Habitar transitoriamente.





Lugares transitórios. Onde sentimos mais que afinal podíamos não pertencer a lugar nenhum. Há a ideia de uma casa. Mais ou menos permanente. Mais ou menos quieta. E há os lugares todos onde estamos mesmo de passagem. Como os hotéis. Metáforas muito cheias de nós. Talvez por nos darem hipóteses libertadoras. De nos perspectivarmos isolados. Fora da nossa zona de conforto. Longe de objectos acumulados. Longe de uma série de significantes. E de significados. E de repente podíamos ser outros que não nós. Personagens num palco transitório. Há uma hermenêutica própria para isto de andarmos em trânsito. De estarmos sozinhos, mesmo que até nem seja bem assim. Mas a metáfora é mais evidente nos hotéis. Podiam ser só não-lugares. Pelo óbvio. Mas o bom é não serem isso de não-lugares. E então, gosto sempre da sensação de chegar a um quarto vazio de hotel. Por chegar a um lugar que nunca significou nada antes. Por ser um espaço onde vou habitar transitoriamente. Nenhum dos objectos significa nada. Não fui eu numa viagem qualquer. Não fui eu por um afecto qualquer. Não fui eu e um dos meus impulsos quaisquer. Nada de mim foi ali deixado previamente. Não havia nada meu. Antes de entrar, digo. Antes desse movimento simples, não havia nada. E no entanto. No entanto, há sempre aquele detalhe que faz com que assim que entre, passe a ser qualquer coisa que não havia antes. Procuro não deixar que as coisas passem incólumes. Mesmo as transitórias. Talvez por saber que aquilo que remanesce de cada uma delas não tem nada de transitório. Enquanto eu existir.
Enquanto eu existir, existe mais esta memória. Pelo menos isso. Pelo menos um quarto que era vazio. No Tivoli da Avenida da Liberdade. Fica a luz e as árvores adivinhadas lá fora. Um lugar de contemplação, que foi o quarto que era vazio de mim. O sol de um sábado qualquer numa mesa qualquer de pequeno-almoço. Muitas imagens em mim. Carros negros a parar muito rápido. Homens de negro de óculos escuros a sair muito rápido das fortalezas negras. Olhares vigilantes e filtrados em volta. E adianta mesmo? Isso de haver fortalezas negras e rápidas. E homens vestidos de negro com o olhar ocultado. É fácil distraí-los, afinal. Tão fácil. Quando é assim, os olhares ficam silenciosos. Nada vigilantes. Em suspenso. E no quarto anteriormente vazio, fica sempre uma palavra num papel. A que apetecer. Num sítio onde não puder ser encontrada. Tantos fragmentos espalhados, por esta altura. E nunca ninguém há-de dar por eles. Ou talvez não. Que também é bom pensar na possibilidade de serem encontrados.
Eu tinha dito que ia voltar à habitação transitória da Avenida. E aconteceu assim. Voltar mais. Voltar sempre. Ao lugar onde uma actriz resolveu fazer uma casa. Num quarto de hotel. Talvez um quarto de hotel não seja uma coisa assim tão transitória, afinal. Pode bem ser uma casa.

8 comentários:

  1. Belíssimo texto. Belíssimas imagens. Exatos como radiografias que pudessem ser poemas.
    António.

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  2. Lindo o teu texto. Habitar transitoriamente. E guardar esse espaço connosco depois. Depois quando já estamos em casa, depois quando nos lembramos dos sítios transitórios.
    Gosto mais da primeira fotografia. Pela cor que deixa ver a cortina meia transparente, pela luz não filtrada que entra pela janela, e pelas árvores, que como tu dizes tão bem, se deixam adivinhar lá fora. Pela quietude de uma avenida.

    Este fim de semana volto eu à cidade grande, para festejar com o Pedro, o aniversário dele.
    Um beijo
    da Pipinha
    (não me esqueci dos húngaros!, levo-tos para a semana!)

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  3. Caro António:

    Gosto sempre da maneira telegráfica como gosta. Obrigada, sim? Por isso das radiografias que podiam bem ser poemas.

    Mar

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  4. Olá minha linda:

    Também é a de que gosto mais. A imagem de uma luz que só aconteceu ali. Naquele momento. E estar lá, sabes? E isso estar aqui. E tudo ter sido assim por causa de um lugar transitório. Que podia ter ficado para trás e pronto. E não. Que somos todos um bocadinho isso. Transitórios.
    Estou a ouvir a música que pediste à Ina para me fazer chegar. Também é uma coisa que está a acontecer agora. E podia passar incólume. Mas não. Por isto. Estou a dizê-la. Para te agradecer a música que está a fazer com que a minha noite a escrever sozinha seja indelével. Já está, creio. Agora nunca mais me esqueço disto.
    Bom regresso pelo aniversário do teu Pedro. Celebrem bem e muito a vida dele. Ou a vossa.

    Um beijo.

    PS: E não te preocupes com as minhas bolachinhas de sortido húngaro. Eu sei esperar. Eu sei que não parece, mas até sei esperar:)

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  5. Gosto tanto destes habitats temporários quanto do permanente. Uma aparente incoerência, eu sei. Mas por outro lado uma dicotomia que está tantas vezes presente na vida. Quase como saber que o bom de ir é igual ao bom de voltar.
    Este teu "canto" na cidade da luz combina contigo...
    Babette

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  6. Olá, Mar.
    O comentário da Babette poderia ter sido escrito por mim :)
    Gostei de a imaginar a esconder um papelinho num quarto de hotel. Gostei mais ainda de imaginar alguém, daqui a muitos anos, a encontrar um papelinho escrito por alguém chamado Mar :)
    Um beijo para si e outro para a Babette, que tal como eu, gosta tanto de ir como de voltar :)

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  7. Também me ocorreu isso da incoerência, sabes. Talvez pelo óbvio de passar a vida a cantar as virtudes da casa permanente. Mas depois passei à frente. Por não achar que temos sempre de manter a coerência. E por saber que cada uma destas habitações transitórias fazem com que goste mais da casa onde regresso. Uma e outra vez.
    E sim. Gosto muito deste hotel. Congrega uma série de aspectos. A começar pela localização. Para voltar, então. E o bom que é voltar. Mesmo que a seguir tenhamos de ir outra vez. Não importa.

    Um beijo da tua amiga Mar.

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  8. Olá Ilídia:

    Estão espalhados, os papelinhos escritos por alguém chamado Mar:) Há vários em Lisboa. Um em Veneza. E em Paris. E em Londres. E em Milão. E. De vez em quando tento lembrar-me das palavras que foram escritas. Mas nunca consigo isso por inteiro. Ou com certeza do que terei escrito. Mas sei que ficaram pelos sítios transitórios que me viram adormecer. E acordar. E acho que sim, que gostava que afinal fossem encontrados. Ou finalmente. Sabe que de vez em quando penso que podia bem ser eu a encontrá-los? Passados muitos anos. Mas eu não sei se sim. Se há isso dos muitos anos.
    A ver se daqui a uns meses deixo um na sua ilha:) Daqui a uns meses é mais fácil de dizer. É mais possível de acreditar.
    E somos as três disso, pelos vistos. Do género de gostar tanto de ir como de voltar.

    Um beijo para si, que pode ver sempre o mar. Hoje faltava-me isso. Queria mar. Mas há demasiados testes para corrigir. Es muss ein. Tem de ser:)

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