Chega hoje à noite, a Primavera. Mas antes desse equinócio nocturno, olhar para trás um bocadinho e dizer obrigada à estação que chega ao fim. Gostamos tanto da Primavera e de todas as suas promessas, que atiramos o Inverno fora sem pensar, como casaco pesado de que queremos libertar-nos. E não. Não assim. Tanto para agradecer. Tanto. Os dias abençoados de sol. Os dias abençoados de chuva (e o que seria dos dias de sol sem os dias de chuva). Cada página escrita. E todos os significados literais e metafóricos de cada uma dessas páginas. O doce atravessar dos dias escuros, iluminados pela luz quente do lume. A graça de cada declinação de verde. Lá fora, pela casa e à mesa. As mimosas a serem o primeiro sinal de transição entre uma estação e a outra. E as primeiras refeições lá fora, no jardim. O silêncio voluntário e necessário. A contemplação serena e lúcida do andamento do mundo, das pessoas no mundo. Registar e seguir o caminho que nos pertence. Não fazer mais nada que não isso. Cada ir e cada voltar a casa. Os livros. Lidos. Relidos. Sublinhados. Os livros de ler com a luz do dia. Os livros de ler com a luz da noite. Tantos e ainda assim, saber que nunca são/serão os suficientes. O olhar demorado nas coisas, na luz de cada um dos dias em que ela é mais breve e em que é (ainda) mais urgente reparar que ela está a acontecer e que daí a nada estará irremediavelmente perdida. É aquele tempo e não outro. E isso é lição que serve para tudo aquilo que achamos que podemos passar em falso ou deixar para depois. Tanta beleza em tudo e isso ser inesgotável, como amor que se renova sem se explicar. As flores que apanho no jardim e nos caminhos são um sinal ínfimo desse amor, dessa beleza que espera por nós em todo o lado, o tempo todo. As metamorfoses interiores e exteriores. A música e a minha dança, dados permanentes, certos, não obstante tudo o que muda à volta. E muito isto: confirmar que as mudanças maiores são sempre íntimas e silenciosas.
Nesta página que se despede do Inverno, coisas que fui guardando ao longo destes meses. Sem sentido, como me acontece a maior parte das vezes. Olho para as coisas e quero guardá-las. Na memória, tantas vezes. E outras tantas, assim. E ainda bem, porque posso olhá-las muitas vezes e lembrar-me do dia, do momento. Bocadinhos aleatórios da casa, das mudanças que estou sempre a fazer e que são um sinal luminoso da minha vitalidade interior e do quanto adoro aquele que é, para mim, o melhor lugar do mundo. As plantas que crescem e que vão precisando de vasos maiores. Os livros por todo o lado e que ditam a geografia do espaço habitado. Tudo o mais se adapta a eles. Nunca o contrário. Pelo meio das imagens soltas da casa, a Côté Sud que é sempre linda e onde me inspiro tanto. E livros que precisei de reler, tantos anos depois da primeira vez. O livro que acabou por ditar o isolamento e a ascese de J.D. Salinger. Os livros acabam sempre por ser entidades livres, que escapam aos que os escreveram. Este livro foi o melhor e o pior que aconteceu ao escritor que se enclausurou numa cabana, longe de todos. E o que ele demorou, até ser publicado. A Virginia Woolf e a biografia quase mágica do/da Orlando. Uma vida a atravessar séculos. Como homem com o coração destroçado por uma princesa russa de gelo. Como mulher que destroça os corações dos homens que se cruzam com ela. Até acontecer aquele homem que não é como os outros homens. E ninguém descreve os acontecimentos ínfimos e simultâneos e quotidianos como a Virginia Woolf. Atravessar Londres pelas palavras dela é uma daquelas coisas que não se esquece. E o pequeno livro terrível de Henry James que li por causa de Oscar Wilde. Sobre este, não é para dizer nada. Estraga-se tudo, se assim for. Talvez isto: lê-se como se estivéssemos a ouvi-lo numa noite de tempestade, numa casa vitoriana, algures nas Terras Altas. Depois disso, nenhum dos respirares naturais das madeiras voltará a ser o mesmo.
