O branco e o azul de Lagos. E a comida.




























A vida em Lagos. Todos os dias entre o branco muito fresco da casa e o azul. Do céu. Da água. Da loiça. Pelo meio, a profusão de cores da comida. O vermelho vibrante do tomate coração-de-boi que aqui é como em mais nenhum outro lugar. O violeta dos figos e das uvas. Os verdes das ervas. O verde muito verde do manjericão, do endro, da hortelã. E o outro verde que tempera (quase) tudo: o verde seco dos orégãos. O amarelo dos limões e aquele perfume cítrico que toma conta de tudo sem invadir, sem perturbar. Todas as cores dos peixes vindos das águas atlânticas e frias de Sagres. O pão. O azeite. O chá de flores de hibisco, porque é esse o (meu) chá do Sul. Nós habitamos os lugares. Os lugares habitam-nos. Não sei onde é que começa e onde acaba. Sei que é assim e pronto. 
A comida quase não precisa de receitas nem de instruções. Ela orienta-nos. Basta seguir o que as coisas nos pedem silenciosamente. E assim, sabemos que o tomate só precisa de flor de sal, azeite, vinagre e orégãos secos. As azeitonas pedem alhos picados, talos de coentros, azeite e orégãos. Umas lascas de Parmesão com figos, um fio de azeite e mais orégãos. O atum quer-se natural. Não gosto de o cozinhar ao lume. Transforma-se num ceviche maravilhoso com funcho laminado, que emudece os amigos que se sentam à mesa, até que as palavras surgem. Gratas. Felizes por este aqui. Por este agora. As ostras não querem outra coisa senão serem servidas numa cama de gelo e umas gotas de limão. E mais silêncio, por ser quase sagrado. As sopas e os risottos obedecem à lógica do Sul: tomate, manjericão e endro. Sou sempre (muito) feliz por fazer comida. Mesmo muito. Mas em Lagos, a alegria é avassaladora ao ponto do indizível. E não há maneira de se gastar, de se consumir. Tantas coisas que eram e que deixaram de ser. Mas não isto. Nunca isto. E que assim seja sempre. 
A par dessa alegria indizível, a casa e os seus ângulos que também não se gastam, por não nos cansarmos de os olhar. O branco e a luz no branco. A arquitectura deste Sul. Tão sábia. Tão ancestral. Tão certa. E linda. Muito linda. A lembrar que a beleza pode encontrar-se no desenho fluido de umas escadas que vão dar a uma açoteia de onde se vê as estrelas e o nascer do sol. E lá, também o tal chá de flores de hibisco e uma revista dedicada ao Anthony Bourdain, que escolheu não viver mais um Verão. 
Não é preciso muito. Aqui e nos outros sítios todos. isto. E livros. Sempre os livros. Nesta página, o primeiro que li aqui. Os nórdicos são cheios de nós interiores. Sente-se isso no cinema. Sente-se isso na literatura. Tudo certo e racional por fora. Tudo em estilhaços, por dentro. Sofre-se um bocado, a acompanhar o dilema do professor Andersen, mas é um daqueles livros que se lê de um fôlego, por não se querer interromper. Talvez só para um mergulho ou outro. 

E as receitas, agora. Homenagens ao tomate coração-de-boi e a duas ervas mágicas que ficam mesmo bem, juntas. 

Creme de tomate com manjericão e endro

1 cebola + 2 dentes de alho (inteiros, sem a casca) + 2 batatas + 2 tomates coração-de-boi + endro, manjericão, sal e azeite q.b. 

Leva-se a cebola e os alhos ao lume, com um fio de azeite. Deixa-se uns segundos e junta-se depois o tomate (descascado e cortado). Deixa-se cozinhar durante uns dois minutos e, a seguir, junta-se as batatas cortadas. Tempera-se com sal, cobre-se com água e deixa-se cozer durante meia hora. A seguir, passa-se com a varinha mágica. Quando estiver creme, acrescenta-se as ervas e passa-se outra vez com a varinha mágica. Rectifica-se os temperos e está. 

Risotto de tomate coração-de-boi, endro e manjericão

1 cebola (pequena) + 1 dente de alho (picado) + 2 tomates coração-de-boi (médios) + 1 chávena de risotto + 1 copo de vinho branco + 1 colher (de sopa) de manteiga + água, azeite, sal, manjericão, endro e Parmesão q.b. 

Leva-se ao lume a cebola e o alho, num fio de azeite. Quando a cebola ficar translúcida, acrescenta-se o tomate (sem a casca e cortado em pedaços). Deixa-se estar durante uns minutos. Quando o tomate estiver refogado, junta-se o risotto e mexe-se, envolvendo bem. Depois, o vinho. Deixa-se evaporar durante uns segundos e envolve-se de imediato. Quando os grãos de arroz estiverem "secos", água a ferver até cobrir. Um pouco de sal e deixa-se cozinhar, mexendo de vez em quando. Quando esta primeira água evaporar, acrescenta-se mais um pouco, quase cobrindo o arroz. O procedimento é o mesmo: mexer e deixar que a água evapore, mas não por completo. Tem de ficar um ligeiro caldo, senão o risotto vira argamassa e nós não queremos isso:) Neste ponto, junta-se a manteiga, o Parmesão (ralado ou em lascas), as ervas picadas e envolve-se muito bem. Prova-se e rectifica-se o sal, se necessário. Retira-se do lume, cobre-se o tacho, deixando-o um pouco entreaberto e fica assim durante dois minutos. Serve-se de imediato, com um pouco de tomate picado, mais ervas e lascas de Parmesão. E sim, é uma daquelas coisas maravilhosas que faz com que as pessoas à mesa fiquem em silêncio nos primeiros segundos. As palavras vêm depois. 

A música é esta. 

4 comentários:

  1. Muito lindo, este teu texto cheio de cor. Gosto sempre de ler estes teus posts sobre Lagos. Nestes dias de descanso é quando a comida, e fazer comida, sabe melhor. Com essa simplicidade de que falas. Senti muito isso este ano, em São Jorge, um paraíso em tons de verde e azul. Vou procurar o livro. Também ando virada para a Escandinávia.
    Um beijo grande e continuação de dias felizes 😘
    Ilídia

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    1. Obrigada, minha querida. Lagos é tanto, na minha vida. Tu sabes. E não tem que ver com férias. É um amor de ano inteiro. Não sei dizer bem.
      É um livro pesado, mas breve. Ainda há pouco escrevi à Guida, a dizer que é uma geografia literária que não conheço. Sou tão aleatória e ilógica nos livros. Terminei ontem um livro de um filósofo francês e hoje vou iniciar um de um escritor americano. É como se andasse entre continentes ou assim:)

      Um beijo grande e boas férias para ti também.

      Mar

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  2. Tão simples e tão bonito este teu texto. Gosto muito de te ler e estas palavras trazem a frescura dessas paredes brancas e o aroma dos oregãos que eu também adoro!
    p.s. outro dia tive um sonho estranhíssimo. sonhei que eu era tu ( é assim que se escreve? Não me soa bem ...) e com o Mike Patton dos Faith no More :D
    Agora já não me recordo bem do sonho mas sei que gostei e quando acordei pensei " WTF??" Ahahahah esta nossa cabeça realmente é o máximo!!
    Beijinhos e continuação de boas férias

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    1. Isso é que foi um sonho estranho:)

      Obrigada por gostares, querida Dulce. Adoro escrever sobre Lagos, mesmo que as palavras pareçam sempre aquém. Mas quero sempre guardar aqui a minha cidade branca e azul.

      Um beijinho grande e um bom Verão para ti!

      Mar

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