aleixo. E também para os imaginar aos dois. Ali sem mim. Numa daquelas coisas de pai e filho. E saber mais uma coisa nisto de ser mãe. Saber que esses espaços imperturbáveis devem ser respeitados. Com a distância carinhosa que pressupõe o amor. Porque o amor liberta. Não sei assim muitas coisas sobre o amor. E até acho que ninguém saberá. Mas sei que o amor liberta. Que sabe esperar. Por cada regresso. Uma espécie de amor que dá asas, acho. E que espera pacientemente que corra tudo bem.
Depois de almoço, um pedaço da infância do pai. As paredes que viram a infância do pai. Era importante que ele visse. Era importante que aquelas paredes ficassem aqui. E estão. Para não serem abstracções. E assim, também as paredes ficam aqui. Associadas às da Casa Aleixo.

NB: Ao contrário de mim, a minha máquina fotográfica é capaz de ser definitiva. Peremptória mesmo. Com um aviso nesse tom. Substitua a bateria. Daí as fotografias serem ainda mais amadoras do que o habitual. De telemóvel, numa solução de recurso. Daí pedir desculpa.

16 comentários:

  1. Muito bonitas as fotografias sem os pixeis todos, que me emocionam junto com o texto. Essa noção de liberdade e a partilha dos espaços para nos darem memória, memórias.
    Sem mais nada,
    um beijinho,
    da Pipinha

    ResponderEliminar
  2. Uma espécie de amor que dá asas. Querida Mar, que linda frase. Abrir os braços para deixar os filhos partir treina-se cedo na vida de Mãe. Deixá-los sempre abertos para que retornem uma e outra vez, parece fácil e olhe que é mesmo, é só escolher ser assim.
    Beijinho e boa semana.

    ResponderEliminar
  3. Mar,
    Que bonita memória, mãe e filho crescendo juntos...e as paredes do Aleixo com tantas estórias e histórias e que para mim são a memória do encontro com os amigos de sempre, aqueles que nos acompanham ainda que a distância espacial nos separe.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  4. Sei pouco da maternidade, destas coisas em que algumas de nós parecem ter certezas absolutas. Mas aprendi, desde o dia em nasceu a primeira, que elas não são minhas. E que são tanto mais felizes quanto mais autónomas de mim. O que não significa que estarmos juntas não seja a melhor coisa do mundo.
    Boa semana.

    ResponderEliminar
  5. Casa Aleixo é mais uma memória que partilhamos as duas. Como as idas a outros restaurantes no Porto, em Lisboa, em Fátima ou em Coimbra. Fragmentos que já existiram no tempo em que não nos conhecíamos, e que agora existem com a consciência plena de que ambas gostamos. As memórias que cada sítio traz são, contudo, muito diferentes. Os tais percursos de vida nossos e dos nossos. Que podiam não se ter cruzado. Mas que ainda bem que o fizeram... A imagem das mãos do Vasco e do António é um tesouro.
    Um beijo da tua,
    Babette

    ResponderEliminar
  6. Arrisco dizer que foi o texto mais comovente até agora, por envolver tantos sentimentos diferentes, pela foto deliciosa, por me rever (once again!) nele: a primeira noite que dormi longe da Leonor, bebé, dois anos apenas, mas tinha de ser, o casamento da melhor amiga, da irmã de coração, da alma gémea, no outro lado do país. Mas sim, "o amor liberta, sabe esperar"...

    ResponderEliminar
  7. Olá minha linda:

    Sempre tão generosa, a tua amizade. Tanto, que até gosta das minhas fotografias imperfeitas. Estas mais do que todas as outras. Mas sabes, gostei tanto de ver as mãos deles juntas. Imaginei-os sozinhos ali. Sem mim. E não fiquei triste nem nada. Achei lindo imaginar que o Vasco pode cumprir ali o ritual que costumava cumprir com o pai dele. Assim, é como se as pessoas não desaparecessem mesmo, acho. O pai do Vasco está nele. E agora no António. Os dois na Casa Aleixo. Deliciados com filetes de polvo e aletria muito cremosa:)

    Um beijo. Apetecia-me ir numa daquelas nossas saídas em busca de loiça. E casas de chá amorosas:)

    Mar

    ResponderEliminar
  8. Olá Lusitana:

    Penso assim. Que o amor que não faz alarido, dá asas. Liberta. Dá espaço. Mesmo sabendo que pode correr o risco de se precipitar. Ou de deixar de existir, em alguns casos que não estes de ser mãe. Mas ainda assim, o consolo de não termos aprisionado. Custou na altura saber dar asas ao amor pelo meu filho. Muda tudo, ser mãe. Deixamos de ser donos de nós. Eu até sei que continuo a ser eu. E que se não me faltar saúde, consigo ultrapassar tudo. Mas há este flanco enorme de fragilidade. Depois de saber que ia ser mãe. Estou a aprender, minha Lusitana. Sempre. Faz parte, creio. A ver se corre bem, a aprendizagem que não acaba.

    Um beijo de boa semana para si. Gosto de a imaginar tranquila. Como as palavras que aqui deixa. E que não me canso de agradecer.

    Mar

    ResponderEliminar
  9. Olá Carla:

    Reparei que sim. Que o Aleixo significa muitas coisas intangíveis para além da comida. Há lugares assim, não é? Que não precisam de muito mais. Comida honesta a fumegar. Acolhimento carinhoso e eficiente. E aquilo que cada um de nós leva consigo. Para lá. E depois de sair.
    Tem sido uma aventura incomparável, crescer com o meu filho. Cheia de momentos difíceis, que nesse capítulo não gosto de contar histórias. Não é fácil. Não foi fácil desde o início. Especialmente porque ele parecia não gostar nada da parte de dormir, quando era bebé. Os meus genes noctívagos a fazer efeito, muito possivelmente:) Mas passou. Há outras coisas agora. A ver se damos conta delas. Com a noção de que não sabemos assim muita coisa. Que é melhor não termos muitas certezas. Nem fazer grandes declarações. A vida que fale por si, que isso é o mais importante.

