Assim seja.


















Os finais são sempre aqueles lugares extremos nas nossas vidas. Damos início a coisas, sabendo que um dos implícitos de tudo o que começa, é que terá de chegar a um fim. E não importa as promessas e as juras que fazemos. Um dia, tudo chegará ao único lugar absoluto. Por esta altura, um mundo inteiro a preparar-se para o final de mais um ano. A cada ano, um dia final em que a noção de (re)início irrompe pelas nossas vidas, a lembrar que, enquanto cá estamos, temos sempre mais uma hipótese. Sempre mais uma hipótese. 
O dia último do ano tem aquela energia brutal. Pudesse ser como nos filmes e desse para ouvir os pensamentos sobrepostos das pessoas e seria uma cena fabulosa. Todos os nunca mais, todos os agora é que vai ser, todos os deixa lá. Cada uma das coisas que prometemos aos nossos silêncios. Mesmo que estejamos no meio de muitas pessoas. Mesmo que haja muito ruído à nossa volta. Esse silêncio até pode ser mais ou menos camuflado, mas está lá. À espera que nos sentemos e que tenhamos uma conversa tranquila com ele. 
Para mim, essa conversa longa e tranquila começa algures pelo solstício de Inverno. O dia mais breve do ano dá sempre início a um caminho de luz que vai até ao dia 31. Eu e o meu silêncio vamos fazendo juntos esse caminho. Como acontece em todos os caminhos, o inevitável de ir olhando para trás, de duvidar, de lembrar todos os momentos em que pensámos que não seríamos capazes. Um confronto interior com os olhos postos no dia seguinte. Seja qual for o número desse dia que vem a seguir a cada um dos dias em que temos a hipótese maravilhosa de ver o sol a mudar a cada segundo, no horizonte do nosso olhar. 
O sol das imagens é o sol do solstício deste Inverno. Vinha a conduzir e aquele milagre a acontecer. Há momentos nas nossas vidas em que podemos esperar, guardar para depois. E a sério que tenho tentado ser menos impulsiva:) Mas não momentos destes. Coisas como aquele céu não esperam nem são de guardar para depois, o pragmatismo que se dane. Uns segundos depois e já não havia aquele fogo no céu. E o irreparável que seria. Saber, ver que aquilo tudo estava a acontecer e não parar. Guardei aquele sol e deixo-o aqui. E guardei também aquilo que em mim pára de conduzir por causa de um sol. Que esse traço se mantenha, passem os anos que passarem. 
Esta será a última receita do ano, aqui no meu lugar. É um doce possível para as mesas destes dias. Mas não é só por isso que esta é a última receita de 2016. É por ser feita a partir de pão. Porque o trigo humilde se transforma numa sobremesa arrebatadora. Tenho feito esta versão de rabanadas muitas vezes. E é o doce que tem a alma destes dias. Todos os sons deliciados, quando os talheres abrem as fatias em tons de ouro. Aquele silêncio que quem faz comida interpreta e guarda tão bem. Ouvir alguém dizer que nunca gostou de rabanadas, enquanto pede para repetir. E isso tudo acontecer por causa das coisas maravilhosas que podemos fazer com umas quantas fatias de pão. Partir de pouco e chegar a tanto. Para mim, fazer comida é muito isso. E é assim que gosto de chegar ao final do ano: a perseverar na ideia de que temos sempre hipótese de fazer muito com pouco. E que isso não é conjuntural ou circunstancial. Antes uma noção fundadora. 
Com a receita, a mesa quase vazia, à espera do que sempre vem a seguir. Nestes dias excessivos, apetece-me mais ver só a madeira da mesa, os pratos a marcar os lugares de quem está, de quem vem. As romãs e as boas vontades que simbolizam. O vermelho muito less is more do azevinho. E está. Não é preciso mais. Só a comida. Só servir um doce como o que fica hoje. E, no final de tudo, quando a casa está só silenciosa, as páginas de mais um livro de um dos meus escritores. Também isso não muda com os anos. Sei que a crueza das palavras e das personagens do Philip Roth dizem mais sobre as perplexidades da vida do que todos os discursos edificantes, cheios de letras que não querem dizer coisa nenhuma. E mais um vinho do género de acompanhar comida honesta. 
Independentemente de todos os fogos de artifício, de todo o ruído, de todos os apelos mais ou menos sonoros, este é um tempo de recolhimento, de análise interior. De baralhar e dar de novo, num jogo em que os dados estão lançados previamente, mas em que temos sempre a possibilidade de fazer a nossa parte e torná-lo numa sucessão de momentos extraordinários. Assim seja. 

