A última viagem de Anthony Bourdain.












Tenho andado às voltas com as palavras. Tem sido assim desde sexta-feira. Mais do que tudo, as palavras são o lugar onde tudo encontra maneira de fazer sentido. Por mais sem-sentido que haja à volta, sei que há aquele momento em que elas vêm e me ajudam a chegar à margem. Neste caso, não consegui ainda chegar a essa margem. Ao lugar onde se pára e de onde se contempla as águas a seguirem o seu curso. Não foi só aquela frase do primeiro momento, quando me ligaram a dizer e eu estava a conduzir e a pensar que aquela estrada era mesmo linda e que ia chover outra vez e que era Junho, mas que ainda assim, aquela estrada era mesmo linda de conduzir. O Anthony Bourdain morreu. A primeira frase a atravessar o éter foi essa. E depois a outra, uns minutos depois. O Anthony Bourdain suicidou-se. E o mistério enorme que é essa decisão. Neste caso, ainda mais. E é tão triste. Tão profundamente triste, que uma pessoa com tanta fome e com tanta sede de mundo e de vida, tenha ido assim. A morte é algo que nos acontece inevitavelmente. A nossa hora espera-nos calmamente, enquanto andamos de um lado para o outro, a tentar enganar o nosso destino certo. Mas o suicídio é outra coisa. É aquele abismo de onde se salta. Às vezes literalmente. Fazer acontecer a morte. Escolher. Querer ir. Querer suspender. Terminar. Não querer mais. Ser esse o grau de desesperança. Ou de desespero. Ou de sei lá o quê, que faz com que alguém se enforque num quarto de hotel. Se esse alguém for alguém que aparentemente tem tudo para ser feliz, as perguntas e as reticências são mais. 
Nunca gostei de programas de viagens. Nem de artigos ou de blogs de viagens. Levei tempo até perceber isto e a perceber também que era um ponto meio absoluto, gostando eu tanto do óbvio de viajar. É que os programas de viagens são tão maçadores e tão postal. Os artigos e os blogs oscilam sempre entre o instrucional e o previsível. Palavras sem carne, sem sal, sem açúcar. Textos extensos e sem alma como tudo. E ouvir pessoas a falar das suas viagens é contarem-me um filme que eu não vi e que não sei se verei ou se quero ir ver. Tudo isto parece incompatível com o facto de me sentir no melhor dos elementos, quando estou a andar de um lado para o outro. Aquele friozinho e ir. E, muito importante, ir sem se dizer que se está a ir. Estar sem se dizer que se está. Regressar sem que se tenha anunciado a partida. Neste mundo em que as pessoas parecem sempre tão ansiosas por dar notícia do que estão a ver/ouvir/comer/viver, é tão bom viajar com os serviços de localização desactivados ou, numa versão mais extrema, sem nenhum rasto digital. E também não acho grande piada a programas de culinária. Creio que não será preciso dizer o quanto adoro fazer comida. Mas o registo absolutely delicious e absolutely perfect, com sons falsamente orgásmicos à mistura, é um tédio. Tira a vontade. Não consigo dizê-lo de maneira mais explícita.
E por isto e por muitas outras coisas que levariam tempo e muitas palavras a descrever, adorava ver os programas do Anthony Bourdain. Porque aquilo tudo não era sobre viagens. Aquilo tudo não era sobre comida. Aquilo tudo era aquilo tudo porque era ele a fazer aquilo tudo. Como ninguém antes. Como ninguém depois. Porque ele era assim como uma música que se ouve sem mas. Uma música a que não se retira nada. Uma música a que não se acrescenta nada. A maneira como retirava a casca aos sítios, de como as camadas sucessivas eram levantadas, até chegar à(s) alma(s) das pessoas que habitam os sítios. O pretexto parecia ser a comida, mas o homem culto e vivido que era o Anthony Bourdain intercalava política e música e literatura com uma taça de noodles, num ponto perdido qualquer que não vem nos mapas. Mas a partir do momento em que ele passasse por esse ponto perdido, já estava nos mapas todos. Um dano colateral, esse. E Tóquio não era sobre todas as coisas que já lemos e ouvimos e vimos. Era sobre a solidão e sobre o espaço condensado. Era sobre as existências paralelas e hardcore dos japoneses e das suas pornografias paliativas. E a Andaluzia era sobre entender o território turvo em que o profano e o sagrado se interceptam. E a região de Puglia era o mistério que é a tarantella. E o México era a droga e as guerras entre cartéis e o testemunho corajoso de uma jornalista que tem de viver às escondidas. E o deserto da Califórnia era sobre o rock pesado e psicadélico desse deserto. Pelo meio disso tudo, o Anthony Bourdain sentado a uma mesa, a falar com pessoas e a adorar a comida. Sempre essa imagem.  
Levei dias até conseguir palavras. Não estou certa de as ter conseguido. Pelo menos, não como eu as queria, na tal margem de que falei no primeiro parágrafo. Não quis que as imagens aqui nesta página fossem de comida. Antes de momentos. Em sítios que quero que sejam abstractos. Imagens incoerentes. Aqueles momentos. Aqueles momentos em que percebemos que estamos mesmo em trânsito. A vida toda. 
O mundo era um lugar melhor com o Anthony Bourdain. E há agora um lugar vago nas mesas do mundo inteiro. Um lugar que mais ninguém ocupará. É isso. 

