Mesa nocturna.


Tinha saudades de guardar mesas postas à noite. Apesar de saber que as imagens lá de fora ficam melhores. Mas creio que isso tem a ver com a minha falta de talento. Lá fora é mais fácil. Quase que não sou precisa para nada, que as árvores e a luz fazem o resto. Ainda assim, uma mesa nocturna. Num daqueles sábados inquestionavelmente de Inverno. Chuva por todo o lado. Chuva todo o dia. E o bom de estar aqui, quando é assim. De não apetecer outro lugar que não este. E preparar tudo com muita calma. Saber que cada gesto é ponderado. Talvez pela cadência da música nocturna. Não sei se foi por isso. Mas acho que a mesa nasceu da música. E da lembrança das naturezas mortas da Gulbenkian. A Perspectiva das Coisas à mesa, então. Com pássaros que não são a sério pousados em peças de fruta a sério. Não dava para ser de outra maneira, que os pássaros a sério não dão para estas coisas de naturezas mortas. Querem-se livres, as asas dos pássaros a sério. E as velas que há todas as noites. Em cada uma das mesas nocturnas. Por começar por aí todos os dias. Primeiro, acende-se as velas. Depois, vinho tinto num copo largo. E a música que há enquanto há cada um destes gestos que antecipam. Tudo o mais acontece depois de acontecerem estas três coisas. A luz de uma vela. Um copo de vinho. E a música. Foi assim com a mesa das naturezas mortas. É assim com todas as outras mesas. Por isto:

"Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma religião e uma política, para esse, o primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. "

Livro do Desassossego - Educação Sentimental
Bernardo Soares

Sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. É assim. É por aí. Não é mais do que isto. E assim, não é preciso outra religião que não esta. A religião das coisas mínimas. Que afinal são extraordinárias e desmedidas.

16 comentários:

  1. é também a que professo dedicadamente : ))

    lindo texto por dentro e por fora

    beijinhos, boa semana

    Jo

    ResponderEliminar
  2. Que bonita, esta tua mesa. Inspirada na Perspectiva das Coisas. E na tua capacidade de fazeres sentir essas coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. Sim. O elogio das coisas simples como velas, um copo de vinho, e música. Frutas de Outono na mesa com os objectos que te vão entrando na vida. E que misturas tão bem... que bem que ficam os pratos "novos" rosa com o azul das outras louças. E até aquelas duas borboletinhas brancas ficam bem... Sempre imaginei vê-las numa das tuas mesas brancas. Mas aí vens tu e subvertes. E fica tão bem ou ainda melhor! Os dióspiros são irresistíveis. Para mim, sabes que sim. E em bolo.... Morássemos mais perto e tinhas aí uma fatia, ou duas ou três ;)
    Um beijo de domingo à tarde.
    Babette

    ResponderEliminar
  3. Boa tarde Mar
    A perspetiva das coisas...natureza morta na Europa...aí está uma exposição que não queria perder.
    Adorei a sua perspetiva das suas coisas, geradora de uma diferente perspetiva da vida.Tão necessária nos tempos que correm...Precisamos mesmo de viver o que nos rodeia de outra forma...contra-corrente...para não nos afundarmos.
    Obrigada pela sua filosofia tão inspiradora. Depois de a ler e de a ver, fiqei mais tranquila e apeteceu-me correr a recriar as minhas coisas, dando-lhes momentos de vida nova fora do armário, preenchendo a mesa do jantar.De certeza, que vou também contagiar os meus!
    Obrigada por existir desse lado e sempre deste lado!
    Beijinhos
    Emília Melo

    ResponderEliminar
  4. Mar, isto parece telepatia :) No e-mail que lhe enviei hoje falo precisamente das coisas mínimas, insignificantes para alguns, importantíssimas para mim/nós :) Os nossos fins de semana foram parecidos. De casa. Com romãs e dióspiros :) O primeiro, numa salada, o segundo, num sumo saboroso, temperado com canela. E o vinho tinto também nunca falta :) Afinal, não é difícil ser-se feliz. Dar importância às "coisas mínimas" é um bom começo.
    Um beijo
    Ilídia

    ResponderEliminar
  5. Adorei o texto, adorei a mesa...
    A cria adorou os pássaros, que mesmo não sendo a sério, a cativou. Ainda hoje, naquela loja em que "os gatos nem sempre são pardos", que fica num Palácio iluminado e aquecido em Gelo :), agarrou-se a um veado, também não a sério, mas com um olhar tão real, que até eu fiquei apaixonada...embora deliciosamente envergonhada perante os empregados da loja, tal foi a cena da catraia... :))
    Beijos nossos ♥

    ResponderEliminar
  6. Vim espreitar! Saltei da Festa da Babette...
    Adoro mesas bem postas, como esta, onde há uma mistura de magia, de natureza e pássaros que cantam melodias...
    Parabens!
    Graça

    ResponderEliminar
  7. Querida Mar:
    Tudo lindo, lindo. A Mar surpreende. Veste a mesa e o texto de modos diversos cada dia e cria cenários inesperados, para bem dos seus leitores. Esta leitora é a que se vai habituando a vir desejar-lhe uma boa semana. Mais uma vez, por ser bom que nos queiramos bem uns aos outros.
    Beijinhos.

    ResponderEliminar
  8. Olá Jo:

    Uma religião plena de humanidade, esta que se professa dedicadamente. Fico feliz por registar que sim. Que está nisto das coisas mínimas extraordinárias.