Rabanadas 

1 pão (de cacete e de véspera) + 300g de açúcar + 2dl de água + sumo de uma laranja + 1 casca de laranja + 1 pau de canela + meio cálice de vinho do Porto + 4 ovos inteiros e uma gema + óleo para fritar + açúcar e canela em pó q.b

Corta-se as fatias de pão com a espessura de um dedo. Leva-se ao lume o açúcar, a água, o pau de canela, o vinho do Porto e o sumo e a casca da laranja. Assim que levantar fervura, conta-se 5 minutos. Entretanto, bate-os ovos e a gema num prato largo. Mal a calda esteja pronta, embebe-se as fatias de pão, virando para que absorvam bem, transferindo-se para uma rede, para que o excesso de calda vá escorrendo. Numa fritadeira (e não numa frigideira), aquece-se o óleo. Quando estiver no ponto, passa-se as fatias pelos ovos, escorre-se ligeiramente e frita-se, tendo o cuidado de ir virando, para que fiquem douradas e não queimadas. Mal saiam do óleo, transferem-se para papel absorvente e, um minuto depois, passam-se pela mistura de açúcar e de canela. Repete-se este processo até que não haja fatias de pão. 

Depois, a calda:

150 g de açúcar + 1 dl de água + 1 casca de laranja + 1 pau de canela + meio cálice de vinho do Porto

Leva-se ao lume todos os ingredientes e conta-se três minutos, depois de levantar fervura. Transfere-se para uma taça ou para um jarro pequeno, para ir à mesa.

Depois, os ovos moles:

8 gemas + 8 colheres (de sopa) de açúcar + 8 colheres (de sopa) de água

Leva-se ao lume a água e o açúcar e conta-se três minutos, depois de começar a ferver. Retira-se do lume e junta-se as gemas batidas em fio e mexe-se ao mesmo tempo, com um batedor de varas. Leva-se a lume brando, mexendo em contínuo, até que seja creme. Filtra-se para uma taça de imediato, com a ajuda de um coador. 

Quando as rabanadas forem à mesa, devem ir acompanhadas destas duas coisas, para quem quiser sentir que não precisa de comer muitos doces, que basta um que encha as medidas. 

A música é dos The XX. Música nova dos The XX e a promessa boa do concerto deles, em Julho, aqui


16 comentários:

  1. Deliciosas as palavras e as imagens como as doces rabanadas!
    Feliz Ano Novo, que 2017 seja suave e doce, que continue a encantar-nos
    ao longo de mais um ano!
    Beijinho
    Ana Bela Loureiro

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    1. Obrigada, Ana Bela. Doces, as suas palavras. Um ano novo muito feliz para si! Mais um ano a começar nas nossas vidas.

      Um beijinho*

      Mar

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  2. o teu amor sossega-me ... linda que és, pessoa canela.

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    1. Tão linda, tu. E as tuas palavras com canela. Obrigada, querida Vanessa. Muitas coisas boas!

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  3. E assim é. Mais um ano a chegar ao fim com os rituais que sempre nos confortam. O aroma das suas rabanadas chegou até aqui e quase lhes senti o sabor. Um beijinho e um abraço grande, desejando-lhe o melhor no ano que se inicia em breve.

