A receita que fica hoje foi inventada durante a Segunda Guerra Mundial, em Inglaterra. Um doce em tempo de guerra. A devoção dos ingleses pelas tartes, adaptada ao racionamento, aos tempos difíceis, ao não saber o que poderia acontecer no momento seguinte. E, ainda assim, um doce. Pelo meio disso tudo e de todas as perplexidades da guerra, as pessoas a tentar uma certa ideia de normalidade. A natureza humana é assim mesmo. Reinventa-se. Adapta-se. E continua. Creio que é mais por aí. Por isso de continuar. E a comida é uma das declinações mais concretas e mais bonitas dessa ideia de continuar. Sempre que faço crumble, esse e outros pensamentos fazem parte do processo doce e fácil de ir fazendo as coisas que nos fazem chegar até ao resultado final. Quente e perfumado, esse resultado final. A sair do forno directamente para a mesa.
De todas as coisas que fazem parte do universo da comida, as que me encantam mais são sempre estas. As que pegam em ingredientes simples, próximos e os transformam em conforto, em aconchego. As que procuram viver com o que há, com o que se tem. Mas não num exercício de resignação ou de impotência. Antes aquele traço que vive sempre dentro das cozinheiras que, por maior que seja a adversidade, por mais desesperado ou desesperante que seja o cenário, procuram confortar, dar alegrias pequeninas. No fundo, dizer sem palavras que está tudo bem, que vai ficar tudo bem. E sim, é um traço feminino, sem estar com conversas de género. A História e as histórias são feitas dessas receitas saídas do coração das mães, das avós. Das mulheres fortes que foram sempre uma casa. Onde quer que estivessem. Por mais que sofressem, as mãos de mulheres destas enxugavam as lágrimas a um avental puído e andavam para a frente. Imagino esta receita nascida de um desses momentos. Imagino que tenha sido uma das muitas mulheres que ficaram a travar outras guerras. Que, num momento qualquer, alguma dessas mulheres tenha decidido que não obstante a guerra e os racionamentos todos, os filhos iriam ter direito a um doce.
Este é o género de receita que se aprende by heart. E que se faz assim nesse registo de coração. Faço-a muitas, muitas vezes. No Outono, especialmente. Os contextos mudam, mas a essência é sempre a mesma. Pode ser uma daquelas coisas de final de tarde de domingo. Com todo o tempo do mundo. Ou coisa de dia de semana, depois de muitas coisas lá fora e com aquela vontade de casa que só nos meses frios. Tão fácil. Tão simples. Tão ao alcance. E mais um livro. E a edição de Novembro desta revista. Ou uma manta. Ou (re)encontrar um objecto que se julgava perdido e pronto. Novembro ficou também marcado por recuperar a minha escova de cabelo, num momento de transição. Marcada pelo tempo, com os defeitos que só eu lhe conheço. Mas apareceu, depois de a dar como perdida. E essa é uma coisa pequenina que tem efeitos bons. Como as migalhas deste doce. A palavra significa isso mesmo.
Crumble de maçãs
5 maçãs + 5 colheres (de sopa) de açúcar + 5 colheres (de sopa) de farinha + 100 g de manteiga + sumo de meio limão + manteiga, canela e açúcar q.b.
Descasca-se as maçãs e lamina-se (não muito finamente). Coloca-se as maçãs numa travessa de ir ao forno, salpica-se com um pouco de açúcar, o sumo de limão, canela e umas nozes de manteiga. Vai ao forno durante 10 minutos a 180ºC, mexendo-se a meio do tempo. Entretanto, as colheres de açúcar e de farinha numa taça, misturadas. E depois a manteiga, cortada em pedaços. Com os dedos, vai-se desfazendo a manteiga, formando uma espécie de migalhas. Convém deixar pedaços irregulares, não desfazer demasiado, para que a camada fique bem estaladiça, depois de ir ao forno. Quando a manteiga estiver bem integrada, cobre-se as maçãs e volta a ir ao forno durante mais 10 minutos. Retira-se e serve-se quente. Sem mais nada, com gelado ou com creme inglês.
A música é esta. Sampha. Uma voz quente e britânica. Assim como a receita.
A música é esta. Sampha. Uma voz quente e britânica. Assim como a receita.
Devia haver à venda, em drogarias muito pequeninas e especiais, daquelas que devem esconder raras e preciosas alquimias , Bálsamo de Mar. Pronto! Faz-me bem. É isso. Bem haja por essa capacidade de "esconder" nas palavras e fotografias tanta luz e amor.
ResponderEliminarUm grande beijinho. Sandra (que já não é dos livros)
Olá Sandra,
EliminarTão lindas, as palavras que deixou. Tão bálsamo, também. Obrigada eu. Muito. Fico muito feliz por isto tudo ter esses (bons) efeitos.
Um beijinho grande, Sandra que agora já não é dos livros. Mas sabe, uma vez dos livros, sempre dos livros. Há coisas que ficam, ainda assim. Nem tudo desaparece.
Mar
Sim Mar. Serei sempre dos livros. Já o sou desde muito, muito pequenina, aliás, agora que penso nisso. É apenas uma forma de me identificar, porque sei que tem mais Sandras a lê-la.
EliminarUm grande beijinho e um resto de semana cheio de momentos especiais.
Sandra
Eu sei, querida Sandra. Eu percebi. Outro para si. E muitos, muitos momentos especiais. Onde quer que esteja.
EliminarMar
Olá Mar,
ResponderEliminarÉ uma das minhas sobremesas preferidas, entre o Outono e a Primavera. Vario muito, na fruta e na cobertura. Recentemente, fiz um de maçã, pêra e marmelo. Borrifei a fruta com Vinho do Porto e acrescentei avelãs picadas à mistura de farinha e manteiga. Ficou delicioso e foi um remate muito aconchegante e perfumado para um jantar especial entre amigos.
Um beijinho de Leça, hoje triste num dia sem horizonte e frio, tão próprio de novembro,
Marta
Olá Marta,
EliminarO crumble é uma daquelas coisas declináveis consoante o que há, o que apetece no momento. Deixei aqui a versão-base, aquela que permite todas as variações. E que tem dentro muitas memórias boas, de jantares como esse de que falou.
Os dias de Novembro são um bocadinho assim. Mas há sempre um horizonte, mesmo nos dias frios. E Dezembro está quase quase:) Com as luzes todas.
Um beijinho grande para si também*
Mar
Mar, só aqui vim para lhe desejar um Feliz Ano de 2018, pois apesar de não ser tão assídua como gostaria, as duas palavras, as suas imagens, as suas receitas (sinto-lhes o cheiro só de as ler) estão muito presentes . Um Bom Ano. Beijinhos Ana
ResponderEliminarOlá Ana,
EliminarObrigada pelas palavras. Pelos bons desejos. Pela lembrança. Um bom ano para si também.
Um beijinho grande*
Mar