A comida para dizer obrigada ao Inverno, tinha de ser esta. Comida de forno, que faço vezes sem conta em todas as estações, mas que sabe ainda melhor no tempo frio. Aquele aconchego que nem é preciso explicar. E sim, comida simples, que faz com que as pessoas se sintam muito felizes por estarem à mesa onde ela acontece. Não é preciso ingredientes estranhos nem procedimentos muito sofisticados. Basta isto: tempero e forno. Enquanto isso, pode fazer-se esparregado de nabiças ou só cozer grelos e espigos durante dez minutos em água a ferver, para que o verde continue a ser verde. E batatas assadas. Ou arroz de molho inglês. Quando for altura de servir, um molho mágico que faz com que aquilo que aconteceu no forno seja ainda melhor. E vinho. Deixo estes dois, porque tanto o branco como o tinto ficam mesmo bem com esta comida. Com tantas outras coisas. Logo à noite, sei que abrirei uma destas garrafas para o jantar do equinócio da Primavera e que à mesa se brindará (mais uma vez) à estação a começar. À vida.
Entrecosto no forno
Entrecosto (no talho, pedir para que o entrecosto seja cortado como deve ser e que haja carne da parte do lombo que é retirada previamente) + meio litro de vinho branco + 4 dentes de alho esmagados, com um pouco da casca + sal, piri piri em flocos e azeite q.b
Colocar as peças de entrecosto num tabuleiro relativamente fundo, temperar com os ingredientes da lista e deixar estar (pelo menos meia hora, mas quanto mais tempo de tempero, melhor). Levar ao forno a 170ºc, durante 45/50 minutos (o tempo dependerá sempre do tamanho das peças, pelo que convém ver, da primeira vez que se fizer). Retira-se e serve-se com o tal molho delicioso, que precisa destes ingredientes: azeite, vinagre, flor de sal, piri piri em flocos, colorau, alhos e as ervas picadas que nos apetecer (a mistura que costumo usar é alecrim, coentros e salsa). Se quisermos, podemos usar o almofariz. Ou então não e pica-se os alhos e as ervas. Mistura-se tudo com uma colher. E está.
A música é dos White Lies.
Entrecosto no forno
Entrecosto (no talho, pedir para que o entrecosto seja cortado como deve ser e que haja carne da parte do lombo que é retirada previamente) + meio litro de vinho branco + 4 dentes de alho esmagados, com um pouco da casca + sal, piri piri em flocos e azeite q.b
Colocar as peças de entrecosto num tabuleiro relativamente fundo, temperar com os ingredientes da lista e deixar estar (pelo menos meia hora, mas quanto mais tempo de tempero, melhor). Levar ao forno a 170ºc, durante 45/50 minutos (o tempo dependerá sempre do tamanho das peças, pelo que convém ver, da primeira vez que se fizer). Retira-se e serve-se com o tal molho delicioso, que precisa destes ingredientes: azeite, vinagre, flor de sal, piri piri em flocos, colorau, alhos e as ervas picadas que nos apetecer (a mistura que costumo usar é alecrim, coentros e salsa). Se quisermos, podemos usar o almofariz. Ou então não e pica-se os alhos e as ervas. Mistura-se tudo com uma colher. E está.
A música é dos White Lies.
Mar, que lindo 💖
ResponderEliminarEstou ansiosa pela primavera que ai vem 😊
Beijinhos
É estranho chamares-me Mar:) Para ti, sou a Isa desde sempre. Obrigada! Pena não estares cá para o meu jantar do equinócio.
EliminarBeijinhos, Ina.
Tão bonito, o azul intenso da Costa Nova com as florzinhas amarelas (mimosas?). E o verde tenro das avencas. Tudo a lembrar-nos a Primavera.
ResponderEliminarA comida de despedida ao Inverno é a ideal - ‘comida do fundo’.
Um beijinho e boa Primavera.
Obrigada, Ana. São mimosas, sim. Já não há, agora. Passam num instante, por isso é que é bom viver as coisas em pleno, enquanto elas estão. E nós, também.
EliminarFoi uma das comidas que fiz mais vezes, este Inverno. E sim, "do fundo".
Um beijinho para si. Boa Primavera!
Mar
Parabéns! :)
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