O tempo.
























Registar ou não. Tirar fotografias às coisas ou deixar que elas sejam um exercício de memória. Que existam só aí, na sucessão de nervos e de filamentos sensíveis que são a nossa memória. Que não haja rasto nem evidência de nenhuma das nossas passagens. Em tempos, e durante bastante tempo, não fiz registo de nenhuma das minhas viagens. E nem sequer posso dizer, ao olhar para trás, que isso era reflexo de muita reflexão. Nada disso. Era assim e não perdia tempo a pensar no assunto. O facto de estar num sítio qualquer não carecia de registo. Estava lá e pronto. Regressava e pronto. Se voltasse a esse sítio era bom e pronto também. E agora, ao olhar para trás, para esses anos sem registo, penso só que é uma lástima que tenha sido assim. Mas era dessa maneira que sentia e que vivia as coisas na altura. Estará certo, se me concentrar nesse ângulo. A questão está em abrir o ângulo. Fazendo esse gesto, dou-me conta de que lamento. E não há grande história nem sofisticação intelectual nisso. 
Ocorreu-me isto há uns meses, quando estava a assistir a este programa. Mais neste fragmento. Foi aí que lamentei a sério não ter uma única imagem de Granada, enquanto via o Anthony Bourdain. Lembro-me do que senti naquela caverna, enquanto uma voz cantava coisas que pareciam vir de muito longe. De como o meu coração batia irremediavelmente, ao ritmo do flamenco nos pés daquelas mulheres poderosas e muito belas. Fosse hoje, e haveria imagens dos vestidos e das mãos delas nos vestidos e da brisa dos leques porque estava muito calor na Granada por onde andei sem deixar lastro. E da aritmética rendilhada no Alhambra. E das mãos cheias de anéis da cigana que me disse coisas sobre aquilo que eu ainda não tinha vivido e que, segundo ela, iria viver e que o deus dela estivesse sempre comigo.
Nunca tinha pensado muito no assunto, mas foi inevitável lembrar-me de tudo aquilo que não tinha fotografado e que gostava de ter fotografado. Talvez a neve em Milão. Talvez o silêncio na Sala Rothko em Londres. Talvez o calçadão de Copacabana ou o verde da Vista Chinesa sobre o Rio. Talvez o cheiro cítrico de Sevilha. Talvez a minha primeira vez em Paris. Talvez as estradas do sul de França. Talvez tantos lugares e tantos caminhos. E o momento cristalizado numa imagem. Creio que é essa componente que me encanta, na ideia do registo. Aquele momento exacto. E isso ser mais inesquecível do que um palácio ou uma catedral. Com a mesma irreflexão com que não registava nada, passei a registar. A tirar fotografias às coisas. A acumular imagens distorcidas de estradas, de paredes com coisas escritas e desenhadas, de céus com elementos de perturbação, da solidão de um jardim sem pessoas com o ruído de fundo de pessoas, de quadros com frases que me disseram coisas que eu entendi sem entender completamente. Nunca servem para nada, essas imagens. São inúteis. Mas guardo-as na mesma. Numa lógica aleatória que eu entendo apesar de tudo e apesar de todos os caminhos. Ficam aqui algumas. Assim mesmo sem legendas. Curiosamente, olho-as e sei-lhes as coordenadas. As exteriores e as interiores. 
E a casa a cada regresso. Guardar sempre e também o perto e o agora que é a casa. A comida, as mesas postas, os vinhos e os livros. Nesta página, o último livro de alguém a quem quero muito bem e há muito. O meu Professor Anselmo Borges. O pensamento livre do Professor Anselmo. Que não se circunscreve ao território da religião ou da filosofia ou da teologia. Ao contrário, um pensamento que questiona, que inicia longas conversas, que não se aprisiona nem se deixa aprisionar. A inteligência à solta é uma coisa maravilhosa. Parece até pleonasmo dizer liberdade à solta, porque (para mim) a inteligência é liberdade necessariamente. Mas as formulações pleonásticas não fazem mal a ninguém e têm boas intenções, que intensificam o que se quer dizer. Gosto sempre de o ler aqui, aos sábados. Sei que é sábado de manhã se estiver a ler o texto do Professor Anselmo, enquanto bebo uma chávena de café quente. Por estes dias, o livro está a ser sublinhado e discutido. Sei que quando ele regressar a minha casa, quererá ler as "discussões" que tivemos com ele, lá nas páginas que escreveu. Quando ele regressar a minha casa, talvez o vinho da imagem. Um Alvarinho seguro. É de gostar sem estar a pensar porquê ou para quê. Quando o Professor Anselmo regressar a minha casa, sei que, muito provavelmente, farei isto que deixo hoje: peixinhos da horta. Uma daquelas coisas que eu achava que não era capaz de fazer assim como as avós e as mães. Consigo sim. E é tão facilmente deliciosa e delicada, esta comida. Tinha de ficar agora, para celebrar e agradecer a remessa de feijão verde pequenino e tenro que recebi de presente há uns dias. Outubro também ser tempo de feijão verde é uma graça por si só. Merece mesmo celebração, por ser uma daquelas surpresas. Aqui fica, então. É o tempo. 

