Fernando Pessoa + Gulbenkian + Delidelux.















Qualquer coisa de intravenoso, na poesia de Fernando Pessoa. Nos heterónimos todos e muito, mesmo muito no semi-heterónimo. O invisível Bernardo Soares, auto-coroado imperador de si próprio. O Livro do Desassossego permanece/permanecerá sempre como uma espécie de manual de entendimento interior sem rede, sem auto-censura, sem a componente de análise enquanto discurso exterior, distante. É ao contrário. Sinto-me ali como em nenhum outro livro. Sublinho-o. Escrevo pedaços de frases em pedaços de papel. Andam comigo. Por escrito, no que isso pode ter de tangível. E inscritas no que sou, no que isso tem de mais intangível ou de incompreensível. Todas as (minhas) contradições. Todas as (minhas) quedas. Todas as (minhas) desilusões. Todos os (meus) sonhos. Que sim, podem bem ser todos os sonhos do mundo. 
Do que eu gosto mesmo, é de ler e de pensar sem coordenadas exteriores, sem que me digam como ou o que pensar. Foi sempre muito assim. Especialmente na faculdade. E isso valeu-me umas quantas experiências interessantes e outras nem tanto. Apontava os nomes dos livros nos cadernos de apontamentos que só eu compreendia. E frases soltas das aulas. E coisas que eu escrevia quando o meu pensamento saía da sala, enquanto eu e a minha mochila não saíamos dali em direcção a mais não sei o quê que eu achava que tinha mesmo de viver/fazer/ver. Isto significa que o registo académico, por si só, não me cativa assim muito. O que significa também que, quando vou assistir a conferências, é porque gosto muito do pensamento da(s) pessoa(s) que vou ouvir. Em relação a Fernando Pessoa, a ideia de ir ouvir Paulo Borges e Eduardo Lourenço e José Gil. Mesmo que eu não consiga perceber inteiramente o pensamento do primeiro. Fico à porta a maior parte das vezes. Sem saber bem porquê, gosto dessa sensação. 
E a Gulbenkian é o meu abrigo preferido em Lisboa. A palavra é mesmo essa: abrigo. Sempre que aconteceu sentir-me perdida ou sozinha em Lisboa, aquele lugar devolveu-me a serenidade para aceitar ou para enfrentar. Gosto de saber que está ali. Que aquele reduto de paz está ali. Mal se entra, o ruído do mundo é abafado. O silêncio dos museus é uma entidade sagrada. Procuro-o tal como procuro o silêncio das igrejas sem gente e sem palavras. Desta vez, havia uma diferença. O grande ulmeiro tinha sido cortado pouco antes. Restava só o espaço. A terra fresca, revolvida. E havia um pássaro. Quando entrei para as conferências, estava lá. O meu lirismo meio místico pensou logo que era um pássaro que tinha nostalgia da árvore que já não estava. O meu lado racional pensou logo a seguir que não era nada disso. Que era só um pássaro em cima de um monte de terra, que tenho de aprender a não ver coisas que não estão lá, que nem tudo tem significado ou poesia. E fui ouvir a comunicação do Paulo Borges. Mas quando saí, ele estava lá. E pensei que era mesmo um pássaro com nostalgia do grande ulmeiro da Gulbenkian. É assim que me lembro dele. É assim que fica aqui guardado.  
Neste dia, o tempo estava muito contado. Pensei no sítio ideal para um almoço rápido. O Delidelux na Avenida. E é no espírito de almoço entre uma coisa e outra. Vinho a copo, se quisermos. Muitas saladas e muito diferentes entre si. A memória de um caril muito bom. Perfumado, cremoso e cheio de subtilezas. Um crème brûlée com erva-príncipe. Não dá para sentir o que se sente na versão à séria do Delidelux junto ao rio. Não vale enquanto mercearia, especialmente quando se tem a referência do outro espaço. Mas serve bem o propósito de refeições como a deste dia, em que não há grande margem para experiências. Mais uma coisa: aqui também dá para comprar as caixas de madeira que ficam lindas com o que entendermos. 
E a Iris Murdoch que leio há anos, sempre com a mesma sequência. Narrativas que primeiro nos deixam ir sem perceber muito bem, como se fôssemos crianças e estivéssemos a jogar à cabra-cega. Algures no terceiro capítulo, temos a ilusão de ler as personagens, os lugares, a história. A seguir, o tapete é-nos retirado e voltamos ao início. Num momento absolutamente imprevisível, tudo nos agarra e prende. E a partir daí, é irreversível e sabemos que não vamos descansar enquanto não chegarmos à última página. Este livro é mais um desses livros. E gosto que a minha escritora sem género esteja nesta página. O livro que estava a ser lido, por esses dias que pediam a ligeireza do meu trench coat que deixa a chuva do lado de fora, como se fosse uma armadura ou isso. Pudesse tudo resolver-se assim. Ou talvez não, pensando melhor. É preciso aceitar a chuva e as nuvens cinzentas e a seguir o sol que está lá sempre. Com tudo. Aceitar com tudo. 

A música é esta. I know it's over. The Smiths. Ouvi-a neste dia. It's so easy to laugh. It's so easy to hate. It takes guts to be gentle and kind. 


4 comentários:

  1. Cada post seu é um prazer renovado, tanto na forma como no conteúdo: fotografias mágicas, sugestões que, quase sempre, apetecem e vivências ricas e muito bem exprimidas. Obrigada por partilhar.

    A. M.

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    1. Obrigada* Fico muito feliz por ser lida/entendida assim. Um bom fim-de-semana para si!

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  2. Boa tarde, Mar.
    Que pena nem sempre poder vir aqui saborear este cantinho. Há dias que me custa ler no computador, coisas da idade e de algumas maleitas, mas hoje estou a deliciar-me. Fernando Pessoa, leio-o desde cedo e há frases que me acompanham desde sempre.
    Bjs
    Ana

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    1. Olá Ana,

      Espero que esteja bem, que corra sempre tudo pelo melhor. E sim, palavras destas são do género de ficarem em nós, de nos acompanharem sempre.

      Um beijinho*

      Mar

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