    Um beijo de boa semana para si.

    Mar

    ResponderEliminar
  9. Olá minha Babette:

    As borboletas brancas que vieram das tuas mãos têm andado por aqui. Em mesas muito diferentes entre si. Mas sim, a ver se aquelas asas ficam ainda mais diáfanas numa mesa branca. Queria que fosse lá fora. Ainda bem que gostaste da minha mesa com "misturadas":) O António gostou dos pássaros. Mais ainda por saber que daqui a uns dias estarão na árvore de Natal. Anda a contar os dias. À espera do dia 1. E da magia das luzes e dos cristais.
    Esta parte do Livro do Desassossego é inesquecível. Recito-a de cor muito baixinho. Para nunca me esquecer da religião das coisas pequenas. É como digo à minha mãe. Que é a minha forma de prestar culto. Mesmo que não saiba bem a quê. Ao Deus das Pequenas Coisas. Sempre gostei do título deste livro.
    Estou cansada. Mas consegui corrigir os testes todos. Teria sabido mesmo bem uma ou duas fatias do teu bolo de diospiros:) Uma recompensa pelas horas longas.

    Um beijo já muito tarde. Terríveis e longas, as minhas segundas-feiras:) Já passou.

    Mar

    ResponderEliminar
  10. Olá Emília:

    Muito bonita, a exposição da Gulbenkian. Fui ver há meses a primeira parte e esperei pacientemente por esta segunda parte. Pena é que tenha estado a ver tanto com tanta gente à volta. Ando a pensar que devo voltar lá. Para olhar os quadros com mais calma. E com menos gente. Mas trouxe um bocadinho das naturezas mortas. Uns individuais com reproduções de alguns dos quadros. Olhei-os e soube que iriam arranjar maneira de ficar bem aqui.
    Sabe o melhor disto tudo? Essas coisas pequenas de que falou. E que se propagam. A tranquilidade. A vontade de recriar coisas que estão debaixo dos nossos olhos. Gosto tanto de imaginar que sim. Que terá posto uma mesa linda para os seus. E a gratidão enorme que sinto. Por saber que essa e outras coisas devem ser entendidas como dádivas.
    E acho que me apropriei da filosofia das coisas mínimas de Bernardo Soares. Filosofia que se pode fazer com as mãos, creio. Tangível. Não especulativa, mesmo que a especulação seja estimulante por si. Mas sou demasiado terrena para essas coisas mais sofisticadas:) Por isso é que não leio os ensaios filosóficos do meu marido, se calhar. Mas consigo ler uma e outra vez a minha bíblia subversiva. A que foi deixada por Fernando Pessoa. O resto é uma apropriação rudimentar de coisas que são muito mais do que eu.

    Obrigada. Sempre. E muito. Por si. Gosto de a ler. De saber que está aí.

    Mar

    ResponderEliminar
  11. Já tinha lido algures que sim. Que os nossos fins-de-semana tinham sido parecidos:) Com o elemento persistente de um copo de vinho ao final da tarde, enquanto se faz um jantar demorado.
    Fala-se tanto. Há demasiado ruído. E o essencial acaba por estar perto do nosso olhar. Acabo quase sempre por chegar a esta conclusão. E então, no meio das coisas todas que toldam o tal olhar elementar, lembro-me que enquanto houver vida em mim, há-de haver hipótese de uma mesa. E comida a nascer das mãos. As tais coisas insignificantes. Não importa. Para mim não são nada disso. Dão-me tanto. E aos que partilham a mesa. A dos pássaros e todas as outras. Que são das cores todas que há em cada um de nós.

    Um beijo de boa semana.

    Mar

    PS: Li há pouco o seu email. Obrigada:)

    ResponderEliminar
  12. Olá minha linda:

    Gostei dessa tua maneira engenhosa de não deixares publicidade:) Gosto desse espírito.
    E gosto ainda mais que a tua menina tenha achado piada aos pássaros. O António também. As crianças têm aquele encantamento todo que nos comove. Obrigada. Por teres dado a ver à tua menina a mesa dos pássaros. E pelo relato carinhoso. Diz-lhe que tenho saudades de a ver. E que tem os olhos mais brilhantes que já vi:)

    Um beijo para as duas.

    Mar

    ResponderEliminar
  13. Olá Graça:

    Mais uma graça que veio através da Babette:) Dádivas, que são as pessoas. Um pouco de graça em cada uma das pessoas. Fico feliz que tenha gostado da mesa com pós de magia. Asas de pássaros e tudo o mais.

    Um beijo. E obrigada. Pela melodia que deixou aqui.

    Mar

    ResponderEliminar
  14. Olá Lusitana:

    Que bom, sabe? As minhas fotografias das mesas cá dentro parecem-me sempre tão insuficientes. Fico feliz que tenham sido bem recebidas. E os meus pássaros à mesa também gostarão da ideia de terem sido gostados tão generosamente por si.
    Obrigada. Que também lhe quero bem. E também sonho semanas boas para a Lusitana. E para as "minhas" pessoas:)

    Um beijo.

    Mar

    ResponderEliminar
  15. Apenas uma colocação: bela e misteriosa mesa.
    Beijo,
    M.

    ResponderEliminar
  16. Gostei do toque de mistério:) E sim. Acho que sim. Que há coisas pequenas não-ditas na mesa nocturna.

    Um beijo para o Brasil. E obrigada.

    Mar

    ResponderEliminar

AddThis