Peixinhos da Horta

Feijão verde + 150 g de farinha + 1 garrafa de cerveja preta (mini) + óleo, farinha, sal e pimenta preta q.b. 

Tira-se os fios ao feijão verde, lava-se e enxuga-se com um pano. A seguir, coloca-se numa taça e salpica-se com um pouco de farinha. Reserva-se. A seguir, a farinha numa taça, a cerveja e mexe-se de imediato com um garfo, batendo ligeiramente. Depois o sal e três voltas no moinho da pimenta preta. 
Coloca-se uma quantidade generosa de óleo numa fritadeira e leva-se ao lume. Enquanto o óleo aquece, mergulha-se as vagens no polme. Quando estiver quente, vai-se colocando as vagens gradualmente. Vira-se com uma escumadeira, para que as vagens fritem por igual. Quando estiverem douradas, retira-se para papel absorvente. Repete-se isto até que não haja mais vagens e o óleo pode guardar-se num frasco, depois de arrefecer, que estará em condições de ser usado para mais peixinhos da horta. 
Serve-se com uma maionese especial, se for prelúdio para uma refeição. Ou com um arroz de tomate caldoso, se for uma daquelas refeições que nos faz ser crianças outra vez. 

A música é esta, Sweater Weather. The Neighbourhood. É tempo de voltar às camisolas. 


6 comentários:

  1. Ainda bem que passaste a tirar fotografias às coisas que vês. São pura poesia. E só assim as podes partilhar connosco :)
    Às vezes, também lamento não ter fotografado algumas coisas. Recordo-me delas e gostaria de as ver impressas.

    Muito bonitas as tuas palavras sobre o teu amigo. E belíssimos, os teus peixinhos da horta. Nunca fiz. Tenho de experimentar um destes dias.

    Um beijo,

    Ilídia

    PS: Por aqui, um dia de verão. Regressámos aos tecidos leves. Ainda sabe bem :)

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    1. Também penso que sim, que foi bom passar a registar as coisas breves e pequenas em que vou reparando. Lamento o que não guardei desta maneira ao acaso. Amanhã vou regressar a um desses sítios que não guardei. A ver se sim, desta vez.

      Tens de fazer peixinhos da horta:) E parece-me que terás o mesmo "problema" que eu, aqui em casa. Desaparecem a um ritmo daqueles:)

      Um querido, o (meu) Professor Anselmo. Uma daquelas pessoas que estimula, que te faz querer mais do mundo, de ti.

      Eu já estou a usar as minhas camisolas largas e macias. Um gesto pacificador, que torna o Outono irreversível.

      Um beijo para ti.

      Mar

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  2. gosto muito do seu blog..pura mágia! Parabéns, continue sff .

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    1. Obrigada. Que bom que tenha gostado, que signifique essa magia para si. É para continuar, sim.

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