Uma questão de tempo.



























Se/quando é para desligar, este sítio. Uma reserva interior, que faz com que o pensamento se deslocalize e vá a voar até ao Bussaco. Pelo menos uma vez por ano, aquele silêncio verde. E sim. É meio decadente. Nostálgico. Sempre a recordar um brilho anterior. Nas fotografias a preto e branco espalhadas pelos corredores, muito especialmente. É mais aí que a nostalgia nos faz abrandar o passo. Até que nos detemos. Gosto de olhar aquelas pessoas vestidas de festa. Cristalizadas num momento que não se evaporou por completo. De imaginar todas as pequenas tragédias e alegrias interiores. Todos os projectos e sonhos de gente desaparecida. Gente como eu. Como nós todos. Agora. Com todas as diferenças óbvias e menos óbvias. Visíveis e invisíveis. Um dia, também eu desaparecerei. E não vai haver fotografias em corredor nenhum. Não faz mal. Ficarão muitas coisas invisíveis, creio. O importante é fazer esta viagem. Fazê-la o melhor que pudermos. Com alma. Com sentido. Em paz com o que somos / fazemos / dizemos / damos. Em paz.
Por motivos que não interessam para aqui, precisei (mesmo) de me refugiar no Bussaco. De me blindar interiormente. Quando é assim, começamos pelo exterior. Neste caso, foi fácil. Foi só desligar. Nada do computador que faz com que seja implícito que estejamos disponíveis e atentos. Nada da televisão que (me) nauseia cada vez mais. Nada de telemóvel. Este último, muito especialmente. E, o melhor que pude fazer, mal a vida me deu hipótese, foi ir para o Bussaco. Fechar capítulos, terminar coisas, fazer um saco de viagem rápido e pragmático e desligar.
Por enquanto, o Palace do Bussaco permanece como sempre o conheci. De ano para ano, dá para perceber que o lugar está num equilíbrio meio instável. Que há coisas seguras, certas: o verde, os jardins românticos, a sala de estar acolhedora e silenciosa (não há música de fundo em parte nenhuma, nem mesmo no restaurante), a monumentalidade que estranhamente não esmaga e que cruza estilos e períodos históricos, as pessoas que são sempre as mesmas e a comida e o vinho (maravilhosos) do Bussaco. Tão bom, quando um hotel faz o pleno. Quando não é só um sítio onde se dorme e se gosta muito ou pouco do pequeno-almoço. Este hotel tem um restaurante a sério. A comida tem a alma da geografia e das estações. De uma maneira natural, sem estar a construir grandes narrativas ou a fazer interlúdios redundantes. Se estamos no coração da Bairrada, claro que há uma empada de leitão na lista. Se a salicórnia está tão ali ao lado, na Figueira da Foz, claro que faz parte de um dos pratos principais de peixe. Se as caves do Bussaco são míticas, claro que sim, um dos vinhos especiais a acompanhar tudo. Gosto tanto deste restaurante, que, com todas as mudanças de estações, consigo lembrar-me de cada prato daquela maneira imediata. Gosto tanto deste restaurante, que, chegada a hora de pedir a sobremesa, volto atrás e peço outra entrada. Desta vez, ao mesmo tempo que no outro lado da mesa havia um doce com frutos secos e vinho do Bussaco, eu deliciava-me com uma empada de leitão. As pessoas do restaurante já não se surpreendem, porque me acontece sempre ter vontade de mais. Só aquele sorriso que já viu demasiada coisa para achar estranho seja o que for. E dá vontade de nos vestirmos para o jantar, como faziam as avós. Aquele lugar já viu tantos banquetes, tantas festas. Tantos vestidos a roçar pelo chão. Tantos fraques e smokings. Por isso, um vestido carmim. Uma homenagem leve. De Primavera que pensa no Verão. Sem cerimónia. À espera da hora de jantar, em cima da cama. 
E o que ali deslumbra mesmo é aquele verde todo. As árvores, feitas majestades sem trono. A maneira como a botânica é profusa e confusa e faz sentido. A estrada muito fresca, que dá gozo fazer devagar e com o mínimo de filtros. E sim. Uma vontade enorme de caminhar aquele lugar. Especialmente de manhã cedo. Por isso, mais vale levar umas sapatilhas no saco de viagem, para não perder essa parte da experiência. 
Não sei quais são os planos para o Palace do Bussaco. No fundo, creio que é uma questão de tempo até deixar de ser isto e passar a ser uma outra coisa. Esse fluir faz parte da vida e é bom. Mas há ali uma alma que deve ser respeitada, haja o que houver. Uma estética muito particular e muito sensível. O que é preciso é continuar. Que este sítio continue a existir. 
Com o sítio e por uma coincidência feliz, o livro que estava a ler por aqueles dias. O Graham Greene a que não regressava desde os 19 anos. Nem de propósito, este livro a acontecer ali. Naquele ambiente onde o imaginário destes romances foi, tantas vezes, real. Espionagem. Poder e vontade de poder. Dissimulação. Frieza. Maldade pura ou temperada. A literatura imita a vida. Ou a vida é uma imitação grosseira e desastrada da literatura. Nunca se sabe bem. Seja o que for, tanto nos livros como na vida, é sentir cada palavra, virar a página e querer continuar a gostar (muito) da ideia do que vem depois. É isso. E, tanta página depois, não há nada a fazer quanto a essa vontade interior. Tão bom que assim seja. 

A música é esta. Wolf Alice. Silk. 


4 comentários:

  1. Respostas
    1. Minha querida Vanessa,

      Tantas coisas em que quero muito ser melhor. Mas eu e o meu coração estamos do lado certo.

      Linda, tu. E (todas) as tuas cores.

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  2. Nem imagina o que este texto me tocou, por circunstâncias da minha vida. Como sempre, um certo mistério, que adoro, a intimidade dos espaços e da escrita, que me elevam a outras dimensões, esse verde tão verde que nos faz ter esperança. Obrigada pelos seus lindos escritos e fotografias. Um beijo.

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    1. Tão bom que assim seja, querida Guida. Fico feliz por saber. E espero que seja tudo por bem. É sempre essa a ideia, aqui. Ser pelo e por bem. E tem de haver sempre um bocadinho de verde:) É a minha cor preferida.

      Obrigada pelas palavras.

      Um beijo para si.

      Mar

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