A música é de uma banda que eu redescobri por causa deste episódio. Kyuss. Gardenia. O tal rock do deserto. Música que parece uma tempestade. 


8 comentários:

  1. Belas imagens, e belas palavras para uma triste solução...
    Também me desagradam os programas enlatados, sejam de viagens ou sejam de cozinha. E fica muito difícil explicar, gostando de comida como gosto, de a testar, provar, fazer. Ou melhor, fica difícil de entenderem porque é que não gosto já que a maioria das pessoas tem tendência de pensar a preto e branco, um mais um são dois. Não, nem sempre são, e tanto não são que a solução do Anthony Bourdain foi esta. Muito Triste.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Maria,

      Muito, muito triste. O suicídio é um enigma. É sempre um enigma. Não há respostas que sejam um descanso, uma margem segura. Mais ainda quando se trata de alguém que tinha tudo para não querer ir. Há em tudo uma zona sombria. Ele falava muitas vezes dessas sombras. Mas nem essa lucidez o salvou de si mesmo, dos seus fantasmas.

      Eliminar
  2. Também fiquei chocada com a notícia.Custa a perceber porque é que não procurou ajuda ( será que procurou?). Que demónios o habitavam para ser tão insuportável viver? E parecia estar tão apaixonado ...
    Tantas perguntas que vão ficar sem resposta. Deixa um mundo mais triste mas mais rico graças às histórias que partilhou e à pessoa que foi.

    Sobre as tuas palavras no início do texto lembrei-me destas:

    " O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar"

    Fernando Pessoa

    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Dulce,

      Nós estamos (irremediavelmente) sós. É essa a nossa condição. O estado puro de cada um de nós. Podes ter muitas pessoas à volta, a ajuda e os psicólogos que quiseres, mas quando essa solidão irredutível vence, não há hipótese.
      Não sei. Não sabemos nunca. É só triste. Muito triste.
      Haja (sempre) a poesia. Obrigada pelo Fernando Pessoa nas tuas palavras.

      Um beijinho grande.

      Mar

      Eliminar
  3. Também fiquei em choque com a notícia. O Bourdain entráva-nos pela casa dentro e cativáva-nos. Com as suas histórias, aprendi imenso. Muito mais sobre pessoas , emoções e sítios do que sobre comida. Vou sentir falta daquele meio sorriso sensual e da sua voz a levar-nos para outras dimensões , muitas vezes oníricas.
    As suas palavras, Mar, descrevem tão bem o que sinto! Obrigada.
    Um beijo
    Guida

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Guida,

      A comida é sempre a melhor maneira de entendermos os outros, de nos darmos a conhecer, creio. Era o ponto de partida, naqueles programas. E os destinos eram sempre imprevisíveis. Viveu muitas vidas numa só vida, o Anthony Bourdain. Fez o que quis. Até no último gesto.
      Obrigada a si.

      Um beijo.

      Mar

      Eliminar
  4. São os nossos fragmentos. Os teus. Tão bonito reuni-los, fazer uma coleção, meio ao acaso, momentos em trânsito.
    Vi tantos episódios do Anthony Bourdain. De uma televisão cheia de coisas, era o que me valia, quando o corpo pedia para parar. Apetecia àquelas horas noite dentro.
    Muito bonita a tua homenagem a este homem.
    Um beijo grande,
    da Pipinha

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, uma televisão cheia de coisas e de gente que não interessa. É como na comida: se não for bom, não se come/consome. Temos sempre essa escolha. E nos nossos canais, é deprimente como tudo. Já nem tento ver se há alguma coisa que não seja homens a falar horas a fio sobre futebol ou novelas em que os actores fazem sempre de si mesmos.
      Foi como te disse ontem ao telefone, senti/sinto uma tristeza enorme. Tinha de tentar pô-la em palavras, como faço com quase tudo. Faz muita falta ao mundo, o Anthony Bourdain.

      Um beijo grande, linda.

      Isa

      Eliminar

AddThis