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    1. Olá Ana,

      Tão bom que as rabanadas tenham tido esse efeito doce. Desejo-lhe o melhor de tudo, querida Ana. O melhor de tudo.

      Um abraço muito grande para si. Obrigada pelos bons desejos.

      Mar

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  4. Olá Mar,

    Eu não tenho rituais de fim de ano, nem nenhum tipo de superstição. Não faço listas nem promessas.

    Mas, evidentemente que não fico indiferente á noção do recomeço. São mais 365 oportunidades que estão para chegar.

    Cada um saberá e conseguirá aproveita-las da melhor maneira. Claro que tenho projectos para 2017. Uns mais ambiciosos do que outros.

    É isso que lhe desejo para o novo ano: que nunca perca a capacidade de sonhar e querer ser feliz e que a Vida a ajude a concretizar os sonhos.

    Embora sem comentar, venho sempre ao seu cantinho. Acho engraçado o facto de parecer que estamos destinadas a não nos conhecermos pessoalmente mas, colidimos nos gostos literários. O livro que apresenta neste post é o que estou a ler neste momento e também já li o "Numa casca de noz", de que fala no post anterior.

    Por aqui, chamamos fatias douradas e não rabanadas. O meu marido gosta muito e está sempre a pedir que lhe faça. Tenho que me dedicar a essa tarefa com tempo e paciência.

    Um beijo do Algarve e mais uma vez votos de bom Ano Novo,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      O importante é vivermos de acordo com a nossa verdade interior. De acordo com aquilo que queremos muito viver.

      Agradeço muito esses seus desejos para o ano a começar daqui a nada. Para mim, são essas coisas que fazem sempre a diferença. Seja lá qual for o ano. Querer ser feliz. Com a ênfase no "querer".

      As rabanadas são o género de coisa que faz com que as pessoas sintam uma alegria muito essencial, muito próxima das memórias que mais acarinham. E é para mim uma alegria só, ver as consequências boas, quando se serve uma travessa doce.

      Muitas coisas boas, Sandra! Um ano novo cheio de coisas que a façam feliz. E obrigada.

      Mar

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  5. Ler os seus textos deixam-me mais calma, como se tivesse de ler devagar para captar tudo, 2016 levou-me uma parte de mim, que 2017 seja um ano de boas recordações.
    beijinhos

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    1. Olá Maria Rita,

      Que bom que estas páginas têm esse efeito bom. Fico muito feliz por saber. E desejo que o ano novo deixe um lastro maravilhoso na sua vida. Assim seja.

      Beijinhos*

      Mar

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  6. Para quando um livro teu Mar? Uma ode às coisas simples como só tu tão bem sabes fazer.
    Eu quero! :)
    Um bom ano
    Beijinhos

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    1. Tão linda, Dulce:) Escrevo aqui. As (minhas) coisas simples vão ficando aqui. Não se perspectiva nenhum livro meu, por mais que eu goste de escrever, mas fiquei comovida com as tuas palavras. Obrigada.

      Um bom ano para ti!

      Beijinhos*

      Mar

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  7. Fiquei, como sempre embebida nas palavras, que, por incrivel que pareca me deixam calma e serena. Obrigada por estas e todas as outras, que me deliciaram ao longo de 2016. A receita das rabanadas sera para muito breve. Um excelente 2017!

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    1. Olá Lígia,

      Obrigada também. Por estas e por outras palavras carinhosas que aqui foi deixando ao longo deste ano. Fizeram-me sempre um bem enorme.

      Um ano novo lindo para si, querida Lígia!

      Mar

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  8. Que cada ano seja um conjunto disso mesmo, de momentos lindos, lindos, que nos enchem a alma. Como esse céu de fogo.
    Um beijinho grande deste lado (do outro solstício).

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    1. Sim, minha querida Ana. Uma enumeração maravilhosa de momentos.

      Feliz ano novo outra vez!

      Beijinhos aí para longe*

      Mar

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