    Um beijo pelo comentário carinhoso.

    Mar

    ResponderEliminar
  10. Tão de acordo consigo. Desconfio sempre de mães absolutas. A minha intuição diz sempre que as certezas serão uma forma de inventarem narrativas para si. Ou de mitigarem inseguranças. Eu até posso não saber uma série de coisas. Mas sei que gosto de mães que dizem que falham. Que dizem que custa. Que dizem que não é fácil. Estou nesse registo. Por ser à medida da prudência discursiva que gosto muito de cultivar. E por não ser arrogante. Por não esmagar. Como me acontecia quando o meu filho não dormia. E eu perguntava às mães profissionais qual seria o problema. As respostas deixavam-me sempre sozinha. Invariavelmente, os filhos delas dormiam noites inteiras. A conclusão lógica é que eu estava a falhar como mãe. E isso deixava-me como disse: sozinha. Mas já passou, que arranjámos maneira de nos entender os dois. Pena é ter andado quase dois anos sem dormir:)

    Um beijo.

    Mar

    PS: Espero que tenha conseguido assistir à sessão com o professor Anselmo Borges. Eu sei que lamentei não poder ter estado. E agradeço a lembrança para o meu email.

    ResponderEliminar
  11. Ocorre-me muitas vezes que teremos coincidido nesses lugares. No Tia Alice. Em Amares. Nestes lugares de sempre nas nossas duas cidades de sempre. Curiosos os mecanismos da ordem da graça que fizeram com que coincidíssemos através de dois blogs de culinária. Ainda bem que sim. Que a vida me concedeu a dádiva de uma amiga como tu. Agradeço-a reiteradamente. Como se deve fazer com as dádivas.
    E sim. Um tesouro, aquelas duas mãos juntas. A evocarem sempre aquele dia de memórias recuperadas. O Vasco gostou daquela maneira muito dele. E de que eu gosto muito. Sem fazer barulho. Sem muitas declarações. Comoveu-se e pronto.

    Um beijo carinhoso.

    Mar

    ResponderEliminar
  12. Tu estavas sempre lá. De manhã cedo. A acolher-me. A dizeres que era normal algumas crianças não dormirem. Não me fazias sentir sozinha. Nunca hei-de agradecer o suficiente por teres estado lá. Nos nossos cafés (muito) matinais.
    E sei que sim. Que te custou muito. És uma mãe muito inteira. És muitas coisas juntas para a tua filha. E eu acho isso lindo. Obrigada por ti. Pela tua emoção cheia de generosidade e de carinho.

    Um beijo para as duas.

    Mar

    ResponderEliminar
  13. Há sítios assim. Que fazem parte de nós. Que linda a imagem dos seus homens de mãos dadas :) E sabe, a qualidade técnica das imagens é o que menos interessa. O importante é a sensibilidade que permite tirar fotografias dessas.
    Nunca dormi longe do meu filho. No meu caso, implicaria ter de apanhar um avião caso lhe acontecesse alguma coisa e eu não estivesse por perto. E acho que só de pensar nisso não conseguiria usufruir de nada. O mar é uma barreira muito forte. Penso que, daqui a uns tempos, tenho de fazer essa experiência. Faz parte. No entanto, não estou preparada. E acho que estas coisas não devem ser forçadas.
    Um beijo

    P.S.: Fico feliz que tenha gostado das imagens da minha terra. Terei todo o prazer em fazer-lhe uma visita guiada ;)

    ResponderEliminar
  14. Também é a de que gosto mais. A imagem das mãos deles juntas. Mesmo que seja uma fotografia cheia de imperfeições. Mas sim, está lá o que interessa, realmente.
    Entendo os seus temores. Mais ainda por isso de uma ausência implicar viagens de avião. Só o ano passado é que me atrevi a estar à distância de uma viagem de avião, num fim-de-semana em Madrid. Esta primeira noite fora foi calculada ao pormenor. Daí ter escolhido passar a noite no Porto. Na eventualidade de um telefonema agitado, estava aqui numa hora. Mas correu bem. Ele esteve sempre bem. A ser distraído e mimado por dois tios agitados. Que se encarregaram de o cansar:)
    E está certa em não forçar. Eu ignorei durante muito tempo os comentários das mães profissionais. Sentia que não era altura e pronto. Quando fosse, eu iria saber que sim. E aconteceu assim como eu sentia que estava certo.

    Um beijo.

    Mar

    PS: Eu sei que sim. Que os Açores hão-de acontecer por causa das minhas amigas rodeadas de água por todos os lados:)

    ResponderEliminar
  15. Tb adoro este sitio.
    Eu não imagino qd é que vou ter coragem de deixar a minha pequenina sozinha uma noite...ela tb acorda imensas vezes e eu ainda amamento por isso passamos a noite muito juntinhas..

    bjinhos

    ResponderEliminar
  16. Sei como é, Sandra. Mas vai chegar a altura em que vai saber bem ir. E depois voltar para a tua pequenina. Quando sentires que é a altura, há-de estar certo. Eu amamentei até aos dois anos. E é uma daquelas coisas mágicas. Goza muito cada uma das noites que passam muito juntinhas:)Sabes outra coisa? Ando com imensas saudades de um bebé:)

    Um beijo para as duas.

    Mar

    ResponderEliminar

AddThis