Em Lagos, tudo começa e tudo termina no mar. Aquele azul permanente, mas que nunca é o mesmo azul. Tal como a temperatura. Como eu adoro sentir os ventos temperamentais de Lagos. Começa a acontecer ao final da tarde. Sempre ao final da tarde. Podem ser os ventos quentes vindos de África ou os ventos atlânticos. Ou podem combinar os dois e acontecer ao mesmo tempo. E isso é, só por si, um acontecimento. As pessoas de Lagos sabem-lhes os nomes. O Levante. O Sueste. E têm um orgulho nos ventos que determinaram que as caravelas saíssem dali, rumo ao mundo. O Infante sabia o que fazia, diz-me o Sr. Jorge no mercado. E sim. Esse dado acaba por estar em tudo, na cidade. A vocação marítima que faz com que Lagos seja também e desde sempre uma espécie de porto de abrigo para gente que precisa de ir ao extremo do sul para encontrar o norte. Ou não. Ir ao extremo do sul também pode significar vontade de se perder e pronto. De fazer um caminho até ao ponto em que não há mais por onde andar. Mas o mar toma conta disso tudo. De todos. Dos que se perdem. Dos que se encontram. O mar toma conta. E é preciso entender o vento. É muito importante entender os ventos de Lagos. Quem não sente isso, não sentiu aquele chão. E dificilmente voltará. Mas quem entende, sabe que terá sempre de voltar a Lagos. Uma boa maneira de entender o vento e o mar, é fazer o caminho entre a Ponta da Piedade e Porto de Mós. Os trilhos feitos desde sempre seguem agora um curso de madeira. E é um caminho tão bonito, que estamos sempre a sentir a necessidade de parar. E respirar bem o momento. E olhar os azuis do mar. E a luz a cair naquele pedaço de mundo e em nós. No fim do caminho, a praia do Porto de Mós. Linda, como só ela. Caminho-a até ao extremo das rochas e adoro as esculturas misteriosas que alguém se dedica a fazer, nos últimos anos. As pedras assumem formas de gente. Fazem desenhos no chão, nas rochas escavadas. São parte da praia. São parte do lugar.
E a cidade não é lisa. A todo o momento, coisas ínfimas e outras nem tanto. Muita arte de rua. Muitos poetas. Muitos escultores. Tão bom, aquilo de se ouvir uma música qualquer e de a seguir sem pensar pelas ruas da cidade. E acontecer um violino ou uma voz sem mais nada ou um ritmo psicadélico e obsessivo que acompanha acrobacias com fogo. E, ao caminhar, a poesia de Sophia dentro. Saber os poemas de cor. As palavras que nós sabemos que foram escritas em Lagos ou sobre Lagos. O lugar é ela. Ela é o lugar. Também ela está por todo o lado. E nunca regresso ao mercado de Lagos sem ler a inscrição gravada ao cimo das escadas. Leio-a inteira, mesmo que já a tenha lido tantas e tantas vezes. Mas no primeiro dia em Lagos, antes de ir abraçar as minhas pessoas de todos os Verões, aquelas coordenadas. Como sempre, verifico que nos meus ombros ainda há aquela luz levíssima e fresca. Um exercício silencioso de reconhecimento. E ainda está tudo. Mais o riso fácil e secar o cabelo ao vento e comer ameixas pelo caminho ou bolo de torresmos quente no Mercado do Levante, aos sábados de manhã. A rotina de Lagos e a sua cartografia. O mercado, antes de tudo. Depois, sumo de laranja fresco e mais café no Taquelim. Na alcofa, uma caixa de arrepiados, o bolo que é, para mim, o Algarve. E a Casa Trindade, a loja de utilidades onde consigo encontrar coisas que já não encontro em lado nenhum. E vinhos na Sommelier, à medida do que vai ser cozinhado. Há vinhos nos outros sítios, mas os outros sítios não têm o olhar profissional e a simpatia do Miguel. E a Olaria Nova, mesmo no centro de Lagos. Para quem adora as cerâmicas do Sul e (bom) artesanato do mundo inteiro e as jóias mais bonitas em prata. Uns metros mais à frente, este lugar com um projecto tão bonito. Tudo ali é nosso, no nosso melhor. É um sítio onde nos perdemos, principalmente no espaço para a casa. E ali perto, a igreja silenciosa de Santa Maria. Está quase sempre vazia e eu gosto assim.
Nesta página, também os sítios onde gosto de ir, quando não faço comida. Sempre o Vila Lisa. Pelos motivos que já expliquei aqui. E ir em direcção ao pôr-do-sol, em Vila do Bispo, para jantar no Eira do Mel. Uma cozinha slow, que cruza bem a terra e o mar. Há alguns anos que não ia lá e foi bom regressar e constatar que a comida ainda tem a alma de que me recordava. E este sítio de beira de estrada e onde se come maravilhosamente. Dizem que os melhores grelhados do Algarve são os da Casa Xico Zé. As classificações superlativas correm sempre o risco de ser relativas. Mas sei que comi ali as melhores sardinhas da minha vida, para correr o mesmo risco das classificações superlativas. Tão no ponto certo de tudo o que é bom, num prato tão simples e tão essencial. E as batatinhas. Cozidas e servidas num prato fundo com azeite, alhos e orégãos. Mal vêm para a mesa, é preciso envolvê-las naquele azeite delicioso e o resto acontece por si. Este sítio só serve almoços e é mesmo preciso fazer reserva ou ir cedo, porque as filas são como eu nunca vi, a partir de uma determinada hora.
E este livro. Guardei-o para ler em Lagos, já depois de uma série de decisões e de reformulações. Uma perspectiva tónica sobre o fracasso, num mundo tão angustiado e tão cheio de sucessos e de bem-sucedidos e de gente a parecer desesperadamente feliz. Foi um dos melhores livros que li este ano. Um ensaio filosófico que se lê como se estivéssemos a fazer o caminho do mar, entre a Ponta da Piedade e o Porto de Mós: sabemos que estamos a fazer um caminho longo e cheio de abismos, mas não o sentimos assim. Parece só fácil, pelo sentido que faz, por parecer tão intuitivo, mesmo que cheio de referências densas e tudo o mais. É essa a grande marca da boa filosofia.
E esta música.
E esta música.
Sempre que leio estes teus posts sobre Lagos penso que tenho de ir. Há de acontecer.
ResponderEliminarContinuação de boas férias. Ainda em Lagos ou já noutro lugar qualquer.
Um beijo grande,
Ilídia
Sim, tens mesmo de ir. Obrigada:) Para ti também.
EliminarUm beijo grande.
Mar